Dos urros e dos círculos

O Miguel, as suas iluminações e o seu sentido, chegavam-me mais na forma de uma coreografia ou de um tom do que através das suas palavras. O Miguel tinha, antes de mais, uma maneira. Um jeito, um compasso. Tinha aquele riso sincopado e percutido, uma herança do seu amor ao thrash metal, a que a sua voz gutural tão bem se prestava. 

Numas férias em Lagos, meados dos anos 90, em que se reuniram três Miguéis – ele, eu e o Batista – fui picado num dedo do pé pela mãe de todos os peixes-aranha. O meu pé havia de inchar a tal ponto que estive duas semanas sem conseguir calçar sapatos. Naquele dia, a dor era tal que, umas horas e várias latas de spray anestesiante depois, nos metemos no carro para ir ao hospital. O Batista ia ao volante e provavelmente virava o pescoço para me perguntar, para meu ligeiro alívio cómico, se as orelhas dele me estavam a incomodar. Eu, no banco de trás, gemia, urrava e rangia os dentes. O Gullander, no lugar do pendura, voltava-se para trás e dividia-se, de cara e mãos e tudo, entre esgares de empatia, preces e sortilégios esfíngicos, e gargalhadas fundas. Tinha essa coisa de se ver ao espelho nos urros dos outros. 

Os seus gestos eram uma forma de dividir e abrir o espaço. De cortar. E cortar, claro, é uma forma de abrir. O Miguel era de arranques, de repentes. Era de grandes goles. Mas era, sobretudo, de abracadabras. Viveu a abrir.

Conheci um Miguel ainda puto, sem cerimónias. O oposto de um quadrado, para usar uma expressão ainda em uso, mas julgo que mais comum à época. Ao mesmo tempo, à volta de cada instante, antes, depois, por baixo e por cima de cada redemoinho partilhado, fazia uma qualquer pausa secreta, e traçava… um círculo. Estendia as sobrancelhas cerradas, em toldo, como que a aprontar um espaço provisório de concentração, um intervalo tenso e suspenso no andar desconchavado do mundo. Uma exacerbação de intensidade.  Uma frequência. Um exercício de sintonização. 

Continuando nas figuras geométricas, numa imagem a que volto muitas vezes, Roland Barthes comparava o trabalho do crítico ou leitor de um texto ao gesto do áugure (o adivinho) que, “com a ponta do seu cajado, corta um rectângulo fictício do céu, para nele interrogar, segundo certos princípios, o voo dos pássaros”. 

Quem diz um texto diz, claro, o mundo. Quem diz espaço, diz tempo. A pontuação é uma caixa de velocidades, escreveu o Herberto Helder. O Miguel pontuava.  

Por outras palavras, o Miguel era todo ele cerimónia. Não no sentido de algo protocolar, mesurado. É verdade que se foi habituando às camisas, ajustando o corpo a elas, acomodando a pele irrequieta a uma certa circunspecção ou formalidade, como lugar vertical, respeitoso, de onde lançava as suas investidas, de onde encenava desenvolturas agora mais medidas e comedidas. Mas tanto se abotoava como arrancava as vestes. E dispensava, isso sim, os salamaleques. A cerimónia de que falo é a do tal desenhar de círculo em torno do arranjo casual das coisas. Dentro dele, do círculo, oficiava um investimento contínuo, debruçado, na atenção e no sentido. Que são formas de delicadeza. Ou de amor:

Porque eu amo-te, quer dizer, estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.

Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo
da escuridão do mundo.’

(Fernando Assis Pacheco, ‘Com a tua letra’)

As suas cerimónias, de mãos e corpo inteiro, tocavam-me e desconcertavam-me tanto mais que ele e eu tínhamos, por assim dizer, comprimentos de onda muito diferentes. Com as mãos, o Miguel tirava-me o pé.

desenho de Maria Lisdesenho de Maria Lis Este gesto, em particular, o rodar abrupto da mão, de dentro para fora, os dedos tensos, curvos, cada nó um ponto de uma constelação, leio-o como um agarrar de alguma coisa e, simultaneamente, o deixar que ela escape entre os dedos. Também foi assim que o conheci. É assim que o vejo. No fundo, todos os sutras que me ia lendo ou que inventava, eram glosas a isto. O jogo de agarrar e largar. É uma das artes mais difíceis, o desequilíbrio frutuoso dos contrários. E é uma arte de estar no mundo. Tanto mais difícil para alguém que, como ele, como bem sabemos, não era bem de cá. 

Tinha, aliás, um Bilhete de Identidade azul que o comprovava. Quando lá foi, à Suécia, também não era de lá. 

Mas essa era a sua maneira de ser muito de cá. Plantava bem os pés. Não pedia outro mundo. Antes uma outra cadência. 

É um gesto expressivo, aquele. O de tentar arrancar qualquer coisa cá de dentro, fazê-la brotar (acho que ele preferiria que dissesse rebentar). Enfim, trazê-la e dá-la ao mundo. O Miguel dava e dava-se. Ora, o dar tem uma forma de existir muito própria. De pouco adianta apontar para dentro, reclamar boas intenções escondidas, almas profundas, abismos insondáveis ou ensinamentos escusos que guardamos para nós, cá dentro. Mais do que exprimir algo, trazê-lo das profundezas de nós, o gesto é, diria eu, plenamente exterior. Sem nada dentro, por assim dizer. Só existe entre. Apontar, empurrar, cortar, partir. Assim se move o mundo. Uma corrente de ar não tem mensagem. Sopra.

Ou seja, mais do que em significados, o Miguel investia-se nos sentidos. Nos caminhos. 

É costume dizer-se, quando alguém morre: vemo-nos do outro lado. 

Com o Miguel, estávamos sempre a vermo-nos com um pé do outro lado. Do avesso. Para lá. 

Para lá, mas aqui, daqui

Há alguma sabedoria nos cães quando ficam a olhar para as mãos de alguém que aponta, em vez de seguirem o fio para lá. 

Havia nele essa contradição (não só entre ferocidade e delicadeza, a matéria e o espírito, mas entre esse aqui e o para lá) que ele ia equilibrando, foi equilibrando, o melhor que podia. Com as mãos. Com os pés. Punha-se ao caminho para encontrar um lugar onde os pôr.  Agarrava, largava. 

Agarrou. E nisto largou. 

Mas alguns dos círculos que foi desenhando continuam. Em qualquer lugar onde se juntem os seus amigos.

*

Abro aqui um parêntesis para dizer que o Miguel foi a primeira pessoa que me publicou. Na zine Morfeu e Letra Preta, na faculdade. Não me lembro do texto, mas lembro-me de como as suas várias versões iam sendo traduzidas pelas mãos do Miguel. Apontar, empurrar, cortar, partir. 

Foi também a primeira e última pessoa que me convenceu a ir a uma sessão de meditação. Cá fora, nas vizinhanças do Marquês, em Lisboa, tentava explicar-me como arredar bons e maus pensamentos. 

*

Quando pensava nele há uns dias, lembrei-me de uma passagem do romance A Piada Infinita (Infinite Jest), do David Foster Wallace. Aqui na tradução de Salvato Telles de Menezes e Vasco Telles de Menezes. 

O pai de uma das personagens (então com dez anos) diz-lhe: “Não é assim que se trata uma porta de garagem”. Assim, quer dizer, à bruta. 

“Vamos lá ver como pousas com suavidade a mão no puxador, sentindo-lhe a subtil rugosidade, e o levantas com toda a delicadeza de que sejas capaz. Experimenta, Jim. 

“A culpa é de Marlon Brando, Jim.” 

O Marlon Brando, diz o pai, “arruinou as relações das pessoas de duas gerações inteiras com os seus próprios corpos e com os corpos e objetos que as rodeavam.” 

“Já viste como a tua mãe trata a porta de um forno? É um massacre, Jim, é de arrepiar vê-la, (…) Jim, ela nunca captou a amável e astuta economia que há atrás da relação supostamente dura e espontânea desse homem [Marlon Brando] com os objetos. A maneira como ele se relacionava com uma cadeira inclinada para trás (…). A maneira como estudava os objetos com olho de soldador à procura das juntas mais bem ligadas que não cederiam por mais peso que se lhes pusesse em cima.”

 “Marlon Brando sentia tão intensamente o seu corpo que não tinha necessidade de bons modos. Nunca percebeu que com aqueles modos pretensamente torpes tocava em tudo que tocava como se fosse parte de si próprio. Do seu próprio corpo. O mundo que ele apenas fingia maltratar era para ele pura sensibilidade e sentimento. E ninguém… percebeu isso.” 

“[Brando] movia-se como um peixe descuidado, um único grande músculo, muscularmente ingénuo, mas sempre, presta atenção, como um peixe no meio da límpida corrente. Esse tipo de graça animal. O filho da mãe não desperdiçava nenhum movimento, era o que fazia aquilo ser arte, esse descuido bestial.” 

Com o Miguel, por seu lado, julgo que as pessoas com que se cruzou foram sempre capazes de ver a delicadeza da sua ferocidade. 

A esse propósito, lembrei-me também deste poema de Diane di Prima, poeta Beat. É a terceira parte de “New Mexico Poem”, “A Viagem”:

A cidade que eu quero visitar é feita de porcelana

Os mortos estão lá reunidos, estão no seu melhor:

Bob Thompson

com o seu casaco axadrezado e chapeuzinho, o seu sorriso

cheio de cocaína, a rodopiar rua abaixo; Frank bêbedo

a cuspir fábulas de Roussel, de Mayakovsky

historietas enquanto come bacon e ovos no pão,

o seu querer contra o vento; o Freddie de sapatos pontiagudos

a beber um batido de ovo, o seu maiô ao ombro

num pequeno saco, a acenar mãos de anfetaminas aos céus

 

A cidade de porcelana reluz, sinto os meus amigos

Com pressa para nela se encontrarem e me encontrarem a mim:

Bob Creeley a esgalhar pelas ruas de Buffalo à procura de uma entrada

John Wieners parado, a murmurar, a esperar,

lágrimas sob as pálpebras; eu caminho por essa cidade quebradiça

ainda ensonada e arrogante e desesperadamente enamorada…

Sem entrar em grandes explicações, uma das virtudes deste poema, diria eu, é que nos arreda de idealismos fáceis quando pensamos em alguém que amamos “no seu melhor”. As visões dos amigos mortos “no seu melhor” são instantâneos onde cabe um mundo. Ou melhor, são vislumbres das maneiras, tons, gestos e compassos com que comecei este texto. Vi e verei o Miguel no seu melhor.

Permito-me, portanto, acrescentar a este poema os seguintes versos toscos:

O Miguel a bombar sutras pelo canto da boca

a abrir, a cortar o ar 

a desenhar, em urros brandos,

bizarros círculos, assim 

desenho de Maria Lisdesenho de Maria Lis

por Miguel Cardoso
Mukanda | 27 Março 2024 | Miguel Gullander