E se, para lá das distrações, falarmos do racismo mesmo a sério?
A cor não é uma realidade humana ou pessoal; é uma realidade política. Mas esta é uma distinção tão difícil que o Ocidente ainda não foi capaz de a fazer. E no centro desta terrível tempestade, esta vasta confusão, estão os negros desta nação, que agora devem partilhar o destino de uma nação que nunca os aceitou.
James Baldwin
No passado dia 21 de novembro, o canal de Youtube brasileiro “Pensar Africamente” convidou-me para um debate sobre o racismo e o avanço do discurso do ódio no mundo. A minha intervenção fez estalar em Portugal uma enorme polémica na opinião pública, por causa da evocação parafrástica de um conceito filosófico emprestado a Fanon e à teoria do afropessimismo.
Se estivesse interessado na polémica, teria já respondido — e confesso que não faltaram motivos face a todas as alarvidades, algumas criminosas, que foram ditas. Mas, esvaída a espuma da manipulação mediática e política das minhas palavras e tendo em conta a importância da questão racial para a solidez democrática do regime, importa voltar ao que verdadeiramente interessa para a construção de um projeto coletivo comum: o debate sério sobre a profundidade do flagelo do racismo.
Portanto, não venho corrigir, nem contextualizar e, muito menos, explicar nada. Porque se, no limite, a polémica fosse sobre o “anacronismo” de trazer Fanon para o debate atual ou até mesmo sobre a pertinência do seu pensamento para a questão racial, haveria por onde pegar o debate de forma honesta. Mas não foi nada disso que aconteceu. Se tivesse sido, teria sido um debate que valeria a pena, mesmo que dele cada qual pudesse legitimamente discordar. Porém, sabemos que no debate político não há correções ou contextualizações que valham perante a desonestidade e a má fé. Ademais, não estabeleço interlocução com racistas ativos ou passivos, pois já não tenho paciência nem energia para lhes exigir que assumam a sua responsabilidade. Toda a paciência e energia que tiver serão para combater o racismo, da forma mais contundente que puder. A este respeito, dizem-me muitas vozes genuinamente preocupadas com o maior reforço do racismo que é preciso “estabelecer pontes.” Mas uma ponte supõe duas margens e qual a margem para acomodar a indecência e a indignidade? No caso da violência racial, não há hipótese de ponte, porque a margem é só uma, a da dignidade. E não há lugar para contemplação ou compreensão perante a indignidade e a violência. Quando se exige tino ou tento na língua face ao sofrimento e a violência, está-se a perpetuar o imaginário da crueldade que sempre relativizou a dor e a devastação que o racismo é.
Consubstancial do seu gene, a estrutura cultural colonial, racista, machista e homofóbica não suporta o confronto com a realidade da sua violência e empenha-se em tudo fazer para, sobre ela, desconversar sempre que for desafiada a encará-la de frente. Não é portanto, de todo surpreendente, o coro de virgens ofendidas com as minhas palavras, que funcionou como um enigma do espelho tentando projetar a responsabilidade e o desejo mórbido dos horrores do passado e do presente no alvo dos mesmos. É tudo absolutamente freudiano.
Aqui, o principal interesse político e ideológico é sempre distorcer e tresler a palavra e, por extensão, a própria realidade, porque não há interesse nenhum em debate seja o que for no que ao racismo diz respeito, mas sim, em minar o debate. Aqueles que deturparam as minhas palavras tinham um único objetivo: mobilizar as suas hostes contra o antirracismo que incomoda e assusta o consciente coletivo. O antirracismo é uma arma de arremesso político para fugir dos melindres da responsabilidade política de não só não terem feito nada para combater o racismo, como para usá-lo como fundo de comércio eleitoral perante o sentimento de abandono das classes populares mais desfavorecidas, instigando entre elas o ódio e a disputa pelas migalhas. Com a sua retórica racista, transformam os mais deserdados da sociedade em sentinelas dos interesses das elites. Aliás, não deixa de ser curioso que sejam mais os sectores que mais vociferam contra o policiamento da palavra, a pseudo cultura do cancelamento, ou contra o chavão do politicamente correto que se mobilizaram fortemente contra a suposta transposição de todas as linhas vermelhas que eu teria cometido.
A estratégia dos racistas assumidos e dos seus coniventes, seja por omissão, seja por preguiça política, é a distração para que não se discuta nada sobre o racismo. É o conhecido truque da meta-discussão, uma discussão da discussão e nunca do objeto da discussão, o racismo. E é uma atitude que ilustra até a saciedade como a branquitude, enquanto base estrutural de privilégios historicamente acumulados, continua como um dispositivo estruturante das relações de poder, cuja manutenção alimenta a teia de desigualdades socioeconómicas que fustigam os sujeitos racializados nas sociedades com história colonial, como a nossa. No fundo, toda esta polémica foi uma cretinice ideológica e uma grosseira manipulação política.
Daí que o propósito aqui não seja de todo cair na armadilha de procurar refutar a manhosa deturpação das minhas palavras, nem a maliciosa campanha de linchamento público. O que verdadeiramente importa é como sair do beco da distração manipulatória que quer condenar os sujeitos racializados a permanecerem no lugar e com o peso da refutação/explicação de uma violência que se abate sobre si, perante a negação do racismo onde se encurralou a maioria da sociedade e das instituições. O que mais mobiliza os sujeitos racializados é a disputa pela conquista da sua capacidade em constituir-se numa instância de proposta política alternativa à ordem cultural racista vigente. Uma proposta de rutura com o status quo que tudo faz para manter o tabu sobre o racismo. Identificar, nomear e combater o racismo estrutural. É isto que irrita todos quantos não se conseguem desfiliar da herança ideológica colonial, racista machista e assassina. Como recentemente lembrou Zakiyyah Iman Jackson, professora da Universidade da Carolina do Sul, a respeito do seu recente livro, “o humanismo eurocêntrico precisa da negritude para erguer a branquitude: para definir os seus próprios limites, para designar a humanidade como uma conquista, e ainda para dar forma à categoria de animal”. A ideia de raça, mobilizada como instrumento político de distinção, seleção, categorização e organização social sustentou-se numa cultura política da violência e da morte. É por isso que ela tem de ser morta conjuntamente com todos os seus espaços e imaginários. Só assim a humanidade se salvará da repetição das catástrofes históricas.
Achille Mbembe, num dos seus mais brilhantes ensaios, lembra que a obra de Fanon que assusta e, ainda bem, tanta gente, “inscreveu-se diretamente em três dos mais determinantes debates e controvérsias do seculo XX – o debate sobre a espécie humana (racismo), sobre a divisão do mundo e as condições de dominação do planeta (imperialismo e direito à autodeterminação dos povos) e sobre o estatuto de máquina e o destino da guerra (a nossa relação com a destruição e a morte).” E Fanon dizia justamente que “quando nos revoltamos não é para uma cultura específica. Nós nos revoltamos simplesmente porque, por muitas razões, não podemos mais respirar.” Ou seja, é insuportável o sufoco secular e mortífero do racismo que tem destruído e continua a destruir tudo, até a mais ínfima parcela da humanidade das pessoas racializadas, por conta da ossificação da supremacia branca em todas as relações de poder. O racismo, para além de ainda ser uma vigorosa ideologia, consolidou-se como prática cultural transversal a quase todos os aspetos da vida das pessoas racializadas.
E, portanto, repito: Para salvar a humanidade e restaurar a sua parte roubada aos outros povos em nome de uma pretensa superioridade civilizacional que alimenta o supremacismo branco — este prolongamento do processo esclavagista colonial de desumanização, teremos de definitivamente matar em nós a ideia do “homem branco colonialista, racista e assassino”, demasiado marcado pelo desejo de erguer um humanismo exclusivo, só para si. O culto deste homem como alfa e ómega da humanidade é o alicerce da branquitude e bojo da supremacia branca, um dispositivo psicológico coletivo, que alimenta o racismo. Ora, isto é não só insustentável como irreconciliável com os valores de igualdade da dignidade humana, independentemente da cor de pele ou pertença cultural. Este é o convite de Fanon que os pensadores da vertente anglo-saxónica do afropessimismo explicam. É um simples convite a “sair desta grande noite,” onde o imaginário colonial nos mergulhou e estendeu o leito do racismo.
E qual é o nó que a pseudo polémica que se gerou não quer desatar? Antes, a pergunta apropriada é: porquê e como, tanto tempo depois, ainda subsiste uma função cognitiva que ativa um sentimento de filiação ao “homem branco colonialista, racista e assassino”, ao ponto de ativar um sentimento de ameaça e criar uma comoção coletiva tão grande no espaço público? Baldwin explica isso bem, numa entrevista a Kenneth Clark, em 1963, quando diz: “O que os Brancos devem fazer é procurar neles próprios por que é que precisaram de um negro logo, no início. Porque, eu não sou um negro, sou um homem, mas se acreditam que sou um negro é por que precisam de um negro. […] Não sou o negro e, se o inventaram – são vocês, os Brancos que inventaram o negro – então têm de descobrir porquê.” Parafraseando Baldwin de novo, acrescento que o futuro da nossa comunidade, seja ele radioso ou sombrio, dependerá da nossa capacidade ou não em resolver esta questão que ele levanta. A empresa colonial e esclavagista estruturou o racismo que, por sua vez, sustentou a formação do imaginário coletivo sobre as suas vítimas de outrora que são os ascendentes daquelas e daqueles que são hoje violentados a partir desta visão do mundo. Face à patologia coletiva do racismo, enquanto continuidade histórica da condensação das violências física e simbólica, precisamos do anti-racismo político como cura. O anti-racismo é, portanto, muito mais do que um exercício de refutação. É um projeto de sociedade assente numa ética radical da recusa da subjugação e da reprodução da violência.
Uma sociedade que se fundou a partir da violência exercida sobre outrem só se salvará quando for capaz de fazer a catarse desta violência. Esta catarse passa por se dispor a ir à “farmácia de Fanon” buscar a cura.
Que exista uma turba ululante que não queira ir à “farmácia de Fanon” para curar patologia coletiva do racismo já sabíamos. Que ela determine os termos da cura que ela se recusa a tomar, isso já só se permitirmos. Portanto, em vez de manobras de distração e cinismo político, do que precisamos é de enfrentar com coragem o racismo. É a única responsabilidade que podemos assumir se queremos cuidar da humanidade de todos e de todas. O antirracismo intransigente é o único antídoto democrático contra o desejo o veneno do desejo de fascismo que paira no ar.
MB- 11-12-2020