Gempenstrasse
Moro na Gempenstrasse número 13, um apartamento partilhado com Roberto Sturm, filho de um aviador austríaco e de uma espanhola da Andaluzia. O apelido Sturm (em português significa tempestade) assenta que nem uma luva no meu aliado, pessoa temperamental mas de uma bondade sem limites. Conhecemo-nos há cerca de três anos quando comecei a trabalhar no Teatro da Basileia, nos estúdios de pintura e construção de cenários. Posso dizer que foi amizade à primeira vista. Com o tempo vim a saber que ele nasceu na Áustria e cresceu em Espanha onde o pai, comunista ferrenho, morreu combatendo o abominável Francisco Franco. Com vinte anos e o saco cheio de franquismo, Roberto deixou Valência num dia de Verão e rumou à Suíça com a mulher Isabel, por quem esteve anos perdidamente apaixonado.
Aqui nesta pequena cidade, no famoso triângulo fronteiriço com a Alemanha e a França, baralhado com a diferença cultural em relação à sua Espanha, Roberto confidenciou-me o quanto lhe custa adaptar-se. Após várias contrariedades com a bófia da emigração, conseguiu por fim ingressar em Belas Artes para estudar pintura e desenho. Por sermos os únicos estrangeiros a labutarem por aqui no teatro, e por eu falar fluentemente espanhol, ficamos unha com carne e é com orgulho que o considero um autêntico guru. Foi ele que me baptizou na fantástica literatura latino-americana. Hoje sou fã incondicional do real maravilloso,como lhe chamou o mestre Cubano Alejo Carpentier. Com obras de Borges, Cortazar, Fuentes, Carpentier, Otávio Paz, Vallejo, Lesama Lima, Ernesto Sabato e outros, confesso que a minha vida mudou 365 graus.
De facto cheguei a esta casa em condições bizarras. Lembro que foi ao chatear-me com Zola, a mulher com quem morava e ainda amo (uma daquelas que só se pode amar à distância). Ciente dos meus problemas conjugais, um belo dia Roberto convenceu-me a vir coabitar com ele neste apartamento, onde me sinto feliz até hoje. Nestes anos aqui vividos obtive experiências fantásticas com gente de todas as latitudes.
Gempenstrasse por estes dias é o refúgio e ponto de encontro de vários exilados políticos das pavorosas ditaduras latino-americanas, filha bastarda da Operação Condor engendrada por Henry Kissinger. Também há prófugos das tiranias africanas e fugitivos de déspotas asiáticos.
Entre os muitos que por aqui passaram, o primeiro a chegar, e que ainda segue connosco, foi Joaquim Villa, um Colombiano de 25 anos, filho de gente da alta burguesia que dedicou parte da vida a conduzir índios da selva colombiana a Bogotá para reivindicarem o reconhecimento dos seus direitos como cidadãos colombianos.
O pai, Alberto Villa, patriarca influente na cena política da Colômbia e desesperado com o “despropósito” do filho rebelde, lá mexeu os cordelinhos e conseguiu meter o jovem no primeiro jacto que saía da Colômbia. Foi assim que, num golpe de coincidência quântica, Joaquim caiu de pára-quedas em Basileia num belo dia de Agosto em que eu e Roberto vagueávamos sem destino pelas ruas da cidade. Encontramo-lo casualmente na Freistrasse luxuosa rua com vitrinas repletas de jóias que custam os pêlos da cara.
Ainda com a pele bronzeada pelo sol dos trópicos, longa cabeleira negra e carregando um saco de marinheiro às costas, ao passar, Joaquim escuta a língua espanhola volta e dirige-nos a palavra. Com o seu falar manso, típico dos colombianos, explica-nos as suas vicissitudes e nós escutamos atentos e implicados. Momentos depois e sem muita lenga-lenga, de parte a parte, chegamos a um assentimento. Solidários com a história que Joaquim nos contou trouxemo-lo connosco para a Gempenstrasse e, passados alguns dias, um amigo chileno de nome Joaquim conseguiu-lhe trabalho clandestino num restaurante Italiano onde de má vontade labuta lavando pratos. Por não ter estatuto de exilado político ainda ali está. Orgulhoso, recusa determinantemente os cheques que o pai lhe envia, aliás, não só recusa como também intitula o remetente de oligarca em decadência. Como bem-falante que é, gosta de contar-nos estranhas histórias de Colômbia e gaba-se de conhecer pessoalmente o Gabriel Garcia Marquez… Numa noite em que Roberto e eu líamos na sala chegou o Joaquim amuado e praguejando: _“Imaginem que a besta ignorante do cozinheiro do restaurante Italiano, um pateta da Calábria, perguntou-me quantos dias dura uma viagem de comboio da Suíça à Colômbia?… Maricon de mierda:”
Tempos depois de Joaquim ter chegado, foi a vez de Carlos Giovanni, poeta brasileiro. Atravessando mil e um infernos, fugiu da ditadura militar brasileira e acabou por chegar até nós. Somos agora quatro camaradas no apartamento e partilhamos de forma comunitária as despesas. Frequentemente temos visita de vários amigos: o fotógrafo peruano Echevarria que envia filmes de propaganda anti-fascista à resistência salvadorenha; o anarquista espanhol Eduardo Sanchez, cuja avó foi cinco vezes levada para o pelotão de fuzilamento na guerra civil de Espanha e regressou sempre ilesa; o músico cubano Negrito de Matanzas, exímio trompetista de jazz; o Joe Babaiaro, um escritor da Nigéria de dois metros; o Li Po do Camboja e umas putas gringas que desconfiamos serem da C.I.A. mas gostam imenso de fornicar. Também temos a honra de receber muitas latinas, africanas e suíças que dominam bem o espanhol e são muito boazonas com a nossa luta política e na cama. As olímpicas festas celebradas nos fins-de-semana nesta casa são verdadeiras orgias de conversa, música e outras coisas que não vos diz respeito.
Graças ao nosso vizinho surdo, que alcunhamos de Alquimista, pela misteriosa pessoa que é e porque nunca amua com as nossas extravagâncias, festejamos noitadas sem fim… E foi numa destas noites de extraordinária farra que conheci a esbelta Regina, mulher com uns lábios carnudos pouco comum entre os suíços… Já passou algum tempo mas recordo-me perfeitamente daquela louca noite… Conversando e bebendo em grupos dispersos pelos vários quartos da casa ao som de Mercedes Sousa enquanto Roberto na cozinha preparava uma das suas famosas paellas, escutamos uma voz de mulher aflita: “Sueltame cabron…. Hijo de la gran puta.” Dirigimo-nos todos em avalanche ao local donde provinham os gritos e demos com um peralta de um uruguaio que não tinha sido convidado para a festa, a meter a mão no rabo da Regina. Perplexo e furioso com a atitude ordinária do Oriental, nome pelo qual são conhecidos os uruguaios na Argentina, Roberto entra numa das suas crises de raiva e dirigindo-se à cozinha berrando apanha uma tremenda faca de açougueiro e regressa para onde o uruguaio bêbado insiste em maltratar verbalmente Regina chamando-lhe de puta. Aí Roberto agarra raivoso o gajo na guedelha, encosta-lhe a faca na carótida (e o infeliz instantaneamente torna-se sóbrio e pálido que nem cal), puxa-lhe com força a felpa e ordena-lhe que abra o fecho das calças e saca la pinga isto é a verga cá para fora porque lho vai cortar de um talo e atirá-lo ao nosso gato de estimação o preguiçoso Schoppenhauer. Tivemos que intervir energicamente para evitar a eminente capadura mas não podemos evitar a sentença de Sturm. Ele repreende sem clamor o uruguaio, dizendo-lhe que não atura comportamentos machistas na nossa casa e mirando-me nos olhos com ar de demente, compreendi que tinha de lhe obedecer e, com mau palpite, abro a porta e ele arrasta o rapaz até ao patamar e atira-o violentamente pela velha escada de madeira abaixo. Ouve-se um retumbar pelos degraus e Roberto entra e fecha calmamente a porta sem fazer ruído.
Regressamos de novo ao convívio e o poeta Giovanni com os seus enormes bigodes à Fu Man Chu faz um comentário mórbido bem brasileiro sobre o uruguaio e desatamos todas às gargalhadas.
Por alguns minutos deixo os amigos entretidos no bate-papo e deslizo sorrateiramente para a cozinha onde encontro Dom Roberto Tempestade cantarolando serenamente um tango e dando os últimos retoques na cheirosa paella que ansiosamente esperamos para papar. Essa sim.
Os Contos da Basileia de Tchalé Figueira vai sair em breve na cidade da Praia