In the Days of a Dark Safari
1
A série In the Days of a Dark Safari lança-nos numa viagem múltipla. Estamos em África e na Europa, no século XIX e no século XXI, dentro e fora da vitrina. As falsidades colidem umas contra as outras. Entre o referencial externo da floresta e a interioridade da informação científica, entre o evolucionismo colonial e o populismo pós-colonial, produz-se um choque e mudança de perspectiva. Trata-se de uma visão crítica da renovação dos discursos que opõem Natureza e Cultura, Civilização e Barbárie, para que haja uma abertura de novos caminhos possíveis para novas subjetividades africanas.
Em O Coração das Trevas de Joseph Conrad, a Natureza Africana é descrita como uma terra que não parece terrestre, “algo monstruoso e livre” que deve ser reduzido à obediência. Trata-se do discurso daqueles que, vindos de fora, dizem que o monstro deve ser domado a ferro e fogo. Do outro lado do espelho, nos deparamos com o ideal da Natureza Africana enquanto Paraíso Perdido, terra etérea também não terrestre, forjada desta vez pelo populismo africano. Trata-se do discurso daqueles que, vindos de dentro, dizem que a expulsão do Paraíso é culpa dos que vieram de fora, aproveitando-se para esconder a destruição daquele que coloniza a si mesmo, atribuindo as culpas dos insucessos em África a um fantasma externo.
Pretendemos, portanto, desmistificar tanto as Trevas quanto o Paraíso imaculado. Pois, assim como as linhas paralelas se encontram no infinito, colonialismo e populismo se encontram no neo-colonialismo. Ambos forjando imagens artificiais da Natureza, esconderijo da violência de Estado.
2
A série In the Days of a Dark Safari é, além de um trabalho de pesquisa histórica e fotografia artística, também um trabalho de cinema quando lança os artifícios uns contra os outros, num processo de montagem repleto de instantes e fragmentos de vida e de morte. Fotografia, história e cinema que refletem ideais mórbidos na imagem de uma Palanca Negra Gigante (antílope) empalhada. Busca-se, assim, desvelar uma dimensão fictícia da história oficial, onde tudo é duplo.
E de repente o caçador se torna caça. Estamos num safari no interior de Angola, num Museu de História Natural em Luanda, numa discoteca, numa galeria de arte em Lisboa. A espingarda torna-se máquina fotográfica, o animal empalhado, o ditador “embalsamado”. Colidem nestas salas as Trevas de Conrad e o Paraíso pré-colonial dos populistas africanos, tão artificias e superficiais como a selva empalhada.
The Last Journey of the Dictator Mussunda N’Zombo Before the Great Extinction (A Última Viagem do Ditador Mussunda N´Zombo Antes da Grande Extinção) incorpora o fim das ditaduras em África, inspirada na figura do falecido ex-presidente congolês, Mobutu Sese Seko, considerado um arquétipo de ditador africano. Empalha-se, com a fotografia, o cadáver do poder, enquanto, animais-objetos ganham vida. In the Days of a Dark Safari é um trabalho de luto que vela e desvela espíritos de animais empalhados. Animais cobertos, protegidos da fotografia, mas que ainda assim, nos observam. E se aqui os mortos nos falam, é talvez porque já não estejamos tão vivos assim. A caça vira animal sonhado e o espectador ativo animal caçado.
Já na curta-metragem Havemos de Voltar, titulo retirado do poema de Agostinho Neto, narra a saga de uma Palanca empalhada que ainda possui algo de alma, ou estaria a sua alma empalhada? A Palanca rejeita o papel de se tornar num documento ao serviço da história e, pretende regressar a um passado onde reside a sua glória. Realiza uma volta impossível, já que suas memórias também foram empalhadas e expostas em vitrinas. Não há, portanto, aqui, passado real nem exterior puro. A Natureza torna-se um trompe l’oeil visto através das lentes anamórficas polidas pela Cultura.
3
Diversas narrativas literárias e artísticas da época colonial refletem o trabalho do colonialista que coleta informações na floresta e as depõe em vitrinas de museus. O esforço para realizar um Museu de História Natural torna-se simétrico à narrativa hostil do olhar forasteiro, que coloniza mantendo-se à distância, remetendo um continente inteiro a Lugar das Trevas. A paisagem concebida pelo homem torna-se aqui ponto de partida para uma visão crítica que, para além de levantar questões sobre a narrativa histórica, rebate o discurso político que tem enorme impacto na construção de identidades modernas em África.
De outro lado, e ainda assim, pelas paisagens africanas do safari revela-se um sentimento ambíguo, entre o regresso à gênesis humana, onde todavia reside o mais puro da nossa essência, e o terror de nossa fragilidade exposta à mais hostil e cruel forma de vida.
A selva e os animais não forjam ficções narrativas de sua própria história. O elevado grau de violência em muitos conflitos causados pela humanidade e suas conquistas, levou para selva o mais lancinante inferno. Muitos animais abandonaram seus habitats naturais, deixando o espaço livre para que a selvajaria humana desfile com toda sua tecnologia belicista. Mas se a selva pode ser um inferno, ainda é para muitos um abrigo. Passando os anos e findada as guerras, a selva ressuscita das suas próprias cinzas, enquanto seus habitantes legítimos lentamente regressam para casa. A selva resiste e sobrevive à demência humana, ainda que sobre suas cicatrizes não haja outro remédio que não o tempo.
In the days of a dark safari, Kiluanji Kia Henda I 23/3 a 6/5 Galeria Filomena Soares, LISBOA