Libertação nacional e cultura
Estamos muito felizes por poder participar nesta cerimónia realizada em homenagem ao nosso companheiro de luta e digno filho de África, o saudoso Dr. Eduardo Mondlane1, antigo Presidente da Frelimo, cobardemente assassinado pelos colonialistas portugueses e pelos seus aliados em 3 de Fevereiro de 1969, em Dar-Es-Salaam.
Queremos agradecer à Universidade de Syracusa e, particularmente, ao Programa e Estudos sobre a África de Leste, dirigido pelo erudito professor Marshall Segall, esta iniciativa. É uma prova não apenas do respeito e da admiração que sentem em relação à inesquecível personalidade do Dr. Eduardo Mondlane, mas também da solidariedade para com a luta heróica do povo moçambicano e de todos os povos de África pela libertação nacional e o progresso.
Ao aceitar o vosso convite – que consideramos dirigido ao nosso povo e aos nossos combatentes – quisemos uma vez mais demonstrar a nossa amizade militante e a nossa solidariedade ao povo de Moçambique e ao seu bem-amado chefe, o Dr. Eduardo Mondlane, ao qual estivemos ligados por laços fundamentais na luta comum contra o mais retrógado dos colonialismos, o colonialismo português. A nossa amizade e a nossa solidariedade são tanto mais sinceras quanto nem sempre estivemos de acordo com o nosso camarada Eduardo Mondlane, cuja morte foi, aliás, uma perda também para o nosso povo.
Elogio a Eduardo Mondlane
Outros oradores já traçaram o retrato e fizeram o elogio bem merecido do Dr. Eduardo Mondlane. Quereríamos apenas reafirmar a nossa admiração pela figura de africano patriota e de eminente homem de cultura que ele foi. Quereríamos igualmente afirmar que o grande mérito de Eduardo Mondlane não foi a sua decisão de lutar pelo seu povo, mas sim de ter sabido integrar-se na realidade do seu país, identificar-se com o seu povo e aculturar-se pela luta que dirigiu com coragem, inteligência e determinação.
Eduardo Chivambo Mondlane, homem africano originário de um meio rural, filho de camponeses e de um chefe tribal, criança educada por missionários, aluno negro das escolas brancas do Moçambique colonial, estudante universitário na racista África do Sul, auxiliado na juventude por uma fundação americana, bolseiro de uma Universidade dos Estados Unidos, doutor pela Northwestern University, alto funcionário das Nações Unidas, professor na Universidade de Syracusa, presidente da Frente de Libertação de Moçambique, caído como combatente pela liberdade do seu povo.
A vida de Eduardo Mondlane é, com efeito, particularmente rica de experiências. Se considerarmos o breve período durante o qual trabalhou como operário estagiário numa exploração agrícola, verificamos que o seu cido de vida engloba praticamente todas as categorias da sociedade africana colonial: do campesinato à “pequena burguesia” assimilada e, no plano cultural, do universo rural a uma cultura universal, aberta para o mundo, para os seus problemas para as suas contradições e perspectivas de evolução.
O importante é que, depois desse longo trajecto, Eduardo Mondlane foi capaz de realizar o regresso à aldeia, na personalidade de um combatente pela libertação e pelo progresso do seu povo, enriquecido pelas experiências quantas vezes perturbadoras do mundo de hoje. Deu assim um exemplo fecundo: enfrentando todas as dificuldades, fugindo às tentações, libertando-se dos compromissos de alienação cultural (e, portanto, política), soube reencontrar as suas próprias raízes, identificar-se com o seu povo e dedicar-se à causa da libertação nacional e social. Eis o que os imperialistas lhe não perdoaram.
Em vez de nos limitarmos a problemas mais ou menos importantes da luta comum contra os colonialistas portugueses, centraremos a nossa conferência num problema essencial: as relações de dependência e de reciprocidade entre a luta de libertação nacional e a cultura.
Se conseguirmos convencer os combatentes da libertação africana e todos os que se interessam pela liberdade e pelo progresso dos povos africanos da importância decisiva deste problema no processo da luta, teremos rendido uma significativa homenagem a Eduardo Mondlane.
Um cruel dilema para o colonialismo: liquidar ou assimilar?
Quando Goebbels, o cérebro da propaganda nazi, ouvia falar de cultura, empunhava a pistola. Isso demonstra que os nazis – que foram e são a expressão mais trágica do imperialismo e da sede de domínio – mesmo sendo todos tarados como Hitler, tinham uma clara noção do valor da cultura como factor de resistência ao domínio estrangeiro.
A história ensina-nos que, em determinadas circunstâncias, é fácil ao estrangeiro impor o seu domínio a um povo. Mas ensina-nos igualmente que, sejam quais forem os aspectos materiais desse domínio, ele só se pode manter com uma repressão permanente e organizada da vida cultural desse mesmo povo, não podendo garantir definitivamente a sua implantação a não ser pela liquidação física de parte significativa da população dominada.
Com efeito, pegar em armas para dominar um povo é, acima de tudo, pegar em armas para destruir ou, pelo menos, para neutralizar e paralisar a sua vida cultural. É que, enquanto existir uma parte desse povo que possa ter uma vida cultural, o domínio estrangeiro não poderá estar seguro da sua perpetuação. Num determinado momento, que depende dos factores internos e externos que determinam a evolução da sociedade em questão, a resistência cultural (indestrutível) poderá assumir formas novas (políticas, económicas, armadas) para contestar com vigor o domínio estrangeiro.
O ideal, para esse domínio, imperialista ou não, seria uma destas alternativas:
- ou liquidar praticamente toda a população do país dominado, eliminando assim as possibilidades de uma resistência cultural;
- ou conseguir impor-se sem afectar a cultura do povo dominado, isto é, harmonizar o domínio económico e político desse povo com a sua personalidade cultural.
A primeira hipótese implica o genocídio da população indígena e cria um vácuo que rouba ao domínio estrangeiro conteúdo e objecto: o povo dominado. A segunda hipótese não foi até hoje confirmada pela história. A grande experiência da humanidade permite admitir que não tem viabilidade prática: não é possível harmonizar o domínio económico e político de um povo, seja qual for o grau do seu desenvolvimento.
Para fugir a esta alternativa – que poderia ser chamada o dilema da resistência cultural – o domínio colonial imperialista tentou criar teorias que, de facto, não passam de grosseiras formulações do racismo e se traduzem, na prática, por um permanente estado de sítio para as populações nativas, baseado numa ditadura (ou democracia) racista.
É, por exemplo, o caso da pretensa teoria da assimilação progressiva das populações nativas, que não passa de uma tentativa, mais ou menos violenta, de negar a cultura do povo em questão. O nítido fracasso desta “teoria”, posta em prática por algumas potências coloniais, entre as quais Portugal, é a prova mais evidente da sua inviabilidade, senão mesmo do seu carácter desumano. No caso português, em que Salazar afirma que a África não existe, atinge mesmo o mais elevado grau de absurdo.
É igualmente o caso da pretensa teoria do apartheid, criada, aplicada e desenvolvida com base no domínio económico e político do povo da África Austral por uma minoria racista, com todos os crimes de lesa-humanidade que isso importa. A prática do apartheid traduz-se por uma exploração desenfreada da força de trabalho das massas africanas, encarceradas e reprimidas no mais cínico e mais vasto campo de concentração que a humanidade jamais conheceu.
A libertação nacional, acto de cultura
Estes factos dão bem a medida do drama do domínio estrangeiro perante a realidade cultural do povo dominado. Demonstram igualmente a íntima ligação, de dependência e reciprocidade, que existe entre o facto cultural e o facto económico (e político) no comportamento das sociedades humanas. Com efeito, em cada momento da vida de uma sociedade (aberta ou fechada), a cultura é a resultante mais ou menos consciencializada das actividades económicas e políticas, a expressão mais ou menos dinâmica do tipo de relações que prevalecem no seio dessa sociedade, por um lado, entre o homem, (considerado individual ou colectivamente) e a natureza, e, por outro, entre os indivíduos, os grupos de indivíduos, as camadas sociais ou as classes.
O valor da cultura como elemento de resistência ao domínio estrangeiro reside no facto de ela ser a manifestação vigorosa, no plano ideológico ou idealista, da realidade material e histórica da sociedade dominada ou a dominar. Fruto da história de um povo, a cultura determina simultaneamente a história pela influência positiva ou negativa que exerce sobre a evolução das relações entre o homem e o seu meio e entre os homens ou grupos humanos no seio de uma sociedade, assim como entre sociedades diferentes. A ignorância desse facto poderia explicar tanto o fracasso de diversas tentativas de domínio estrangeiro como o de alguns movimentos de libertação nacional.
Vejamos o que é a libertação nacional. Consideramos esse fenómeno da história no seu contexto contemporâneo, ou seja, a libertação nacional perante o domínio imperialista. Como é sabido, este é, tanto nas formas como no conteúdo, diferente dos outros tipos de domínio estrangeiro que o procederam (tribal, aristocrato-militar, feudal e capitalista do tempo da livre concorrência).
A característica principal, como em qualquer espécie de domínio imperialista, é a negação do processo histórico do povo dominado por meio da usurpação violenta da liberdade do processo de desenvolvimento das forças produtivas. Ora, numa dada sociedade, o nível de desenvolvimento das forças produtivas e o regime de utilização social dessas forças (regime de propriedade) determinam o modelo de produção. Quanto a nós, o modo de produção, cujas contradições se manifestam com maior ou menor intensidade por meio da luta de classses, é o factor principal da história de cada conjunto humano, sendo o nível das forças produtivas a verdadeira e permanente força motriz da história.
O nível das forças produtivas indica, em cada sociedade, em cada conjunto humano considerado como um todo em movimento, o estado em que se encontra essa sociedade e cada um dos seus componentes face à natureza, a sua capacidade de agir ou de reagir conscientemente em relação à natureza. Indica e condiciona o tipo de relações materiais (expressas objectiva ou subjectivamente) existentes entre o homem e o seu meio.
O modo de produção que representa, em cada fase da história, o resultado da pesquisa incessante de um equilíbrio dinâmico entre o nível das forças produtivas e o regime de utilização social dessas forças, indica o estado em que se encontra uma sociedade e cada um dos seus componentes, perante ela mesma e perante a história. Indica e condiciona, por outro lado, o tipo de relações materiais (expressas objectiva ou subjectivamente) existentes entre os diversos elementos ou os diversos conjuntos que formam a sociedade em questão: relações e tipos de relações entre o homem e a natureza, entre o homem e o seu meio; relações e tipos de relações entre os componentes individuais ou colectivos de uma sociedade. Falar disso é falar de história, mas é igualmente falar de cultura.
A cultura, sejam quais forem as características ideológicas ou idealistas das suas manifestações, é assim um elemento essencial da história de um povo. É talvez a resultante dessa história como a flor é a resultante de uma planta. Como a história, ou porque é a história, a cultura tem como base material o nível das forças produtivas e o modo de produção. Mergulha as suas raízes no húmus da realidade material do meio em que se desenvolve e reflecte a natureza orgânica da sociedade, podendo ser mais ou menos influenciada por factores externos. Se a história permite conhecer a natureza e a extensão dos desequilibrios e dos conflitos (económicos, políticos e sociais) que caracterizam a evolução de uma sociedade, a cultura permite saber quais foram as sínteses dinâmicas, elaboradas e fixadas pela consciência social para a solução desses conflitos, em cada etapa da evolução dessa mesma sociedade, em busca de sobrevivência e progresso.
O estudo da história das lutas de libertação demonstra que são em geral precedidas por uma intensificação das manifestações culturais, que se concretizam progressivamente por uma tentativa, vitoriosa ou não, da afirmação da personalidade cultural do povo dominado como acto de negação da cultura do opressor. Sejam quais forem as condições de sujeição de um povo ao domínio estrangeiro e a influência dos factores económicos, políticos e sociais na prática desse domínio, é em geral no facto cultural que se situa o germe da contestação, levando à estruturação e ao desenvolvimento do movimento de libertação.
Quanto a nós, o fundamento da libertação nacional reside no direito inalienável que tem qualquer povo, sejam quais forem as fórmulas adoptadas ao nível do direito internacional, de ter a sua própria história. O objectivo da libertação nacional é, portanto, a reconquista, desse direito, usurpado pelo domínio imperialista, ou seja: a libertação do processo de desenvolvimento das forças produtivas nacionais. Há assim libertação nacional quando, e apenas quando, as forças produtivas nacionais são totalmente libertadas de qualquer espécie de domínio estrangeiro. A libertação das forças produtivas e, consequentemente, a faculdade de determinar livremente o modo de produção mais adequado à evolução do povo libertado, abre necessariamente perspectivas novas ao processo cultural da sociedade em questão, conferindo-lhe toda a sua capacidade de criar o progresso.
Um povo que se liberta do domínio estrangeiro não será culturalmente livre a não ser que, sem complexos e sem subestimar a importância dos contributos positivos da cultura do opressor e de outras culturas, retome os caminhos ascendentes da sua própria, cultura que se alimenta da realidade viva do meio e negue tanto as influências nocivas como qualquer espécie de subordinação a culturas estrangeiras. Vemos assim que, se o domínio imperialista tem como necessidade vital praticar a opressão cultural, a libertação nacional é, necessariamente, um acto de cultura.
O carácter de classe da cultura
Com base no que acaba de ser dito, podemos considerar o movimento de libertação como a expressão política organizada da cultura do povo em luta. A direcção desse movimento pode assim ter uma noção clara da cultura no âmbito da luta e conhecer profundamente a cultura do seu povo, seja qual for o nível do seu desenvolvimento económico.
Actualmente, tornou-se um lugar comum afirmar que cada povo tem a sua cultura. Já lá vai o tempo em que, numa tentativa para perpetuar o domínio dos povos, a cultura era considerada como o apanágio de povos ou nações privilegiadas e em que, por ignorância ou má-fé, se confundia cultura e tecnicidade, senão mesmo cultura e cor da pele ou forma dos olhos. O movimento de libertação, representante e defensor da cultura do povo, deve ter consciência do facto que, sejam quais forem as condições materiais da sociedade que representa, esta é portadora e criadora de cultura, e deve, por outro lado, compreender o carácter de massa, o carácter popular da cultura, que não é, nem poderia ser, apanágio de um ou de alguns sectores da sociedade.
Numa análise profunda da estrutura social que qualquer movimento de libertação deve ser capaz de fazer em função dos imperativos da luta, as características culturais de cada categoria têm um lugar de primordial importância. Pois, embora a cultura tenha um carácter de massa, não é contudo uniforme, não se desenvolve igualmente em todos os sectores da sociedade. A atitude de cada categoria social perante a luta é ditada pelos seus interesses económicos, mas também profundamente influenciada pela sua cultura. Podemos mesmo admitir que são as diferenças e níveis de cultura que explicam os diferentes comportamentos dos indivíduos de uma mesma categoria sócio-económica face ao movimento de libertação. E é aí que a cultura atinge todo o seu significado para cada indivíduo: compreensão e integração no seu meio, identificação com os problemas fundamentais e as aspirações da sociedade, aceitação da possibilidade de modificação no sentido do progresso.
Nas condições específicas do nosso país – e diríamos mesmo de África – a distribuição horizontal e vertical dos níveis de cultura tem uma certa complexidade. Com efeito, das aldeias às cidades, de um grupo étnico a outro. Do camponês ao operário ou ao intelectual indígena mais ou menos assimilado, de uma classe social a outra, e mesmo, como afirmámos, de indivíduo para indivíduo, dentro mesma categoria social, há variações significativas do nível quantitativo e qualitativo da cultura. Ter esses factos em consideração é uma questão de primordial importância para o movimento de libertação.
Se nas sociedades de estrutura horizontal, como a sociedade balanta, por exemplo, a distribuição dos níveis de cultura é mais ou menos uniforme, estando as variações apenas ligadas às características individuais e aos grupos etários, nas sociedades de estrutura vertical, como a dos fulas, há variações importantes desde o cimo à base da pirâmide social. Isso demonstra uma vez mais a íntima ligação entre o factor cultural e o factor económico e explica também as diferenças no comportamento global ou sectorial desses dois grupos étnicos face ao movimento de libertação.
É certo que a multiplicidade das categorias sociais e étnicas cria uma certa complexidade na determinação do papel da cultura no movimento de libertação, mas é indispensável não perder de vista a importância decisiva do carácter de classe da cultura no desenvolvimento do movimento de libertação, mesmo nos casos em que esta categoria está ou parece estar embrionária.
A experiência do domínio colonial demonstra que, na tentativa de perpetuar a exploração, o colonizador não só cria um perfeito sistema de repressão da vida cultural do povo colonizado, como ainda provoca e desenvolve a alienação cultural de parte da população, quer por meio da pretensa assimilação dos indígenas, quer pela criação de um abismo social entre as elites autóctones e as massas populares. Como resultado desse processo de divisão ou de aprofundamento das divisões no seio da sociedade, sucede que parte considerável da população, especialmente a “pequena burguesa” urbana ou campesina, assimila a mentalidade do colonizador e considera-se como culturalmente superior ao povo a que pertence e cujos valores culturais ignora ou despreza. Esta situação, característica da maioria dos intelectuais colonizados, vai cristalizando à medida que aumentam os privilégios sociais do grupo assimilado ou alienado, tendo implicações directas no comportamento dos indivíduos desse grupo perante o movimento de libertação. Revela-se assim indispensável uma reconversão dos espíritos – das mentalidades – para a sua verdadeira integração no movimento de libertação. Essa reconversão – reafricanização, no nosso caso – pode verificar-se antes da luta, mas só se completa no decurso dela, no contacto quotidiano com as massas populares e na comunhão dos sacrifícios que a luta exige.
É preciso, no entanto, tomar em consideração o facto que, perante a perspectiva da independência política, a ambição e o oportunismo que afectam em geral o movimento de libertação podem levar à luta indivíduos não reconvertidos. Estes, com base no seu nível de instrução, nos seus conhecimentos científicos e técnicos, e sem perderem em nada os seus preconceitos culturais de classe, podem atingir os postos mais elevados do movimento de libertação. Isto revela como a vigilância é indispensável, tanto no plano da cultura como no da política. Nas condições concretas e bastante complexas do processo do fenómeno do movimento de libertação, nem tudo o que brilha é ouro: dirigentes políticos – mesmo os mais célebres – podem ser alienados culturais.
Mas o carácter de classe da cultura é ainda mais sensível no comportamento das categorias privilegiadas do meio rural, especialmente no que se refere às etnias que dispõem de uma estrutura social vertical, onde, no entanto, as influências da assimilação ou alienação cultural são nulas ou praticamente nulas. É, por exemplo, o caso da classe dirigente fula. Sob o domínio colonial, a autoridade política dessa classe (chefes tradicionais, famílias nobres, dirigentes religiosos) é puramente nominal e as massas populares têm a consciência que a verdadeira autoridade reside e age nas administrações coloniais. Contudo, a classe dirigente mantém, no essencial, a sua autoridade cultural sobre as massas populares do grupo, com implicações políticas de grande importância.
Consciente desta realidade, o colonialismo, que reprime ou inibe pela raíz as manifestações culturais significativas da parte das massas populares, apoia e protege na cúpula, o prestígio e a influência cultural da classe dirigente. Instala chefes que gozem da sua confiança e sejam mais ou menos aceites pelas populações, concede-lhes vários privilégios materiais, incluindo a educação dos filhos mais velhos, cria postos de chefe onde não existiam, estabelece e incrementa relações de cordealidade com os dirigentes religiosos, constrói mesquitas, organiza viagens a Meca, etc. E, acima de tudo, garante, por intermédio dos órgãos repressivos da administração colonial, os privilégios económicos e sociais da classe dirigente em relação às massas populares. Mas nem tudo isto torna impossível que, entre as classes dirigentes, haja indivíduos ou grupos de indivíduos que adiram ao movimento de libertação, embora menos frequentemente do que no caso da “pequena burguesia” assimilada. Vários chefes tradicionais e religiosos integram-se na luta desde o início ou no seu decurso, dando uma contribuição entusiasta à causa da libertação. Mas ainda neste caso a vigilância é indispensável: mantendo bem firmes os seus preconceitos culturais de classe, os indivíduos desta categoria vêem em geral no movimento de libertação o único processo válido para, servindo-se dos sacrifícios das massas populares, conseguirem eliminar a opressão colonial sobre a sua própria classe e restabelecerem assim o seu domínio político e cultural absoluto sobre o povo.
No âmbito geral da contestação do domínio colonial imperialista e nas condições concretas a que nos referimos, verifica-se que, entre os mais fiéis aliados do opressor se encontram alguns altos funcionários e intelectuais de profissão liberal, assimilados, e um elevado número de representantes da classe dirigente dos meios rurais. Se esse facto dá uma medida da influência (negativa ou positiva) da cultura e dos preconceitos culturais no problema da opção política face ao movimento de libertação, revela igualmente os limites dessa influência e a supremacia do factor classe no comportamento das diversas categorias sociais. O alto funcionário ou o intelectual assimilado, caracterizado por uma total alienação cultural, identifica-se, na opção política, com o chefe tradicional ou religioso, que não sofreu qualquer influência cultural significativa estrangeira. É que essas duas categorias colocam acima de todos os dados ou solicitações de natureza cultural – e contra as aspirações do povo – os seus privilégios económicos e sociais, os seus interesses de classe. Eis uma verdade que o movimento de libertação não pode ignorar, sob pena de trair os objectivos económicos, políticos, sociais e culturais da luta.
Definir progressivamente uma cultura nacional
Tal como no plano político, e sem minimizar a contribuição positiva que as classes ou camadas privilegiadas podem dar à luta, o movimento de libertação deve, no plano cultural, basear a sua acção na cultura popular, seja qual for a diversidade dos níveis de cultura no país. A contestação cultural do domínio colonial – fase primária do movimento de libertação – só pode ser encarada eficazmente com base na cultura das massas trabalhadoras dos campos e das cidades, incluindo a “pequena burguesia” nacionalista (revolucionária), reafricanizada ou disponível para uma reconversão cultural. Seja qual for a complexidade desse panorama cultural de base, o movimento de libertação deve ser capaz de nele distinguir o essencial do secundário, o positivo do negativo, o progressivo do reaccionário, para caracterizar a linha mestra da definição progressiva de uma cultura nacional.
Para que a cultura possa desempenhar o papel importante que lhe compete no âmbito do desenvolvimento do movimento de libertação, este deve saber preservar os valores culturais positivos de cada grupo social bem definido, de cada categoria, realizando a confluência desses valores no sentido da luta, dando-lhes uma nova dimensão – a dimensão nacional. Perante esta necessidade, a luta de libertação é, acima de tudo, uma luta tanto pela preservação e sobrevivência dos valores culturais do povo como pela harmonização e desenvolvimento desses valores num quadro nacional.
A unidade política do movimento de libertação e do povo que ele representa e dirige implica a realização da unidade cultural das categorias sociais fundamentais para a luta. Essa unidade traduz-se, por um lado, por uma identificação total do movimento com a realidade do meio e com os problemas e as aspirações fundamentais do povo e, por outro, por uma identificação cultural progressiva das diversas categorias sociais que participam na luta. O processo desta deve harmonizar os interesses divergentes, resolver as contradições e definir os objectivos comuns, procurando a liberdade e o progresso. A tomada de consciência desses objectivos por amplas camadas da população, reflectida na determinação perante todas as dificuldades e todos os sacrifícios, é uma grande vitória política e moral Assim, trata-se igualmente de uma realização cultural decisiva para o desenvolvimento ulterior e o êxito do movimento de libertação.
A derrota cultural do colonialismo
Quanto maiores são as diferenças entre a cultura do povo dominado e a do opressor, mais possível se torna esta vitória. A história mostra que é menos difícil dominar do que preservar o domínio sobre um povo de cultura semelhante ou análoga à do conquistador. Talvez se possa mesmo afirmar que a derrota de Napoleão, fossem quais fossem as motivações económicas e políticas das suas guerras de conquista, foi não ter sabido (ou podido) limitar as suas ambições ao domínio dos povos cuja cultura era mais ou menos semelhante à França. O mesmo se poderia dizer de outros impérios, antigos, modernos ou contemporâneos.
Um dos erros mais graves, senão mesmo o mais grave, cometido pelas potências colonais em África, terá sido ignorar ou subestimar a força cultural dos povos africanos. Esta atitude é particularmente evidente no que se refere ao domínio cultural português, que não se contentou em negar absolutamente a existência aos valores culturais do Africano e a sua condição de ser social, como ainda teimou em proibir-lhe qualquer espécie de actividade política. O povo de Portugal, que não gozou as riquezas usurpadas aos povos africanos pelo colonialismo português, mas que assimilou, na sua maioria, a mentalidade imperialista das classes dirigentes do seu país, paga hoje muito caro, em três guerra coloniais, o erro de subestimar a nossa realidade cultural.
A resistência política e armada dos povos das colónias portuguesas, tal como dos outros países ou regiões de África, foi esmagada pela superioridade técnica do conquistador imperialista, com a cumplicidade ou a traição de algumas classes dirigentes indígenas. As elites fiéis à história e à cultura do povo foram destruídas. Foram massacradas populações inteiras. A era colonial instalou-se em todos os crimes da exploração que o caracterizam. Mas a resistência cultural do povo africano não foi destruída. Reprimida, perseguida, traída por algumas categorias sociais comprometidas com o colonialismo, a cultura africana sobreviveu a todas as tempestades refugiada nas aldeias, nas florestas e no espírito de gerações de vítimas do colonialismo.
Como a semente que espera durante muito tempo as condições propícias à germinação para preservar a continuidade da espécie e garantir a sua evolução, a cultura dos povos africanos desabrocha hoje de novo, através de todo o continente, nas lutas de libertação nacional. Sejam quais forem as formas dessas lutas, os seus êxitos ou fracassos e a duração da sua evolução, elas marcam o início de uma nova fase da história do continente e são, tanto na forma como no conteúdo, o facto cultural mais importante da vida dos povos africanos. Fruto e prova do vigor cultural, a luta de libertação dos povos de África abre novas perspectivas ao desenvolvimento da cultura, ao serviço do progresso.
Riqueza cultural da África
Passou já o tempo em que era necessário procurar argumentos para provar a maturidade cultural dos povos africanos. A irracionalidade das “teorias” racistas de um Gobineau ou de um Lévy-Bruhl não interessam nem convencem senão os racistas. Apesar do domínio colonial (e talvez por causa desse domínio), a África soube impor o respeito pelos seus valores culturais. Revelou-se mesmo como sendo um dos continentes mais ricos em valores culturais. De Cartago ou Guizeh ao Zimbabwe, de Meroé a Benin e Ifé, do Saara ou de Tombuctu a Kilwa, através da imensidade e da diversidade das condições naturais do continente, a cultura dos povos africanos é um facto inegável: tanto nas obras de arte como nas tradições orais e escritas, nas concepções cosmogónicas como na música e nas danças, nas religiões e crenças como no equilíbrio dinâmico das estruturas económicas, políticas e sociais que o homem africano soube criar.
Se o valor universal da cultura africana é, presentemente, um facto incontestável, não devemos no entanto esquecer que o homem africano, cujas mãos, como diz o poeta, “colocaram pedras nos alicerces do mundo” ; a desenvolveu em condições, senão sempre, pelo menos frequentemente, hostis: dos desertos às florestas equatoriais, dos pântanos do litoral às margens dos grandes rios sujeitos a cheias frequentes, através e contra todas as dificuldades, incluindo os flagelos destruidores não só das plantas e dos animais como também do homem. Pode dizer-se, de acordo com Basil Davidson e outros historiadores das sociedades e das culturas africanas, que as realizações do génio africano, nos planos económico, político, social e cultural, face ao carácter pouco hospitaleiro do meio, são uma epopeia comparável aos maiores exemplos históricos da grandeza do homem.
A dinâmica da cultura
Como é óbvio, esta realidade constitui um motivo de orgulho e um elemento estimulante para os que lutam pela liberdade e o progresso dos povos africanos. Mas importa não perder de vista que nenhuma cultura é um todo perfeito e acabado. A cultura, tal como a história, é necessariamente um fenómeno em expansão, em desenvolvimento. Mais importante ainda é ter em consideração o facto que a característica fundamental de uma cultura é a sua íntima ligação, de dependência e reciprocidade, com a realidade económica e social do meio, com o nível de forças produtivas e o modo de produção da sociedade que a cria.
A cultura, fruto da história, reflecte, a cada momento, a realidade material e espiritual da sociedade, do homem-indivíduo e do homem-ser social, face aos conflitos que os opõem à natureza e aos imperativos da vida em comum. Daí que qualquer cultura comporte elementos essenciais e secundários, forças e fraquezas, virtudes e defeitos, aspectos positivos e negativos, factores de progresso e estagnação ou regressão. Daí igualmente que a cultura – criação da sociedade e síntese dos equilíbrios e soluções que elabora para resolver os conflitos que a caracterizam em cada fase da história – seja uma realidade social independente da vontade dos homems, da cor da pele ou da forma dos olhos.
Numa análise mais profunda da realidade cultural, não se pode pretender que existem culturas continentais ou raciais. E isso porque, como a história, a cultura se desenvolve num processo desigual, ao nível de um continente, de uma “raça” ou mesmo de uma sociedade. As coordenadas da cultura, tal como as de qualquer fenómeno em evolução, variam no espaço e no tempo, quer sejam materiais (físicas) ou humanas (biológicas e sociais). O facto de reconhecer a existência de traços comuns e específicos nas culturas dos povos africanos, independentemente da cor da sua pele, não implica necessariamente que exista uma única no continente: da mesma forma que, do ponto de vista económico e político, se verifica a existência de várias Áfricas, há também várias culturas africanas.
É fora de dúvida que a subestimação dos valores culturais dos povos africanos, baseada nos sentimentos racistas e na intenção de perpetuar a sua exploração pelo estrangeiro, fez muito mal a África. Mas, face à necessidade vital do progresso, os seguintes factos ou comportamentos não são menos prejudiciais: os elogios não selectivos; a exaltação sistemática das virtudes sem condenar os defeitos; a cega aceitação dos valores da cultura sem considerar o que ela tem ou pode ter de negativo, de reaccionário ou de regressivo, a confusão entre o que é a expressão de uma realidade histórica objectiva e material e o que parece ser uma criação do espírito ou o resultado de uma natureza específica; a ligação absurda das criações artísticas, sejam válidas ou não, a pretensas características de uma raça; finalmente a apreciação crítica não científica ou a-científica, do fenómeno cultural.
Da mesma forma, o que importa não é perder tempo em discussões mais ou menos bizantinas sobre a especificidade ou não especificidade dos valores culturais africanos, mas sim encarar esses valores como uma conquista de uma parte da humanidade para o património comum a toda a humanidade, realizada numa ou em diversas fases da sua evolução. O que interessa é proceder à analise crítica das culturas africanas face ao movimento de libertação e às exigências do progresso – face a esta nova etapa da história da África. Poderemos assim ter consciência do seu valor no quadro da civilização universal, mas comparar este valor com os das outras culturas, não para determinar a sua superioridade ou inferioridade, mas para determinar, no âmbito geral da luta pelo progresso, qual é a contribuição que deu e deve dar e quais são as contribuições que pode e deve receber.
O movimento de libertação deve, como já dissemos, basear a sua acção no conhecimento profundo da cultura do povo e saber apreciar, pelo seu justo valor, os elementos dessa cultura, assim como os diversos níveis que atinge em cada categoria social. Deve igualmente ser capaz de distinguir, no conjunto dos valores culturais do povo, o essencial e o secundário, o positivo e o negativo, o progressista e o reaccionário, as forças e as fraquezas, tudo isso em função das exigências da luta e para poder centrar a sua acção no essencial sem esquecer o secundário, provocar o desenvolvimento dos elementos positivos e progressistas e combater, com diplomacia mas rigorosamente, os elementos negativos e reaccionários; e, finalmente, para que possa utilizar eficazmente as forças e eliminar as fraquezas, ou transformá-las em forças.
A cultura nacional, condição do desenvolvimento da luta
Quanto mais tomamos consciência de que a principal finalidade do movimento de libertação ultrapassa a conquista da independência política para se situar no plano superior da libertação total das forças produtivas e da construção do progresso económico, social e cultural do povo, mais evidente se torna a necessidade de proceder a uma análise selectiva dos valores da cultura no âmbito da luta. Os valores negativos da cultura são, em geral, um obstáculo ao desenvolvimcnto da luta e à construção desse progresso. Tal necessidadc torna-se mais aguda nos casos em que, para enfrentar a violência colonialista, o movimento de libertação tem de mobilizar e organizar o povo, sob a direcção de uma organização política sólida e disciplinada, a fim de recorrer à violência libertadora – a luta armada de libertação nacional.
Nesta perspectiva, o movimento de libertação deve ser capaz, para além da análise acima exposta, de efectuar, passo a passo mas solidamente, no decurso da evolução da sua acção política, a confluência dos níveis de cultura das diversas categorias sociais disponíveis para a luta e transformá-los na força cultural nacional que serve de base ao desenvolvimento da luta armada e que é a sua condição. Convém notar que a análise da realidade cultural dá já uma medida das forças e das fraquezas do povo face às exigências de luta e representa, portanto, uma contribuição valiosa para a estratégia e as tácticas a seguir, tanto no plano político como militar. Mas só no decurso da luta, desencadeada a partir de uma base satisfatória de unidade política e moral, a complexidade dos problemas culturais surge em toda a sua amplitude. Isso obriga com frequência a adaptações sucessivas da estratégia e das tácticas às realidades que só a luta pode revelar. A experiência da luta demonstra como é utópico e absurdo pretender aplicar esquemas utilizados por outros povos durante a sua luta de libertação e soluções por eles encontradas para os problemas que tiveram que enfrentar, sem considerar a realidade local (e, especialmente, a realidade cultural).
Pode dizer-se que, no início da luta, seja qual for o seu grau de preparação, nem a direcção dos movimento de libertação nem as massas militantes e populares têm uma consciência nítida do peso da influência dos valores culturais na evolução dessa mesma luta: quais as possibilidades que cria, quais os limites que impõe e, principalmente, como e quanto a cultura é, para o povo, uma fonte inesgotável de coragem, de meios materiais e morais, de energia física e psíquica, que lhe permitem aceitar sacrifícios e mesmo fazer “milagres”; e, igualmente, sob alguns aspectos, como pode ser uma fonte de obstáculos e dificuldades, de concepções erradas da realidade, de desvios no cumprimento do dever e de limitação do ritmo e da eficácia da luta face às exigências políticas, técnicas e científicas da guerra.
A luta armada. Instrumento de unificação e de progresso cultural
A luta armada de libertação, desencadeada como resposta à agressão do opressor colonialista, revela-se como um instrumento doloroso mas eficaz para o desenvolvimento do nível cultural, tanto das camadas dirigentes do movimento de libertação como das diversas categorias sociais que participam na luta.
Os dirigentes do movimento de libertação, originários da “pequena burguesia” (intelectuais, empregados) ou dos meios trabalhadores das cidades (operários, motoristas, assalariados em geral), tendo de viver quotidianamente com as diversas camadas componesas, no seio das populações rurais, acabam por melhor conhecer o povo, descobrem, na própria fonte a riqueza dos seus valores culturais (filosóficos, políticos, artísticos, sociais e morais), adquirem uma consciência mais nítida das realidades económicas do país, dos problemas, sofrimentos e aspirações das massas populares. Constatam, não sem um certo espanto, a riqueza de espírito, a capacidade de argumentação e de exposição clara das ideias, a facilidade de compreensão e assimilação dos conceitos por parte das populações ainda ontem esquecidas e mesmo desprezadas e consideradas pelo colonizador, e até por alguns nacionais, como seres incapazes. Os dirigentes enriquecem assim a sua cultura – cultivam-se e libertam-se de complexos, reforçando a capacidade de servir o movimento, ao serviço do povo.
Por seu lado, as massas trabalhadoras e, em especial, os camponeses, geralmente analfabetos e que nunca ultrapassaram os limites da aldeia ou da região, perdem, nos contactos com outras categorias, os complexos que os limitavam nas relacões com outros grupos étnicos e sociais; compreendem a sua condição de elementos determinantcs da luta; quebram as grilhetas do universo da aldeia para se integrarem progressivamente no país e no mundo; adquirem uma infinidade de novos conhecimentos, úteis à sua actividadc imediata e futura no âmbito da luta; reforçam a consciência política, assimilando os princípios da revolução nacional e social postulada pela luta. Tornam-se mais aptos assim para desempenhar o papel decisivo de força principal do movimento de libertação.
Como é sabido, a luta armada de libertação exige a mobilização e a organização de uma maioria significativa da população, a unidade política e moral das diversas calegorias sociais, o uso eficaz de armas modernas e de outros meios de guerra, a liquidação progressiva dos restos de mentalidade tribal, a recusa das regras e dos tabus sociais e religiosos contrários ao desenvolvimento da luta (gerontocracia, nepotismo, inferioridade social da mulher, ritos e práticas incompatíveis com o carácter racional e nacional da luta, etc.) e opera ainda muitas outras modificações profundas na vida das populações. A luta armada de libertação implica, portanto, uma verdadeira marcha forçada no caminho do progresso cultural.
Se aliarmos a estes factos, inerentes a uma luta armada de libertação, a prática da democracia, da crítica e da autocrítica, a responsabilidade crescente das populações na gestão da sua vida, a alfabetização, a criação de escolas e de assistência sanitária, a formação de quadros originários dos meios rurais e operários – assim como outras realizações – veremos que a luta armada de libertação é não apenas um facto cultural mas também um factor de cultura. Essa é, sem dúvida alguma, para o povo, a primeira compensação aos esforços e sacrifícios que são o preço da guerra. Perante esta perspectiva compete ao movimento de libertação definir daramente os objectivos da resistência cultural, parte integrante e determinante da luta.
Os objectivos da resistência cultural
De tudo o que acabámos de dizer pode concluir-se que, no quadro da conquista da independência nacional e na perspectiva da construção do progresso económico e social do povo, esses objectivos podem ser, pelo menos, os seguintes:
- desenvolvimento de uma cultura popular e de todos os valores culturais positivos, autóctones;
- desenvolvimento de uma cultura nacional baseada na história e nas conquistas da própria luta;
- elevação constante da consciência política e moral do povo (de todas as categorias sociais) e do patriotismo, espírito de sacríficio e dedicação à causa da independência, da justiça e do progresso;
- desenvolvimento de uma cultura científica, técnica e tecnológica compatível com as exigências do progresso;
- desenvolvimento, com base numa assimilação crítica das conquistas da humanidade nos domínios da arte, da ciência, da literatura, etc., de uma cultura universal tendente a uma progressiva integração no mundo actual e nas perspectivas da sua evolução;
- elevação constante e generalizada dos sentimentos de humanismo e solidariedade, respeito e dedicação desinteressada à pessoa humana.
A realização destes objectivos é, com efeito, possível, pois a luta armada de libertação, nas condições concretas da vida dos povos africanos, enfrentando o desafio imperialista, é um acto de fecundação da história, a expressão máxima da nossa cultura e da nossa africanidade. Deve traduzir-se, no momento da vitória, por um salto em frente significativo da cultura do povo que se liberta.
Se tal não se verificar, então os esforços e sacrifícios realizados no decurso da luta terão sido vãos. Esta terá falhado os seus objectivos e o povo terá perdido uma oportunidade de progresso no âmbito geral da história.
Ao celebrar com esta cerimónia a memória do Dr. Eduardo Mondlane, prestamos homenagem ao homem político, ao combatente da liberdade e, especialmente, ao homem de cultura. Não apenas da cultura adquirida no decurso da sua vida pessoal e nos bancos da universidade, mas principalmente no seio do seu povo, no quadro da luta de libertação do seu povo.
Pode dizer-se que Eduardo Mondlane foi selvaticamente assassinado porque foi capaz de se identificar com a cultura do seu povo, com as suas mais profundas aspirações, através e contra todas as tentativas ou tentações de alienação da sua personalidade de africano e de moçambicano. Por ter forjado uma cultura nova na luta, caiu como um combatente. É evidentemente fácil acusar os colonialistas portugueses e os agentes do imperialismo, seus aliados, do crime abominável cometido contra a pessoa de Eduardo Mondlane, contra o povo de Moçambique e contra a África. Foram eles que cobardemente o assassinaram. É no entanto necessário que todos os homens de cultura, todos os combatentes da liberdade, todos os espíritos sedentos de paz e de progresso – todos os inimigos do colonialismo e do racismo – tenham a coragem de tomar sobre os seus ombros a parte de responsabilidade que lhes compete nessa morte trágica. Porque, se o colonialismo português e os agentes imperialistas podem ainda assassinar impunemente um homem como o Dr. Eduardo Mondlane, é porque algo de podre continua a vegetar no seio da humanidade: o domínio imperialista. É porque os homens de boa vontade, defensores da cultura dos povos, ainda não realizaram o seu dever à superfície do planeta.
Quanto a nós, isso dá bem a medida das responsabilidades dos que nos ouvem, neste templo da cultura, em relação ao movimento de libertação dos povos oprimidos.
nota: Versão extraída de “Obras Escolhidas de Amílcar Cabral: A Arma da teoria. Unidade e Luta”, vol. 1, textos coordenados por Mário de Andrade, Lisboa, Comité Executivo da Luta do PAIGC e Seara Nova, 1995, pp. 221-233.
Fotos cedidas pela Fundação Amílcar Cabral, Praia
- 1. Conferência pronunciada no primeiro Memorial dedicado ao Dr. Eduardo Mondlane, Universidade de Syracusa, (Estado Unidos de America) – (Programa de Estudos da África de Leste), em 20 de Fevereiro de 1970.