Cultura e colonização

1Desde há alguns dias que muito nos temos interrogado sobre o sentido deste Congresso2.

Interrogámo-nos em particular sobre qual o denominador comum a uma assembleia que une homens tão diversos, como africanos da África negra e norte-americanos, antilhanos e malgaxes.

A resposta parece-me evidente: esse denominador comum é a situação colonial.

É um facto que a maior parte dos países negros vive sob o regime colonial. Mesmo um país independente como o Haiti é, com efeito, em muitos aspectos, um país semi-colonial. E mesmo os nosso irmãos americanos estão colocados, através do jogo da discriminação racial, de um modo artificial e no seio de uma grande nação moderna, numa situação que só se compreende por referência a um colonialismo que foi certamente abolido, mas cujas sequelas não deixam de ressoar no presente.

Que significa isto? Significa que, por muito que desejemos preservar toda a serenidade durante os debates neste Congresso, não podemos, se nos quisermos manter próximos da realidade, deixar de abordar o problema daquilo que, actualmente, condiciona, em particular, o desenvolvimento das culturas negras: a situação colonial. Dito de outro modo, queira-se ou não, não se pode colocar actualmente o problema da cultura negra, sem colocar ao mesmo tempo o problema do colonialismo, pois todas as culturas negras se desenvolvem no momento actual dentro deste condicionamento particular que é a situação colonial ou semi-colonial ou para-colonial.

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Lusaka, foto de Rosa SpalivieroLusaka, foto de Rosa Spaliviero

Mas, dir-me-ão, o que é a cultura? Importa defini-la para dissipar um certo número de mal-entendidos e responder de maneira muito precisa a um certo número de preocupações que foram exprimidas por alguns dos nossos adversários, mesmo por alguns dos nossos amigos.

Por exemplo, houve quem se interrogasse acerca da legitimidade deste Congresso. Se é verdade, como se disse, que não há cultura a não ser a nacional, falar de cultura negro-africana não será falar de uma abstracção?

Mas quem não vê que o melhor meio de resolver o impasse é definir com cuidado as palavras que utilizamos?

Penso que é bem verdade que apenas existe cultura nacional.

Mas é evidente que as culturas nacionais, por muito particulares que sejam, se agrupam por afinidades. E esses grandes parentescos de cultura, essas grandes famílias de culturas, têm um nome: são civilizações. Dito de outra forma: se é evidente que há uma cultura nacional francesa, uma cultura nacional italiana, inglesa, espanhola, alemã, russa etc., não é menos evidente que todas estas culturas apresentam, a par de diferenças reais, um certo número de semelhanças gritantes que fazem com que, se se pode falar de culturas nacionais, particulares a cada um dos países que acabei de enumerar, também se pode falar de uma civilização europeia.

Do mesmo modo pode falar-se de uma grande família de culturas africanas que merece a designação de civilização negro-africana e que cobre as diferentes culturas próprias a cada um dos países da África. E sabe-se que as transformações históricas fizeram com que o campo dessa civilização, a área dessa civilização, exceda em muito a África; e é nesse sentido que se pode dizer que há no Brasil ou nas Antilhas, tal como no Haiti e nas Antilhas Francesas ou mesmo nos Estados Unidos, se não focos, pelo menos franjas, dessa civilização negro-americana.

Não se trata de uma visão que invento por necessidade da causa, é uma perspectiva que me parece estar implícita na abordagem sociológica e científica do problema.

O sociólogo francês Marcel Mauss definiu a civilização como “um conjunto de fenómenos suficientemente numerosos e importantes que se alargam a uma extensão considerável de território”. Pode daí inferir-se que a civilização tende à universalidade e que a cultura tende à particularidade; que a cultura é a civilização enquanto própria de um povo, de uma nação, partilhada por mais nenhuma, e que transporta, indelével, a marca desse povo e dessa nação. Se a quisermos descrever do exterior, diremos que é o conjunto dos valores materiais e espirituais criados por uma sociedade no decurso da sua história – e, bem entendido, por valores é necessário entender elementos tão diversos como a técnica ou as instituições políticas, uma coisa tão fundamental como a língua e uma coisa tão fugaz como a moda; tanto as artes, como a ciência ou formas de relacionamento.

rio Zambeze em frente ao Zimbabué, foto de Rosa Spalivierorio Zambeze em frente ao Zimbabué, foto de Rosa Spaliviero

Se, pelo contrário, a quisermos definir em termos de finalidade e apresentá-la no seu dinamismo, diremos que a cultura é o esforço de toda a colectividade humana para se dotar da riqueza de uma personalidade.

Quer dizer que civilização e cultura definem dois aspectos de uma mesma realidade: a civilização define o contorno extremo da cultura, aquilo que a cultura tem de mais exterior e de mais geral; a cultura constitui, por seu lado, o núcleo íntimo e irradiante, o aspecto, em todo o caso, mais singular da civilização.

Sabe-se que Mauss, ao buscar as razões da compartimentação do mundo em “áreas de civilização” claramente definidas, as encontrava numa qualidade profunda, comum, segundo ele, a todos os fenómenos sociais e que definia com uma palavra: o arbítrio. “Todos os fenómenos sociais”, precisava, “são em certa medida, obra da vontade colectiva, e quem diz vontade humana, diz escolha entre diversas opções possíveis… Decorre desta natureza das representações e das práticas colectivas que a área da sua extensão, enquanto a humanidade não formar uma sociedade única, é necessariamente finita e relativamente fixa.”

Assim, toda a cultura seria específica. Específica, porque obra de uma vontade particular, única, porque escolhendo entre opções diferentes.

 

(…)

 

pode continuar a ler em 

MALHAS QUE OS IMPÉRIOS TECEM. TEXTOS ANTI-COLONIAIS, CONTEXTOS PÓS-COLONIAIS 2

Índice

Manuela Ribeiro Sanches, Viagens da teoria antes do pós-colonial

Agradecimentos

I – Viagens transnacionais, afiliações múltiplas

W. E. B. Du Bois, Do nosso esforço espiritual

Alain Locke, O novo Negro

Léopold Sédar Senghor, O contributo do homem negro

George Lamming, A presença africana

C. L. R. James, De Toussaint L’Ouverture a Fidel Castro

Mário de (Pinto) Andrade, Prefácio a Antologia Temática de Poesia Africana

II – Poder, colonialismo, resistência trans-nacional

Michel Leiris, O etnógrafo perante o colonialismo

Georges Balandier , A situação colonial: uma abordagem teórica

Aimé Césaire, Cultura e colonização

Richard Wright, Tradição e industrialização

Frantz Fanon, Racismo e cultura

Kwame Nkruhmah, O neo-colonialismo em África

Eduardo Mondlane, A estrutura social – mitos e factos

Eduardo Mondlane,  Resistência - A procura de um movimento nacional

Amílcar Cabral, Libertação nacional e cultura

 

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  • 1. “Culture et Colonisation”, Lire le Discours sur le colonialisme. Org Georges Ngal em colaboração com Jean Ntichilé, Paris: Présence africaine, pp. 107-121. Tradução de Manuela Ribeiro Sanches, revisão de Maria José Rodrigues.
  • 2. Primeiro Congresso Internacional de Escritores e Artistas negros, Paris, Sorbonne, 1956.
Translation:  Manuela Ribeiro Sanches

por Aimé Césaire
Mukanda | 4 Junho 2011 | África, arbítrio, civilização, cultura