duas Cartas de Amílcar Cabral a Ana Maria

Boé, 27 de Março de 1970

Ana querida,

Cá estou de novo no Boé, onde faz um calor tremendo, nesta ante-véspera das chuvas que parece virão mais cedo este ano. Já tinha saudades disso (desde Novembro) e ainda bem que vim, para ver se os camaradas se decidem a fazer mais um bocado, para além de Corubal, pois no Boé propriamente dito só haveria que fazer se dispusermos de grandes meios para fazer um verdadeiro país. Mas com os nossos meios de miséria e a cegueira dos nossos aliados, só dar nos tugas na outra banda.

Hoje fiz várias reuniões e houve uma bela parada com os alunos da Escola Político-Militar, onde encontrei quatro jovens, saídos da Escola piloto. Penso que o ideal para as nossas escolas de jovens, nesta fase da luta, seria ter organismos como este, em que são instruídos e aprendem a combater. Creio que a disciplina é maior, estão na terra, e não há lugar para as historietas do internato de Conakry. Mas espero que estes vão acabar, se todos cumprirem bem o seu dever.

Vim-me embora sem dizer adeus ao Raul (que estava ausente) nem a Ndira, que decerto não se zangam comigo. Salvo se sair à sua Mamã que passa a vida a zangar-se com o Papá. Mas tenho a esperança de que progressivamente me conhecerás e te habituarás a ter a certeza de que não é possível ter as responsabilidades que tenho e fazer o que faço, se eu não for uma pessoa decente.

Bom trabalho aí, mas tenho ainda a esperança de te ver trabalhar fora da Escola, ligada a mim. Beijos para os n/ filhos e para ti do teu

Amílcar

 

Addis, 25 Junho 1971

Ana querida,

Escrevo-te estas linhas já no fim da Conferência para confirmar quanta saudades tenho de ti – e quanta preocupação também em relação à tua saúde e ao comportamento dos miúdos. Espero no entanto que tudo corra pelo melhor, para que regresses breve e continues o nosso trabalho, com saúde que é a riqueza.

A Conferência foi muito boa, vamos ver a prática. Foi também um grande triunfo para o nosso Partido, para o nosso povo e a luta. No final, falei em nome de todos os ML, e toda a gente gostou imenso do meu discurso. Depois te contarei. Tive contacto com vários chefes de Estado, inclusive com o Imperador. Vou seguir amanhã muito cedo via Roma, e irei certamente a Stockholm por um ou dois dias, a fim de arrumar o problema da ajuda. Conto estar em casa dentro de uma semana, passando por Dakar. Escreve-me, se puderes. O Victor [Saúde Maria] manda-te mantenhas. 

Beijo o Raul e a Ndira e a ti, com todo o carinho

 

(excerto de Cartas de Amílcar Cabral a Ana Maria, ed. Rosa de Porcelana) 

por Amílcar Cabral
Mukanda | 11 Setembro 2024 | Amílcar Cabral, cartas, luta, movimentos de libertação