Diário de um regresso ao país natal
(…) Partir.
Uma vez que existem homens-hienas e homens-panteras, eu serei um homem judeu
Um homem-cafre
Um homem-hindu-de-Calcutá
Um homem do Harlém-que-não-vota
O homem-fome, o homem-insulto, o homem-tortura
Que a qualquer momento pode ser abusado e espancado
a murros, ou morto – sim, matá-lo – sem a ninguém dar contas nem apresentar desculpas
Um homem-judeu
Um homem-pogrom
Um cachorro
Um mendigo
Mas será possível matar o Remorso, belo como a face estupefacta de uma senhora inglesa que descobre na sua terrina um crânio de Hotentote?
Reencontrarei o segredo das grandes comunicações e das grandes combustões. Direi tempestade. Direi rio. Direi tornado. Direi folha. Direi árvore. Ficarei molhado por todas as chuvas, humedecido por todos os orvalhos. Correrei como sangue frenético na corrente lenta do olho das palavras em cavalos loucos em crianças viçosas em coágulos no recolher obrigatório nos vestígios de templo nas pedras preciosas tão longe que desencorajam os mineiros.
Quem não me compreender também não entederá o rugido do tigre.
E vocês, fantasmas, subam azuis de química uma floresta de animais cercados de máquinas estranhas de uma jujubeira de carnes putrefactas de um cesto de ostras de olhos de um labirinto de correias cortadas no belo sisal de uma pele de homem, eu terei palavras muito vastas para vos conter e tu terra tensa terra embriagada
Terra grande sexo erguido para o sol
Terra grande delírio do membro viril de Deus
Terra selvagem em cólera comprimida pelo mar com um tufo de cecropias na boca
Terra cuja face agitada só posso comparar à floresta virgem e louca que desejaria, como se de um rosto se tratasse, mostrar aos olhos indecifráveis dos homens
Basta-me um trago do teu veneno para que em ti eu descubra, à distância da miragem – mil vezes mais natal e dourada por um sol que não enceta nenhum prisma – a terra onde tudo é livre e fraterno, a minha terra.
Partir. O meu coração murmura enfáticas generosidades. Partir… chegarei polido e jovem a este meu país onde o limão entra na composição da minha carne, e dir-lhe-ei: “Errei durante muito tempo e regresso para o horror deserto das tuas mágoas”.
Chego a este meu país e digo-lhe: “Beija-me sem medo… E se não sei que dizer, é por ti que falarei”.
E digo-lhe ainda:
“A minha boca é a boca dos desgostosos que já não têm boca, a minha voz, a liberdade dos que sucumbem às masmorras do desespero.”
E, quando for, direi a mim próprio:
“Em primeiro lugar o meu corpo e a minha alma, deixem-se de cruzar os braços numa estéril atitude de espectadores, pois a vida não é um espectáculo, um mar de dores não é um palco, nem um homem que grita é um urso a dançar…”
E finamente chego!
E observo de novo esta vida arrastada, esta vida não, esta morte, esta morte sem sentido nem piedade, esta morte em que a grandeza ecoa lastimavelmente, a brilhante pequenez desta morte, esta morte que se arrasta de pequenez em pequenez; estas pazadas de pequenas sofreguidões ao conquistador; estas pazadas de pequenos lacaios ao grande selvagem, estas pazadas de alminhas ao Caribe de três almas,
e todas estas mortes fúteis
absurdos na minha consciência enlameada e aberta
trágicas futilidades iluminadas por uma única noctilúcia
e eu sozinho, no brusco momento da madrugada onde o belo, o apocalipse dos monstros, perturbado, se cala
quente eleição de cinzas, ruínas e desfalecimentos.
- Mais uma objecção! Apenas uma, felizmente apenas uma: não tenho o direito de medir a vida em palmos ferrugentos; de me reduzir a este pequeno nada elipsoidal que treme quatro dedos acima da linha, eu homem, e assim desordenar a criação, que me comprime entre latitude e longitude!
De madrugada,
A sede do macho e o desejo obstinado,
Eis-me dividido de oásis frescos da fraternidade
Este nada púdico friso de duros espinhos
Este horizonte demasiado seguro estremece como um carcereiro.
O teu último triunfo, corvo tenaz da Traição.
O que me pertence – uns quantos milhares de mortificados que gravitam à volta da cabeça de uma ilha, e o que também me pertence, o arquipélago arqueado como o desejo inquieto de se negar, dir-se-ia uma ansiedade maternal que protege a mais delicada linha ténue que separa as duas Américas; e os seus flancos que segredam à Europa o bom licor de um Gulf Stream, e numa das duas encostas incandescentes o funâmbulo Equador voltado para África. E a minha ilha não-encerrada, a sua clara audácia firme na retaguarda desta polinésia, de frente para ela, a Guadalupe fendida em dois pelo seu traçado dorsal e a mesma miséria que nós, Haiti onde a negritude se ergueu pela primeira vez e disse aquilo que acreditava com a sua humanidade e a cómica caudazinha da Flórida onde um negro acaba de ser estrangulado, e a África gigantescamente canilizada até ao pé hispânico da Europa, a sua nudez onde a Morte ceifa a grandes passadas.
Eu afirmo-me Bordéus e Nantes e Liverpool e Nova Iorque e São Francisco
Não um fim do mundo que não tem a minha impressão digital
e o meu calcâneo nas costas dos arranha-céus e a minha porcaria
no cintilar das gemas!
Quem pode vangloriar-se de ter mais do que eu?
Virgínia. Tenesse. Geórgia. Alabama
putrefacções monstruosas de revoltas
inoperantes,
pântanos pútridos de sangue
trompetes absurdamente entupidos
terras vermelhas, terras sanguíneas, terra consanguíneas.
E também me pertence: uma pequena cela em Jura,
Uma pequena cela, a neve duplica-a com grades brancas
A neve é um carcereiro branco que monta guarda em frente à prisão
O que me pertence
É um homem só encarcerado de branco
É um homem que desafia os gritos brancos da morte branca
(DIA DE TODOS OS SANTOS, DIA DE TODOS OS SANTOS INAUGURAÇÃO/ABERTURA)
é um homem só que deslumbra o gavião branco da morte branca
é um homem só no mar infecundo de areia branca
é um moricaud velho insurgindo-se contra as águas do céu
a morte descreve um círculo brilhante que sobrevoa este homem
a morte estrela lentamente acima da sua cabeça
a morte sopra, louca, no canavial entaipado dos seus braços
a morte galopa na prisão como um cavalo branco
a morte luz/resplandece na sombra como olhos de gato
a morte soluça como água sobre as Cayes
a morte é um pássaro ferido
a morte enfraquece
a morte vacila
a morte é um patyura assustadiço
a morte expira num charco branco de silêncio.
(…)
E estes vestígios em mm da minha prodigiosa ascendência!
Eia aqueles que não inventaram nem a pólvora nem a bússola
que nunca souberam domar o vapor ou a electricidade
que não exploraram os mares nem o céu
mas conhecem os mais ínfimos recantos da terra do sofrimento
que das viagens só conheceram as de desenraízamento
que foram amansados com humilhações
que foram domesticados e cristianizados
e contagiados de degeneração
tam-tam de mãos vazias
tam-tams inânimes de chagas sonoras
tam-tams burlescos de traição tabide
tépida madrugada de calores e medos ancestrais
acima da orla as minhas riquezas peregrinas
as minhas falsidades autênticas
mas que orgulho estranho ousa de repente iluminar-me?
Venha o colibri
Venha o gavião
Venha a brisa do horizonte
Venha o cinocéfalo
Venha o lótus que alberga o mundo
Venha uma insurreição perolífera de golfinhos que parte a concha do mar
Venha um mergulhão de ilhas
Venha o desaparecimento dos dias de carne morta na cal peixe-aranha das aves de rapina
Venham os ovários da água onde o futuro agita as suas cabecinhas
Venham os lobos que pastam nos orifícios selvagens do corpo no momento onde o albergue eclíptico faz com que se encontrem a minha lua e o teu sol
(…)
Mas aqueles sem os quais a terra não seria mais terra
gibosidade tanto mais benéfica
que a terra deserta
Minha negritude não é uma pedra, surdez
arremessada contra o clamor do dia
Minha negritude não é um charco de água morta
sobre o olho morto da terra
Minha negritude não é uma torre nem uma catedral
perfura a carne vermelha do solo
perfura a carne ardente do céu
perfura a opressão opaca da sua paciência estreita.
(…)
Eia os que nunca inventaram nada
os que nunca exploraram nada
os que nunca dominaram nada
mas se entregam, possuídos, à essência de todas as coisas
ignorantes das superfíceis mas possuídos pelo movimento
de todas as coisas
indiferentes ao mando mas jogando o jogo do mundo
excerto em tradução livre de Cahier d’un Retour au Pays Natal, 1939.