Azulibranco – A Cromática do Caos

Quando conheci a obra do Gegé Mbakudi, lembro-me de ele ter comentado sobre a sua curiosa intenção de criar o “Kuduro Visual”. Por outras palavras, tratava-se de materializar um novo conteúdo no universo das artes visuais, inspirado na sua experiência de vida nas periferias de Luanda. Mais do que criar vídeo musicais, o kuduro visual seria o ousado ato de produzir imagens capazes de interferir com a história de arte. A história de arte que nunca nos foi contada, ou da qual fomos sistematicamente excluídos. Recorrendo à espontaneidade, ao improviso e à rebeldia do kuduro, o artista conquistaria assim o seu lugar ao sol, confrontando todo o sistema hierárquico e conservador da cena artística. Pois, a meu ver, a arte só cumpre o seu verdadeiro papel quando consegue criar rupturas. 


Se, como definição de cultura, entendemos um conjunto de códigos e expressões partilhados por uma comunidade ou coletivo, podemos então concluir que o kuduro é o maior fenómeno cultural em Angola, após a independência. Mais do que estilo musical, tornou-se um estilo de vida, a expressão artística eleita por aqueles que mais sofrem com a exclusão social e económica, causada pelo capitalismo selvagem e a falência das instituições. O facto de o Gegé ter nascido no final do milénio, em 1999, despertou em si o interesse de uma arte engajada com questões políticas e sociais. Uma arte que reflete sobre o espaço e o tempo em que vive, livre dos fantasmas do passado que, tantas vezes, silenciaram o aspeto mais interventivo da arte, nas gerações anteriores.

Na curta-metragem “Azul Luanda” (2022), Mbakudi mergulha numa dimensão onírica, recuperando memórias da infância, para contar estórias de uma cidade intensa e frenética. Grande parte do filme foi rodado no pátio do Hotel Globo, transformado em palco, onde a espetacular cenografia realizada pelo artista resultou numa fascinante relação entre as linguagens do cinema e o teatro. Gegé recria a vida da cidade, falando sobre a tragédia diária de quem sobrevive nas ruas e da economia informal. A dança dos excluídos e negligenciados pelo poder, representados com um estilo exuberante, fazendo sobressair a sensualidade dos corpos. Uma coreografia lúdica, que culmina em tragédia. A trilha sonora é composta por áudios aleatórios, relatando estórias que nos remetem a uma espécie de realismo mágico. Mas tudo não passa de um sonho, ou seria antes um pesadelo? 

As pinturas do Gegé Mbakudi são uma continuação da importância do sonho e a fantasia, no seu processo criativo. O artista explora as várias possibilidades que a arte nos oferece para sequestrar a narrativa oficial e inverter as relações de poder. Gegé desloca elementos da paisagem urbana que fazem parte da nossa memória coletiva para a imensidão do azul de uma cidade suspensa nas nuvens. O azul é o pano de fundo da cidade. As estruturas de poder, os símbolos nacionais, os monumentos históricos, deixam de pertencer à dimensão terrestre para serem elevados a um patamar celestial, lembrando-nos do poder dessas estruturas em ditar o futuro de cada cidadão, tal como representar o seu passado. Na obra intitulada “Acabar com a espera” (2023), vemos na tela uma cadeira a arder, parte da mobília de plástico popularmente conhecida como “espera condições”. Esta imagem representa, de modo sublime, uma geração que se recusa a viver de vagas esperanças. 

Nesta tentativa de criar um suposto paraíso nas suas pinturas, Gége faz-nos lembrar, mais uma vez, que não existe um paraíso sem que exista também inferno. As cores azul e branco, duas das cores mais presentes na palete da paisagem urbana luandense, deixam de ser cores que supostamente representam a paz e a harmonia. Entretanto, a aglutinação das palavras azul e branco, que resulta em “azulibranco”, transporta-nos para as movimentadas ruas de Luanda e o seu trânsito infernal. A obra do Gegé caminha na linha que separa o sonho da inevitável realidade, num contexto histórico e social, onde a realidade com todas as forças insiste em superar a ficção. Uma poesia visual que nos faz refletir sobre o caos social e a incessante luta pela sobrevivência, sobre a capacidade de a arte criar um espaço de diálogo e resistência e, acima de tudo, sonhar como um dever revolucionário. 

 

 

por Kiluanji Kia Henda
Vou lá visitar | 17 Maio 2024 | cores, Gegé Mbakudi, Jahmek Contemporary Art, luanda, pintura