E se, para lá das distrações, falarmos do racismo mesmo a sério?

A cor não é uma realidade humana ou pessoal; é uma realidade política. Mas esta é uma distinção tão difícil que o Ocidente ainda não foi capaz de a fazer. E no centro desta terrível tempestade, esta vasta confusão, estão os negros desta nação, que agora devem partilhar o destino de uma nação que nunca os aceitou.

James Baldwin

'Gargalheira ou quem falará por nós?', de Sidney Amaral, 2014'Gargalheira ou quem falará por nós?', de Sidney Amaral, 2014

No passado dia 21 de novembro, o canal de Youtube brasileiro “Pensar Africamente” convidou-me para um debate sobre o racismo e o avanço do discurso do ódio no mundo. A minha intervenção fez estalar em Portugal uma enorme polémica na opinião pública, por causa da evocação parafrástica de um conceito filosófico emprestado a Fanon e à teoria do afropessimismo. 

Se estivesse interessado na polémica, teria já respondido — e confesso que não faltaram motivos face a todas as alarvidades, algumas criminosas, que foram ditas. Mas, esvaída a espuma da manipulação mediática e política das minhas palavras e tendo em conta a importância da questão racial para a solidez democrática do regime, importa voltar ao que verdadeiramente interessa para a construção de um projeto coletivo comum: o debate sério sobre a profundidade do flagelo do racismo. 

Portanto, não venho corrigir, nem contextualizar e, muito menos, explicar nada. Porque se, no limite, a polémica fosse sobre o “anacronismo” de trazer Fanon para o debate atual ou até mesmo sobre a pertinência do seu pensamento para a questão racial, haveria por onde pegar o debate de forma honesta. Mas não foi nada disso que aconteceu. Se tivesse sido, teria sido um debate que valeria a pena, mesmo que dele cada qual pudesse legitimamente discordar. Porém, sabemos que no debate político não há correções ou contextualizações que valham perante a desonestidade e a má fé. Ademais, não estabeleço interlocução com racistas ativos ou passivos, pois já não tenho paciência nem energia para lhes exigir que assumam a sua responsabilidade. Toda a paciência e energia que tiver serão para combater o racismo, da forma mais contundente que puder. A este respeito, dizem-me muitas vozes genuinamente preocupadas com o maior reforço do racismo que é preciso “estabelecer pontes.” Mas uma ponte supõe duas margens e qual a margem para acomodar a indecência e a indignidade? No caso da violência racial, não há hipótese de ponte, porque a margem é só uma, a da dignidade. E não há lugar para contemplação ou compreensão perante a indignidade e a violência. Quando se exige tino ou tento na língua face ao sofrimento e a violência, está-se a perpetuar o imaginário da crueldade que sempre relativizou a dor e a devastação que o racismo é.  

Consubstancial do seu gene, a estrutura cultural colonial, racista, machista e homofóbica não suporta o confronto com a realidade da sua violência e empenha-se em tudo fazer para, sobre ela, desconversar sempre que for desafiada a encará-la de frente. Não é portanto, de todo surpreendente, o coro de virgens ofendidas com as minhas palavras, que funcionou como um enigma do espelho tentando projetar a responsabilidade e o desejo mórbido dos horrores do passado e do presente no alvo dos mesmos. É tudo absolutamente freudiano.

Aqui, o principal interesse político e ideológico é sempre distorcer e tresler a palavra e, por extensão, a própria realidade, porque não há interesse nenhum em debate seja o que for no que ao racismo diz respeito, mas sim, em minar o debate. Aqueles que deturparam as minhas palavras tinham um único objetivo: mobilizar as suas hostes contra o antirracismo que incomoda e assusta o consciente coletivo. O antirracismo é uma arma de arremesso político para fugir dos melindres da responsabilidade política de não só não terem feito nada para combater o racismo, como para usá-lo como fundo de comércio eleitoral perante o sentimento de abandono das classes populares mais desfavorecidas, instigando entre elas o ódio e a disputa pelas migalhas. Com a sua retórica racista, transformam os mais deserdados da sociedade em sentinelas dos interesses das elites. Aliás, não deixa de ser curioso que sejam mais os sectores que mais vociferam contra o policiamento da palavra, a pseudo cultura do cancelamento, ou contra o chavão do politicamente correto que se mobilizaram fortemente contra a suposta transposição de todas as linhas vermelhas que eu teria cometido. 

A estratégia dos racistas assumidos e dos seus coniventes, seja por omissão, seja por preguiça política, é a distração para que não se discuta nada sobre o racismo. É o conhecido truque da meta-discussão, uma discussão da discussão e nunca do objeto da discussão, o racismo. E é uma atitude que ilustra até a saciedade como a branquitude, enquanto base estrutural de privilégios historicamente acumulados, continua como um dispositivo estruturante das relações de poder, cuja manutenção alimenta a teia de desigualdades socioeconómicas que fustigam os sujeitos racializados nas sociedades com história colonial, como a nossa. No fundo, toda esta polémica foi uma cretinice ideológica e uma grosseira manipulação política. 

Daí que o propósito aqui não seja de todo cair na armadilha de procurar refutar a manhosa deturpação das minhas palavras, nem a maliciosa campanha de linchamento público. O que verdadeiramente importa é como sair do beco da distração manipulatória que quer condenar os sujeitos racializados a permanecerem no lugar e com o peso da refutação/explicação de uma violência que se abate sobre si, perante a negação do racismo onde se encurralou a maioria da sociedade e das instituições. O que mais mobiliza os sujeitos racializados é a disputa pela conquista da sua capacidade em constituir-se numa instância de proposta política alternativa à ordem cultural racista vigente. Uma proposta de rutura com o status quo que tudo faz para manter o tabu sobre o racismo. Identificar, nomear e combater o racismo estrutural. É isto que irrita todos quantos não se conseguem desfiliar da herança ideológica colonial, racista machista e assassina. Como recentemente lembrou Zakiyyah Iman Jackson, professora da Universidade da Carolina do Sul, a respeito do seu recente livro, “o humanismo eurocêntrico precisa da negritude para erguer a branquitude: para definir os seus próprios limites, para designar a humanidade como uma conquista, e ainda para dar forma à categoria de animal”. A ideia de raça, mobilizada como instrumento político de distinção, seleção, categorização e organização social sustentou-se numa cultura política da violência e da morte. É por isso que ela tem de ser morta conjuntamente com todos os seus espaços e imaginários. Só assim a humanidade se salvará da repetição das catástrofes históricas.

Achille Mbembe, num dos seus mais brilhantes ensaios, lembra que a obra de Fanon que assusta e, ainda bem, tanta gente, “inscreveu-se diretamente em três dos mais determinantes debates e controvérsias do seculo XX – o debate sobre a espécie humana (racismo), sobre a divisão do mundo e as condições de dominação do planeta (imperialismo e direito à autodeterminação dos povos) e sobre o estatuto de máquina e o destino da guerra (a nossa relação com a destruição e a morte).” E Fanon dizia justamente que “quando nos revoltamos não é para uma cultura específica. Nós nos revoltamos simplesmente porque, por muitas razões, não podemos mais respirar.” Ou seja, é insuportável o sufoco secular e mortífero do racismo que tem destruído e continua a destruir tudo, até a mais ínfima parcela da humanidade das pessoas racializadas, por conta da ossificação da supremacia branca em todas as relações de poder. O racismo, para além de ainda ser uma vigorosa ideologia, consolidou-se como prática cultural transversal a quase todos os aspetos da vida das pessoas racializadas.

E, portanto, repito: Para salvar a humanidade e restaurar a sua parte roubada aos outros povos em nome de uma pretensa superioridade civilizacional que alimenta o supremacismo branco — este prolongamento do processo esclavagista colonial de desumanização, teremos de definitivamente matar em nós a ideia do “homem branco colonialista, racista e assassino”, demasiado marcado pelo desejo de erguer um humanismo exclusivo, só para si. O culto deste homem como alfa e ómega da humanidade é o alicerce da branquitude e bojo da supremacia branca, um dispositivo psicológico coletivo, que alimenta o racismo. Ora, isto é não só insustentável como irreconciliável com os valores de igualdade da dignidade humana, independentemente da cor de pele ou pertença cultural. Este é o convite de Fanon que os pensadores da vertente anglo-saxónica do afropessimismo explicam. É um simples convite a “sair desta grande noite,” onde o imaginário colonial nos mergulhou e estendeu o leito do racismo.

E qual é o nó que a pseudo polémica que se gerou não quer desatar? Antes, a pergunta apropriada é: porquê e como, tanto tempo depois, ainda subsiste uma função cognitiva que ativa um sentimento de filiação ao “homem branco colonialista, racista e assassino”, ao ponto de ativar um sentimento de ameaça e criar uma comoção coletiva tão grande no espaço público? Baldwin explica isso bem, numa entrevista a Kenneth Clark, em 1963, quando diz: “O que os Brancos devem fazer é procurar neles próprios por que é que precisaram de um negro logo, no início. Porque, eu não sou um negro, sou um homem, mas se acreditam que sou um negro é por que precisam de um negro. […] Não sou o negro e, se o inventaram – são vocês, os Brancos que inventaram o negro – então têm de descobrir porquê.” Parafraseando Baldwin de novo, acrescento que o futuro da nossa comunidade, seja ele radioso ou sombrio, dependerá da nossa capacidade ou não em resolver esta questão que ele levanta. A empresa colonial e esclavagista estruturou o racismo que, por sua vez, sustentou a formação do imaginário coletivo sobre as suas vítimas de outrora que são os ascendentes daquelas e daqueles que são hoje violentados a partir desta visão do mundo. Face à patologia coletiva do racismo, enquanto continuidade histórica da condensação das violências física e simbólica, precisamos do anti-racismo político como cura. O anti-racismo é, portanto, muito mais do que um exercício de refutação. É um projeto de sociedade assente numa ética radical da recusa da subjugação e da reprodução da violência.  

Uma sociedade que se fundou a partir da violência exercida sobre outrem só se salvará quando for capaz de fazer a catarse desta violência. Esta catarse passa por se dispor a ir à “farmácia de Fanon” buscar a cura.

Que exista uma turba ululante que não queira ir à “farmácia de Fanon” para curar patologia coletiva do racismo já sabíamos. Que ela determine os termos da cura que ela se recusa a tomar, isso já só se permitirmos. Portanto, em vez de manobras de distração e cinismo político, do que precisamos é de enfrentar com coragem o racismo. É a única responsabilidade que podemos assumir se queremos cuidar da humanidade de todos e de todas. O antirracismo intransigente é o único antídoto democrático contra o desejo o veneno do desejo de fascismo que paira no ar.

 

MB- 11-12-2020 

por Mamadou Ba
Mukanda | 20 Dezembro 2020 | antiracismo, branquitude, Franz Fanon, linguagem, palavra, racismo