Políticas da Inimizade (excerto)

REGRESSO, INVERSÃO E ACELERAÇÃO

Como contributo para a reflexão aqui esboçada, realçamos quatro traços característicos do nosso tempo. O primeiro é o estreitamento do mundo e o repovoamento da Terra devido à oscilação demográfica que, doravante, opera em benefício dos mundos do Sul. O desenraizamento geográfico e cultural e, em seguida, a deslocação voluntária ou a implantação forçada de populações inteiras em vastos territórios, antes habitados exclusivamente por povos autóctones, foram acontecimentos decisivos da nossa modernidade1. Quanto à vertente atlântica do planeta, houve dois momentos significativos ligados à expansão do capitalismo industrial, a ritmar o processo de redistribuição mundial das populações. São eles a colonização (iniciada no começo do século xvi com a conquista das Américas) e o tráfico negreiro. Tanto o comércio negreiro como a colonização coincidiram em grande medida com a formação do pensamento mercantilista no Ocidente, estando quiçá, pura e simplesmente, na sua origem2. O comércio negreiro funcionava com o sangramento e a punção dos braços e das forças mais vitais das sociedades que forneciam escravos.

Jacob Lawrence, The Migration Series 1940-41 Panel 40 The migrants arrived in great numbers. Casein tempera on hardboard, 18 × 12Jacob Lawrence, The Migration Series 1940-41 Panel 40 The migrants arrived in great numbers. Casein tempera on hardboard, 18 × 12

Nas Américas, a mão-de-obra servil de origem africana foi posta a trabalhar, no contexto de um vasto projecto de dominação do meio com o intuito de o valorizar e tornar rentável. Se virmos bem, o regime de plantação foi, antes de mais, o das florestas e das árvores que com regularidade teriam de ser cortadas, queimadas e abatidas; o do algodão ou da cana-de-açúcar que deviam substituir a natureza preexistente, de paisagens antigas que era preciso remodelar, o de formações vegetais anteriores que era preciso destruir, e o do regime de um ecossistema que era preciso substituir pelo agro-sistema3. A plantação era, assim, apenas um dispositivo económico. Quanto aos escravos transferidos para o Novo Mundo, era também ali que se desenrolava outro começo. Dava-se início a uma vida doravante vivida segundo um princípio essencialmente racial. Mas, longe de ter apenas um puro significado biológico, a raça assim entendida remetia para um corpo sem mundo e sem terra, um corpo de energia combustível, uma espécie de duplo da natureza que era possível transformar, pelo trabalho, em stock ou fundo disponível4.

A colonização funcionava como excreção daqueles e daquelas que, por vários factores, eram considerados supérfluos ou excedentários nas nações colonizadoras. Era particularmente o caso dos pobres ao cuidado da sociedade e dos vagabundos e delinquentes supostamente nocivos para a nação. Era uma tecnologia de regulação dos movimentos migratórios. Naquela época, muitos acreditavam que, em última análise,  esta forma de migração beneficiaria o país de partida. «Não só um grande número de homens que vivem actualmente na ociosidade aqui, que representam um peso, uma carga, e não pertencem a este reino, seriam postos a trabalhar, como os seus filhos de doze ou catorze anos, ou mais, seriam afastados da ociosidade, fazendo toda a espécie de coisas fúteis, podendo vir a ser boas mercadorias para este país», escrevia, por exemplo, Antoine de Montchrestien no seu Traité d’économie politique no início do século xvii. E acrescentava ainda: «As nossas ociosas mulheres […] serão empregadas, arrancando, tingindo e escolhendo penas, esticando, batendo e trabalhando o cânhamo, colhendo o algodão, e diversas coisas com tingimentos.» Por seu lado, os homens «ocupavam-se do trabalho nas minas, de actividades de lavoura, e até da caça à baleia […] além da pesca do bacalhau, do salmão, do arenque, e do abate de árvores», concluía5.

Do século xvi ao xix, estas duas modalidades de repovoamento do planeta pela predação humana, a extracção de riquezas naturais e a ocupação de grupos sociais subalternos, constituíram questões económicas, políticas e, em muitos aspectos, filosóficas importantes da época6. Tanto a teoria económica como a teoria da democracia foram, em parte, construídas sobre a defesa ou sobre a crítica de uma ou de outra destas duas formas de redistribuição espacial de populações7.

Em contrapartida, estas originaram muitos conflitos e guerras de distribuição ou de monopólio. Como resultado deste movimento de alcance planetário, desenhou-se uma nova distribuição da Terra, com as potências ocidentais no centro e, fora dele ou nas margens, as periferias – domínios de abundante luta e dedicados à ocupação e pilhagem.

E além disso é preciso ter em conta a distinção generalizada entre os formatos da colonização comercial – ou ainda das feitorias – e a colonização de povoamento propriamente dita. Certamente, em ambos os casos, considerava-se que o enriquecimento da colónia – de qualquer colónia – só fazia sentido se contribuísse para o enriquecimento da metrópole. A diferença, no entanto, residia no facto de que a colónia de povoamento era concebida como uma extensão da nação, já a colónia de feitoria ou de exploração era apenas uma maneira de enriquecer a metrópole através de um comércio assimétrico, desigual, quase sem nenhum investimento de peso no terreno.

Aliás, o domínio das colónias de exploração destinava-se teoricamente a um objectivo, e a implantação dos europeus nestes lugares era provisória. No caso das colónias de povoamento, a política de migração visava conservar na esfera da nação pessoas que se perdiriam se tivessem ficado entre nós. A colónia servia de saída para estes indesejáveis, categorias da população «cujos crimes e deboches» seriam «rapidamente destrutivos», ou cujas necessidades os levariam à prisão ou os forçariam a mendigar, tornando-os inúteis para o país. Esta cisão da humanidade em populações «úteis» e «inúteis» – «excedentárias» e «supérfluas» – era a regra, medindo-se a sua utilidade, basicamente, pela capacidade de desenvolver a força de trabalho.

Aliás, no início da era moderna o repovoamento da Terra não passa apenas pela colonização. As migrações e a mobilidade explicam-se igualmente por factores religiosos.  

No curso do período 1685-1730, após a revogação do Édito de Nantes, cerca de 170 mil a 180 mil huguenotes deixaram a França. A emigração religiosa atinge muitas outras comunidades. Na realidade, diferentes tipos de circulações internacionais imbricam-se, quer se trate de judeus portugueses cujas redes comerciais se articulam em torno dos grandes portos europeus de Hamburgo, Amesterdão, Londres ou Bordéus; de italianos que investem no mundo da finança, do negócio ou dos ofícios altamente especializados, como o vidro e produtos de luxo; e até de soldados, mercenários, engenheiros que, devido a vários conflitos da época, passam alegremente de um a outro mercado da violência8.

Na alvorada do século xxi, já não é pelo tráfico de escravos nem pela colonização de regiões longínquas do globo que se repovoa a Terra. O trabalho, na sua acepção tradicional, deixa de ser o meio privilegiado de acumulação de valor. O momento é agora de agitação, de grandes e pequenas deslocações e transferências, em suma, de novas figuras de êxodo9. As novas dinâmicas circulatórias e a formação das diásporas passam, em grande parte, pelo comércio ou pelo negócio, pelas guerras, por desastres ecológicos e catástrofes ambientais, e por transferências culturais de toda a ordem.

O acelerado envelhecimento de grupos humanos das nações ricas do mundo representa, deste ponto de vista, um acontecimento de considerável alcance. É o inverso dos excedentes demográficos típicos do século xix que acabámos de evocar. A distância geográfica enquanto tal deixa de significar um obstáculo à mobilidade. As grandes rotas da migração diversificam-se, e os dispositivos cada vez mais sofisticados de evasão das fronteiras actuam. Se, de súbito, os fluxos migratórios, centrípetos, se orientam simultaneamente em várias direcções, a Europa e os EUA continuam a ser os principais pontos de fixação das multidões em movimento – em particular as que vêm dos centros de pobreza do planeta. Aqui surgem novas aglomerações e constroem-se, apesar de tudo, novas cidades polinacionais. Como prova das novas circulações internacionais, vão aparecendo, a pouco e pouco e por todo o planeta, vários aglomerados de territórios-mosaico.

Esta nova disseminação de colónias – que vem juntar-se às anteriores vagas de migrações provenientes do Sul – baralha os critérios de pertença nacional. Pertencer à nação não é apenas uma questão de origem, mas também de escolha. Uma incessantemente crescente massa de pessoas participa agora em vários tipos de nacionalidades (nacionalidade de origem, de residência, de escolha) e de ligações identitárias. Em certos casos, têm de se decidir: ou se fundem na população, pondo termo às duplas fidelidades, ou, em caso de delito que ponha em perigo a «existência da nação», arriscam a ser privadas da nacionalidade de acolhimento10.

Além disso, quanto à parte fulcral do actual repovoamento da Terra, não encontramos unicamente os humanos. Os ocupantes do mundo já não se limitam aos seres humanos. Mais do que nunca, estão incluídos inúmeros artefactos e todas as espécies vivas, orgânicas e vegetais. Também as forças geológicas, geomorfológicas e climatológicas completam a panóplia dos novos habitantes da Terra11. Certamente, não se trata de seres nem de grupos ou de famílias de seres enquanto tais. No limite, não se trata nem de ambiente nem de natureza. São agentes e meios de vida – a água, o ar, o pó, os micróbios, as térmitas, as abelhas, os insectos –, os protagonistas de relações específicas. Passamos assim da condição humana para a condição terrestre.

O segundo traço característico do nosso tempo é a redefinição – em curso – do humano no quadro de uma ecologia geral e de uma geografia agora alargada, esférica, irreversivelmente planetária. De facto, o mundo já não é considerado apenas um artefacto fabricado pelo homem. Depois de viver na Idade da Pedra e da Prata, do Ferro e do Ouro, o homem, por sua vez, tende hoje em dia a tornar-se plástico. O acontecimento do homem plástico e do seu corolário, o sujeito digital, vai directamente ao encontro de inúmeras convicções tidas, até hoje, por verdades imutáveis.

É o caso da crença segundo a qual existiria uma «essência do homem», um «homem genérico» separável do animal ou do mundo vegetal; ou, ainda, que a Terra que ele habita e explora não seria senão um objecto passivo das suas intervenções. E ainda a ideia segundo a qual, de todas as espécies vivas, o «género humano» seria o único a ter-se libertado parcialmente da sua animalidade. Com a quebra das cadeias da necessidade biológica, ele ter-se-ia erguido quase até ao nível do divino. No inverso destes votos de fé e de muitos outros, admite-se agora que, no seio do universo, o género humano, em particular, é apenas parte de um conjunto mais vasto de seres vivos que inclui os animais, os vegetais e outras espécies. 

Se observarmos a biologia e a engenharia genética, não há, propriamente falando, qualquer «essência do homem» a salvaguardar nem qualquer «natureza do homem» a proteger. Sendo assim, não se coloca quase nenhum limite à modificação da estrutura biológica e à genética da humanidade. No fundo, entregando-se às manipulações genéticas e germinais, é sempre possível, pensa-se, não apenas «aumentar» o ser humano (enhancement) mas também, num acto espectacular de autocriação, produzir o ser vivo pela tecnomedicina. O terceiro traço constitutivo da época é a introdução generalizada de ferramentas e de máquinas de cálculo ou computacionais em todas as facetas da vida social. Com a ajuda da força e da ubiquidade do fenómeno digital, deixa de haver separações estanques entre o ecrã e a vida. A vida passa-se agora no ecrã, e o ecrã torna-se a forma plástica e simulada do vivo, que, aliás, pode agora ser capturada por um código. No entanto, «já não é pelo confronto com o retrato ou com a figura do duplo apresentada pelo espelho que o sujeito se põe à prova, mas pela construção de uma presença do sujeito mais próxima do decalque e do sombreado»12.

De repente vemos impedida uma parte do trabalho de subjectivação e de individuação, pelo qual, ainda há pouco, qualquer ser humano se tornava uma pessoa dotada de identidade mais ou menos indexável. Quer queiramos ou não, o nosso tempo é o da plasticidade, da polinização e de toda a espécie de transplantes – plasticidade do cérebro, polinização do artificial e do orgânico, manipulações genéticas e transplantes informáticos, ligação cada vez mais estreita do humano à máquina. Todas estas mutações dão livre curso ao sonho de uma vida verdadeiramente ilimitada, mas não só. Fazem agora do poder sobre o ser vivo – ou melhor, da capacidade de alterar voluntariamente a espécie humana – a forma de poder inquestionavelmente absoluta.

A articulação entre o poder do capital e a capacidade de alterar voluntariamente a espécie humana – e até outras espécies vivas e outros materiais aparentemente inertes – constitui o quarto traço significativo do mundo do nosso tempo. O poderio do capital – simultaneamente força viva e criadora (se é preciso alargar os mercados e acumular lucros) e processo sangrento de devoração (se irreversivelmente se destrói a vida dos seres e das espécies) – aumentou descontroladamente a partir do momento em que os mercados bolsistas escolheram apoiar-se na inteligência artificial para optimizar movimentos de liquidez. Como a maioria destes operadores de alta frequência utilizam algoritmos de ponta para tratar a massa de informação trocada sobre os mercados da Bolsa, têm de funcionar em escalas microtemporais inacessíveis aos homens. Hoje em dia, o tempo de transferência de informação entre a Bolsa e o operador é calculado em milésimos de segundo. Juntamente com outros factores, esta extraordinária compressão do tempo levou ao paradoxo de, por um lado, assistirmos a um espectacular crescimento da fragilidade e da instabilidade dos mercados e, por outro, ao seu quase ilimitado poder de destruição.

A questão que agora se coloca é, portanto, a de saber se ainda é possível impedir que os modos de exploração do planeta cedam à destruição absoluta. Esta questão é muitíssimo actual, uma vez que a simetria entre mercado e guerra nunca se evidenciou tanto como hoje em dia. Durante os séculos precedentes a guerra esteve na base do desenvolvimento tecnológico. Toda a espécie de aparelhos militares continua a desempenhar este papel hoje em dia, a par do mercado que, por sua vez, funciona mais do que nunca segundo o padrão da guerra13 – mas agora uma guerra que opõe as espécies entre si, e a natureza aos seres humanos. Esta estreita imbricação do capital, das tecnologias digitais, da natureza e da guerra, e as novas constelações de poder que ela possibilita são, sem qualquer dúvida, aquilo que mais directamente ameaça a ideia do político que, até então, servia de alicerce à forma de governo que é a democracia.


O CORPO NOCTURNO DA DEMOCRACIA

A ideia era relativamente simples: não há fundamento (ou base imutável) para a comunidade dos homens, que, por princípio, é subtraída do debate. A comunidade é política, na medida em que, consciente da contingência dos seus fundamentos e da sua violência latente, está sempre disposta a pôr em jogo as suas origens. É democrática, na medida em que, garantindo esta permanente e ampla abertura, a vida do Estado adquire um carácter público; os poderes estão sob controlo dos cidadãos; e estes são livres de procurar e de fazer valer, sempre e a cada vez que preciso for, a verdade, a razão, a justiça e o bem comum. Ao ideal da força, aos estados de facto (o arbitrário político) e ao gosto do segredo, opõem-se agora as noções de igualdade, de Estado de direito e de publicidade. Assim, nas sociedades contemporâneas não basta invocar os seus mitos de origem para legitimar a ordem democrática.

De resto, se a força das democracias modernas sempre decorreu da sua capacidade de se reinventarem e de inventarem constantemente não só a sua forma, como a sua ideia ou conceito, não raro o fizeram à custa da dissimulação ou da ocultação das suas origens na violência. A história deste duplo movimento de invenção e de reinvenção, de dissimulação e de ocultação, é muitíssimo paradoxal e até caótica. De todo o modo, demonstra bem a que ponto a ordem democrática é manifestamente equívoca na diversidade das suas trajectórias.

Segundo a narrativa oficial, as sociedades democráticas são sociedades pacificadas, sendo este o factor que as distingue das sociedades guerreiras. A brutalidade e a violência física teriam sido banidas ou, pelo menos, dominadas. Devido ao monopólio da força em benefício do Estado e à interiorização de constrangimentos pelos indivíduos, o corpo a corpo pelo qual a violência física se exprimiu na sociedade medieval até ao Renascimento dera lugar à auto-inibição, à contenção e à civilidade. Esta nova forma de governo dos corpos, dos comportamentos e dos afectos levou à pacificação dos espaços sociais.

A violência dos corpos foi substituída pela força das formas. A regulação dos comportamentos, o governo das condutas, a prevenção da desordem e da violência acontecem, doravante, através de rituais plenamente aceites14. Ao imporem uma distância entre indivíduos, formas e rituais, contribuíram para uma civilização dos costumes pelos costumes. Subitamente, as sociedades democráticas deixavam de assentar, como os regimes monárquicos ou tirânicos, no princípio da obediência a um homem forte, com o poder de outorgar sozinho à sociedade a possibilidade de se disciplinar. Em grande medida, a sua força residia na força das suas formas15.  

A ideia segundo a qual a vida em democracia é, na sua base, pacífica, policiada e desprovida de violência (nomeadamente sob a forma da guerra e da devastação) não nos convence. É verdade que a emergência e a consolidação da democracia vêm a par de imensas tentativas de controlar a violência individual, de a regulamentar e reduzir, suprimindo nomeadamente as manifestações mais espectaculares e mais abjectas pela reprovação moral ou com sanções jurídicas.

Mas a brutalidade das democracias nunca foi senão abafada. Desde as suas origens, as democracias modernas mostraram tolerância perante uma certa violência política, inclusivamente ilegal. Integraram na sua cultura formas de brutalidade levadas a cabo por uma série de instituições privadas que agem como mais-valia do Estado, sejam elas corpos francos, milícias ou outras formações paramilitares ou corporativistas.

Durante muito tempo, os Estados Unidos foram um Estado e uma democracia de escravos. W.E.B. Du Bois lembra, em Black Reconstruction, o paradoxo neste país que, desde que nasceu, proclama a igualdade dos homens; cujo governo supostamente obtém o seu poder por consentimento dos governados; mas que, pela prática da escravatura, se sujeita a uma disjunção moral absoluta16. Em meados dos anos 30 do século xix, os Estados Unidos contam efectivamente com cerca de dois milhões de negros. Estes representam 11,6 por cento da população em 1900. O seu destino está muito ligado ao dos brancos, sem que as respectivas condições de uns e de outros, menos ainda o seu futuro, se misturem. Como assinalado por muitos historiadores, será tão difícil separarem-se completamente como unirem-se, para ambos os grupos. No que toca à lei, os escravos estão na posição de estrangeiros entre uma sociedade de semelhantes. Ter nascido nos EUA (caso de 90 por cento de entre eles em 1860) ou ter uma descendência mista (13 por cento de entre eles no mesmo período) nada muda, nem em relação à condição de infâmia a que são reduzidos, nem na ignomínia que sofrem, transmitida de geração em geração como uma herança envenenada.

A democracia de escravos caracteriza-se assim pela sua bifurcação. Nela coexistem duas ordens – uma comunidade de semelhantes, regida, no mínimo teoricamente, pela lei da igualdade, e uma categoria de não-semelhantes, ou ainda de sem-lugar, também ela instituída por lei. A priori, os sem-lugar não têm qualquer direito a ter direitos. São regidos pela lei da desigualdade. Esta desigualdade e a lei que a institui e na qual se baseia fundam-se no preconceito da raça. Tanto o próprio preconceito como a lei que o fundamenta permitem manter uma distância quase inultrapassável entre a comunidade dos semelhantes e os seus outros. Se se considerar uma comunidade, a democracia de escravos não pode ser senão uma comunidade de separação.

Observa Alexis de Tocqueville em 1848 que «em quase todos os Estados nos quais a escravatura foi abolida, foram concedidos ao negro direitos eleitorais; mas se ele se apresenta para votar, corre risco de vida. Oprimido, pode queixar-se, mas só encontra brancos entre os seus juízes. A lei, no entanto, abre-lhe o banco dos jurados, mas o preconceito afasta-o dele. O seu filho é excluído da escola frequentada pelo descendente dos europeus. Nos teatros, ele não conseguiria comprar, nem a preço de ouro, o direito de se sentar perto daquele que foi seu amo; nos hospitais, jaz à parte. Permite- -se que o negro implore ao mesmo Deus dos brancos, mas não rezar no mesmo altar. Ele tem os seus padres e os seus  templos. Não lhe fecham as portas do Céu, porém a desigualdade mal se detém à beira do outro mundo. Quando o negro falece, jogam os seus ossos em separado, e a diferença de condição encontra-se até mesmo na igualdade da morte»17.

Na democracia de escravos, os não-semelhantes não podem reclamar «a posse de um só pedaço de terra»18. De resto, a obsessão das democracias de escravos não é só mantê-los cuidadosamente afastados. É sobretudo saber como podemos livrar-nos deles, fazê-los abandonar voluntariamente o país ou, se necessário, deportá-los em massa19. E se porventura, de vez em quando, consentimos que venham a nós, e até mesmo que nos misturemos com eles, é precisamente para de seguida podermos «reduzi-los a pó»20, o estado natural das raças degradantes. Pois o escravo não é um sujeito de direito mas uma mercadoria como todas as outras. A cena mais dramática desta redução a pó é o linchamento que representa uma forma imensa, grotesca e exibicionista da crueldade racista que ocorre, não atrás dos muros de uma prisão, mas no espaço público21. Publicitando as execuções, a democracia racista põe em cena uma insustentável brutalidade e inflama as emoções da forca. Enquanto técnica do poder racista, o ritual de execução tem por objectivo semear o terror nas mentes das suas vítimas e revitalizar os instintos mortíferos que alicerçam a supremacia branca22.

O grande proprietário de escravos, Thomas Jefferson, estava particularmente consciente do dilema colocado pelo regime da plantação e pelo estatuto servil numa sociedade dita livre. Nunca deixou de se compadecer com «a infeliz influência que esta instituição [a escravatura] exerce sobre os modos do nosso povo». A seus olhos, a prática esclavagista equivalia de facto à licença absoluta. Levava ao exercício perpétuo das paixões mais primitivas. Enquanto parte maldita da democracia americana, a escravatura era a manifestação do despotismo corrompido e impenitente, assente na abjecta degradação dos que foram escravizados23. A plantação é com efeito um «terceiro lugar» onde as mais espectaculares formas de crueldade têm livre curso, como por exemplo atentados ao corpo, tortura ou execuções sumárias.

Foi graças ao dinheiro acumulado pelos plantadores das Índias Ocidentais que a Inglaterra do século xviii pôde financiar a cultura emergente do gosto, as galerias de arte e os cafés, lugares de aprendizagem da civilidade por excelência. Barões coloniais como William Beckford, plantocratas como Joseph Addison, Richard Steele ou Christopher Carrington asseguram o patronato das instituições culturais. Oferecem comissões aos artistas, arquitectos e compositores. Como a civilidade e o consumo de produtos de luxo vêm a par, o café, o açúcar e as especiarias tornam-se ingredientes necessários à vida do homem civilizado. Entretanto, barões coloniais e magnatas indianos reciclam fortunas ilícitas com o objectivo de ressurgirem com uma identidade de aristocrata24.

Foi por fim possível a «civilização dos costumes» graças às novas formas de enriquecimento e de consumo inauguradas pelas aventuras coloniais. De facto, a partir do século xvii, o comércio exterior é considerado uma via formidável para assegurar a riqueza dos Estados. Assim que o controlo das cadeias de trocas internacionais passa doravante pelo domínio dos mares, a capacidade de criar desiguais relações de troca torna-se um decisivo elemento de poder. O ouro e a prata do ultramar são cobiçados por todos os Estados e diversas cortes principescas da Europa, bem como a pimenta, a canela, o cravinho, a noz-moscada e outras especiarias. E ainda o algodão, a seda, o anil, o café, o tabaco, o açúcar, os bálsamos, todo o tipo de licores, borrachas e ma - deiras medicinais comprados lá fora a preços irrisórios e revendidos a preços exorbitantes nos mercados europeus.

Para pacificar os costumes, é fulcral controlar as colónias, estabelecer companhias concessionárias e consumir cada vez mais produtos provenientes de zonas longínquas do mundo. A paz civil no Ocidente depende em grande medida das violências à distância, de acender fogos de conflitos, de guerras de feudos e de outros massacres que acompanham o estabelecimento de praças-fortes e de feitorias nos quatro cantos do mundo. Depende do aprovisionamento de panos para os barcos à vela, de mastros, madeira de vigas, pez, linho e cordas, mas também de artigos de luxo como a seda grega, as chitas pintadas e impressas, o sal para a conserva de peixe, a potassa e os corantes para a indústria têxtil, sem contar com o açúcar25. Por outras palavras, o desejo, o amor do luxo e outras paixões deixam de ser intempestivamente condenados. Mas a satisfação destes novos desejos depende da institucionalização de um regime de desigualdade à escala planetária. A colonização é o principal motor deste regime26. A propósito deste tema, o historiador Romain Bertrand sugere que o estado colonial «continua a ser um estado em pé de guerra»27. Esta afirmação não se refere unicamente aos abusos cometidos durante as guerras de conquista, nem mesmo ao exercício de uma cruel justiça privada, nem à repressão feroz dos movimentos nacionalistas. Tem em vista aquilo que podemos chamar de «política colonial do terror», isto é, ultrapassagem deliberadamente um limiar de violência e de crueldade que se abate sobre aqueles que, outrora, eram privados de lei. O desejo de os desfazer traduz-se na generalização de práticas como os incêndios de aldeias e de arrozais, as execuções de simples aldeãos, para dar o exemplo, a pilhagem das reservas colectivas de alimentos e dos celeiros, os raids extremamente brutais sobre os civis ou a sistematização da tortura.

O sistema colonial e o sistema esclavagista representam por conseguinte o repositório amargo da democracia, essa que, segundo a intuição jeffersoniana, corrompe o corpo da liberdade, levando-a inexoravelmente a decompor-se. Revezando-se uns aos outros, estes três regimes – o regime da plantação, o regime da colónia e o regime da democracia – nunca se largam, como George Washington e o seu escravo e companheiro William Lee; ou, ainda, como Thomas Jefferson e o seu escravo Júpiter. Um concede ao outro a sua aura, numa estrita relação de aparente distância e de proximidade e intimidade reprimidas.

(…)

 

Excerto de Políticas da Inimizade, de Achille Mbembe, Antigona, 2017, Tradução de Marta Lança  

  • 1. Paul Gilroy, O Atlântico Negro, Modernidade e Dupla Consciência, UCAM, Rio de Janeiro, 2001 [1993].
  • 2. Para uma visão geral, ver Parkakunnel Joseph Thomas, Mercantilism and East India Trade, Frank Cass, Londres, 1963; William J. Barber, British Economic Thought and India, 1690-1858, Clarendon Press, Oxford, 1975.
  • 3. Ver Walter Johnson, River of Dark Dreams. Slavery and Empire in the Cotton Kingdom, The Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge, MA, 2013.
  • 4. Encontra-se in Richard S. Dunn, A Tale of Two Plantations. Slave Life and Labor in Jamaica and Virginia, Harvard University Press, Cambridge, 2014, uma análise comparada desta instituição
  • 5. Antoine de Montchrestien, Traité d’économie politique, Droz, Genebra, 1999 [1615], p. 187.
  • 6. Ver, por exemplo, Josiah Child, A New Discourse of Trade, J. Hodges, Londres, 1690, p. 197; Charles Davenant, «Discourses on the public revenue and on the trade», in The Political and Commercial Works. Collected and Revised by Sir Charles Whitworth, R. Horsfield, Londres, 1967 [1711], p. 3.
  • 7. Ler Christophe Salvat, Formation et diffusion de la pensée économique libérale française. André Morellet et l’économie politique du XVIIe siècle, tese, Lyon, 2000; Daniel Diatkine (org.), «Le libéralisme à l’épreuve: de l’empire aux nations (Adam Smith et l’économie coloniale)», Cahiers d’économie politique, n.º 27-28, 1996.
  • 8. Ver Jean-Pierre Bardet e Jacques Dupaquier (org.), Histoire des populations de l’Europe. I. Des origines aux prémices de la révolution démographique, Fayard, Paris, 1998.
  • 9. Sobre a amplitude das novas formas de circulação, ver World Bank, Development Goals in an Era of Demographic Change. Global Monitoring Report, 2015/2016
  • 10. Ver Seyla Benhabib e Judith Resnik (org.), Migrations and Mobilities. Citizenship, Borders, and Gender, New York University Press, Nova Iorque, 2009; e Seyla Benhabib, The Rights of Others. Aliens, Residents, and Citizens, Cambridge University Press, Cambridge, 2004.
  • 11. O termo «novos habitantes» não significa que eles não estivessem cá antes. Por «novo», deve entender-se a mudança do seu estatuto nos nossos dispositivos de representação. Sobre estas questões, ver Bruno Latour, Face à Gaïa. Huit conférences sur le nouveau régime climatique, La Découverte, Paris, 2015.
  • 12. Claire Larsonneur (org.), Le Sujet digital, Les Presses du Réel, Paris, 2015, p. 3.
  • 13. Pierre Caye, Critique de la destruction créatrice, Les Belles Lettres, Paris, 2015, p. 20.
  • 14. Norbert Elias, A Sociedade de Corte, Estampa, Lisboa, 1995. Tradução de Ana Maria Alves; La Civilisation des mæurs, Calmann-Lévy, Paris, 1973; La Dynamique de l’Occident, Calmann-Lévy, Paris, 1975.
  • 15. Erving Goffman, Les Rites d’interaction, Minuit, Paris, 1974.
  • 16. W.E.B. Du Bois, Black Reconstruction in America, 1860-1880, Free Press Edition, Nova Iorque, 1998 [1935].
  • 17. Alexis de Tocqueville, A Democracia na América, Martins Fontes, São Paulo, 2005, p. 397.
  • 18. Ibid., p. 406.
  • 19. Kenneth C. Barnes, Journey of Hope. The Back to Africa Movement in Arkansas in the Late 1800s, The University of North Carolina Press, Chapel Hill, 2004.
  • 20. Ibid., p. 457.
  • 21. Aproximadamente no mesmo período em França, por exemplo, esboça-se uma tendência inversa. A democracia procura obter a obediência sem recorrer necessariamente à violência directa ou, pelo menos, relega as manifestações mais desumanas para espaços cada vez menos visíveis. Ver Emmanuel Taieb, La Guillotine au secret. Les exécutions publiques en France, 1870-1939, Belin, Paris, 2011.
  • 22. Ler Ida B. Wells-Barnett, On Lynchings, Arno Press, Nova Iorque, 1969; Robyn Wiegman, «The anatomy of lynching», Journal of the History of Sexuality, vol. 3, n.º 3, 1993, pp. 445-467; David Garland, «Penal excess and surplus meaning. Public torture lynchings in twentieth-century America», Law and Society Review, vol. 39, n.º 4, 2005, pp. 793-834; e Dora Apel, «On Looking. Lynching photographs and legacies of lynching after 9/11», American Quarterly, vol. 55, n.º 3, 2003, pp. 457-478.
  • 23. Thomas Jefferson, Notes on the State of Virginia, Penguin Classics, Londres, 1999 [1775].
  • 24. Simon Gikandi, Slavery and the Culture of Taste, Princeton University Press, Princeton, 2015, p. 149.
  • 25. Ver Sidney W. Mintz, Sweetness and Power. The Place of Sugar in Modern History, Penguin Books, Nova Iorque, 1986; K.N. Chaudhuri, The Trading World of Asia and the English East India Company, 1660-1760, Cambridge University Press, Cambridge, 1978.
  • 26. Ver Klauss Knorr, British Colonial Theories, 1570-1850, Toronto University Press, Toronto, 1944, p. 54; e Joyce Oldham Appleby, Economic Thought and Ideology in the Seventeenth-Century England, Princeton, Princeton University Press, 1978; William Letwin, The Origin of Scientific Economics. The English Economic Thought 1660-1776, Methuen, Londres, 1963.
  • 27. Romain Bertrand, «Norbert Elias et la question des violences impériales. Jalons pour une histoire de la “mauvaise conscience” occidentale», Vingtième siècle, n.º 106, 2010, pp. 127-140.
Translation:  Marta Lança

por Achille Mbembe
Mukanda | 11 Agosto 2017 | Achille Mbembe, Políticas da Inimizade