PRÉ-PUBLICAÇÃO Crítica da Razão Negra

 

[…] Vertiginoso conjunto


Três momentos marcaram a biografia deste vertiginoso conjunto. O primeiro foi a espoliação organizada quando, em proveito do tráfico atlântico (século xv ao xix), homens e mulheres originários de África foram transformados em homens-objecto, homens-mercadoria e homens-moeda1. Aprisionados no calabouço das aparências, passaram a pertencer a outros, que se puseram hostilmente a seu cargo, deixando assim de ter nome ou língua própria. Apesar de a sua vida e o seu trabalho serem a partir de então a vida e o trabalho dos outros, com quem estavam condenados a viver, mas com quem era interdito ter relações co-humanas, eles não deixariam de ser sujeitos activos2. O segundo momento corresponde ao acesso à escrita e tem início no final do século xviii, quando, pelos seus próprios traços, os Negros, estes seres-capturados-pelos-outros, conseguiram articular uma linguagem para si, reivindicando o estatuto de sujeitos completos do mundo vivo3. Tal período, pontuado por inúmeras revoltas de escravos, pela independência do Haiti em 1804, por combates pela abolição do tráfico, pelas descolonizações africanas e lutas pelos direitos cívicos nos Estados Unidos, viria a completar-se com o desmantelamento do apartheid nos últimos anos do século xx. O terceiro momento (início do século xxi) refere-se à globalização dos mercados, à privatização do mundo sob a égide do neoliberalismo e do intrincado crescimento da economia financeira, do complexo militar pós-imperial e das tecnologias electrónicas e digitais.

Por neoliberalismo entenda-se uma fase da História da Humanidade dominada pelas indústrias do silício e pelas tecnologias numéricas. O neoliberalismo é a época ao longo da qual o tempo (curto) se presta a ser convertido em força reprodutiva da forma-dinheiro. Tendo o capital atingido o seu ponto de fuga máximo, desencadeou-se um movimento de escalada. O neoliberalismo baseia-se na visão segundo a qual «todos os acontecimentos e todas as situações do mundo vivo (podem) deter um valor no mercado»4. Este movimento caracteriza-se também pela produção da indiferença, a codificação paranóica da vida social em normas, categorias e números, assim como por diversas operações de abstracção que pretendem racionalizar o mundo a partir de lógicas empresariais5. Assombrado por um seu duplo funesto, o capital, designadamente o financeiro, define-se agora como ilimitado, tanto do ponto de vista dos seus fins como dos seus meios6. Já não dita apenas o seu próprio regime de tempo. Uma vez que se encarregou da «fabricação de todas as relações de filiação», procura multiplicar-se «por si mesmo» numa infinita série de dívidas estruturalmente insolúveis7.

Já não há trabalhadores propriamente ditos. Já só existem nómadas do trabalho. Se, ontem, o drama do sujeito era ser explorado pelo capital, hoje, a tragédia da multidão é não poder já ser explorada de todo, é ser objecto de humilhação numa humanidade supérflua, entregue ao abandono, que já nem é útil ao funcionamento do capital. Tem emergido uma forma inédita da vida psíquica apoiada na memória artificial e numérica e em modelos cognitivos provindos das neurociências e da neuroeconomia. Não sendo os automatismos psíquicos e os tecnológicos mais do que duas faces da mesma moeda, vai-se instalando a ficção de um novo ser humano, «empresário de si mesmo», plástico e convocado a reconfigurar-se permanentemente em função dos artefactos que a época oferece8.

Este novo homem, sujeito do mercado e da dívida, acha-se um puro produto do acaso natural. Tal espécie de «forma abstracta sempre pronta», como diz Hegel, capaz de se vestir de todos os conteúdos, é típica da civilização da imagem e das novas relações que ela estabelece entre os factos e as ficções9. Apenas um entre os outros animais não tem nenhuma essência própria a proteger ou salvaguardar. Não tem, a priori, nenhum limite para a modificação da sua estrutura biológica e genética10. Distingue-se, em vários aspectos, do sujeito trágico e alienado da primeira industrialização. Em primeiro lugar, é um indivíduo aprisionado no seu desejo. A sua felicidade depende quase inteiramente da capacidade de reconstruir publicamente a sua vida íntima e de oferecê-la num mercado como um produto de troca. Sujeito neuroeconómico absorvido pela dupla inquietação exclusiva da sua animalidade (a reprodução biológica da sua vida) e da sua coisificação (usufruir dos bens deste mundo), este homem-coisa, homem-máquina, homem-código e homem-fluxo, procura antes de mais regular a sua conduta em função de normas do mercado, sem hesitar em se auto-instrumentalizar e instrumentalizar outros para optimizar a sua quota-parte de felicidade. Condenado à aprendizagem para toda a vida, à flexibilidade, ao reino do curto prazo, abraça a sua condição de sujeito solúvel e descartável para responder à injunção que lhe é constantemente feita – tornar-se outro.

Acresce a isso o facto de o neoliberalismo representar a época na qual capitalismo e animismo, durante muito tempo obrigados a manter-se afastados, tendem finalmente a fundir-se. Passando doravante o ciclo do capital a ir da imagem para a imagem, a imagem tornou-se um factor de aceleração das energias instintivas. Da potencial fusão do capitalismo e do animismo resultam algumas consequências determinantes para a nossa futura compreensão da raça e do racismo. Desde logo, os riscos sistemáticos aos quais os escravos negros foram expostos durante o primeiro capitalismo constituem agora, se não a norma, pelo menos o quinhão de todas as humanidades subalternas. Depois, a tendencial universalização da condição negra é simultânea com a instauração de práticas imperiais inéditas que devem tanto às lógicas esclavagistas de captura e de predação como às lógicas coloniais de ocupação e exploração, ou seja, às guerras civis ou razzias de épocas anteriores11. As guerras de ocupação e as guerras anti-insurreccionais visam não apenas capturar e liquidar o inimigo, mas também levar adiante uma distribuição do tempo e uma atomização do espaço. Uma parte do trabalho consiste agora em transformar o real em ficção e a ficção em real; a mobilização militar aérea, a destruição de infra-estruturas, os golpes e feridas são acompanhadas por uma mobilização total através das imagens12. Elas fazem agora parte de dispositivos de uma violência que se desejava pura.

Aliás, captura, predação, exploração e guerras assimétricas seguem lado a lado com a rebalcanização do mundo e a intensificação de práticas de zonamento – evidenciando uma inédita cumplicidade da economia com a biologia. Em termos concretos, tal cumplicidade traduz-se na militarização das fronteiras, na fragmentação de territórios e na sua divisão, bem como na criação, no interior dos estados existentes, de espaços mais ou menos autónomos, por vezes subtraídos a todas as formas de soberania nacional, mas operando sob a lei informal de um sem-fim de pequenas jurisdições e de grupos armados privados, ou sob a tutela de entidades internacionais, com o pretexto de fins humanitários, ou, simplesmente, de exércitos estrangeiros13. Estas práticas de zonamento vêm, geralmente, acompanhadas por toda uma rede transnacional de repressão: quadriculação ideológica das populações, contratação de mercenários afectos à luta contra as guerrilhas locais, formação de «comandos de caça», recurso sistemático a prisões em massa, tortura e execuções extrajudiciais14. Graças às práticas de zonamento, um «imperialismo da desorganização» manufactura desastres e multiplica um pouco por todo o lado as condições de excepção, alimentando-se da anarquia.

À custa de contratos de reconstrução e sob o pretexto de combater a insegurança e a desordem, empresas estrangeiras, grandes potências e classes dominantes autóctones arrecadam as riquezas e as minas dos países assim avassalados. Transferências maciças de fortunas para interesses privados, desapossamento de uma parte crescente das riquezas que lutas anteriores tinham arrancado ao capital, pagamento indefinido de dívida acumulada, a violência do capital afligem agora inclusive a própria Europa, onde vem surgindo uma nova classe de homens e de mulheres estruturalmente endividados15.

Mais característica ainda da potencial fusão do capitalismo e do animismo é a possibilidade, muito distinta, de transformação dos seres humanos em coisas animadas, em dados numéricos e em códigos. Pela primeira vez na história humana, o nome Negro deixa de remeter unicamente para a condição atribuída aos genes de origem africana durante o primeiro capitalismo (predações de toda a espécie, desapossamento da autodeterminação e, sobretudo, das duas matrizes do possível, que são o futuro e o tempo). A este novo carácter descartável e solúvel, à sua institucionalização enquanto padrão de vida e à sua generalização ao mundo inteiro, chamamos o devir-negro do mundo.

 

A raça no futuro

 

Sendo o Negro e a raça duas figuras centrais (ainda que negadas) do discurso euro-americano acerca do «homem», será possível pensar que a desclassificação da Europa e a sua consequente inscrição na categoria de simples província do mundo determinará a extinção do racismo? Ou deveremos pensar que, se a Humanidade se tornar fungível, o racismo vai reconfigurar-se nos interstícios de uma nova linguagem – assoreada, molecular e fragmentada – acerca da «espécie»? Se colocarmos a questão nestes termos, não corremos o risco de esquecer que o Negro e a raça nunca foram elementos congelados (capítulo 1). Pelo contrário, sempre fizeram parte de um encadeamento de coisas, elas próprias nunca acabadas. Aliás, o seu significado fundamental foi sempre existencial. O nome Negro em particular libertou, durante muito tempo, uma extraordinária energia, ora como veículo de instintos inferiores e de forças caóticas, ora como signo luminoso da possibilidade de redenção do mundo e da vida num dia de transfiguração (capítulos 2 e 5). Além de designar uma realidade heteróclita e múltipla, fragmentada – em fragmentos de fragmentos sempre novos –, este nome assinalava uma série de experiências históricas desoladoras, a realidade de uma vida vazia; o assombramento, para milhões de pessoas apanhadas nas redes da dominação de raça, de verem funcionar os seus corpos e pensamentos a partir de fora, e de terem sido transformadas em espectadores de qualquer coisa que era e não era a sua própria vida16 (capítulos 3 e 4).

E não é tudo. Produto de uma máquina social e técnica indissociável do capitalismo, da sua emergência e globalização, este nome foi inventado para significar exclusão, embrutecimento e degradação, ou seja, um limite sempre conjurado e abominado. Humilhado e profundamente desonrado, o Negro é, na ordem da modernidade, o único de todos os humanos cuja carne foi transformada em coisa, e o espírito, em mercadoria – a cripta viva do capital. Mas – e esta é a sua manifesta dualidade –, numa reviravolta espectacular, tornou-se o símbolo de um desejo consciente de vida, força pujante, flutuante e plástica, plenamente engajada no acto de criação e até de viver em vários tempos e várias histórias ao mesmo tempo. A sua capacidade de enfeitiçar e, até, de alucinar, multiplicou-se. Algumas pessoas não hesitariam em reconhecer no Negro o lodo da terra, o nervo da vida através do qual o sonho de uma Humanidade reconciliada com a natureza, ou mesmo com a totalidade do existente, encontraria um novo rosto, voz e movimento17.

 

[…]

 

Crítica da Razão Negra, de Achille Mbembe

Editora Antígona 

A sair em Outubro 2014

 

Ler entrevista ao autor sobre este livro. 

  • 1. Walter Johnson, Soul by Soul. Life Inside the Antebellum Slave Market, Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1999; e Ian Baucom, Specters of the Atlantic. Finance Capital, Slavery, and the Philosophy of History, Duke University Press, Durham, 2005.
  • 2. Acerca destes debates, ver John W. Blassingame, The Slave Community. Plantation Life in the Antebellum South, Oxford University Press, Nova Iorque, 1972; Eugene D. Genovese, Roll, Jordan, Roll. The World the Slaves Made, Pantheon Books, Nova Iorque, 1974.
  • 3. Dorothy Porter, Early Negro Writing, 1760-1837, Black Classic Press, Baltimore, 1995. E sobretudo John Ernest, Liberation Historiography. African American Writers and the Challenge of History, 1794-1861, University of North Carolina Press, Chapel Hill, 2004, e Stephen G. Hall, A Faithful Account of the Race. African American Historical Writing in Nineteenth-Century America, University of North Carolina Press, Chapel Hill, 2009. Tratando-se das Antilhas, em particular, ver Patrick Chamoiseau e Raphaël Confiant, Lettres créoles, tracées antillaises et continentales, 1635-1975, Hatier, Paris, 1991. No mundo africano de língua inglesa, esta entrada efectua-se, como no Haiti, no decorrer do século xix. Ver, por exemplo, S.E.K. Mqhayi, Abantu Besizwe. Historical and Biographical Writings, 1902-1944, Wits University Press, Joanesburgo, 2009. Ela ocorre um pouco mais tarde no mundo francófono. A tal respeito, ver Alain Ricard, Naissance du roman africain: Félix Couchouro (1900-1968), Présence africaine, Paris, 1987.
  • 4. Joseph Vogl, Le Spectre du capital, Diaphanes, Paris, 2013, p. 152.
  • 5. Ver Béatrice Hibou, La Bureaucratisation du monde à l’ère néolibérale, La Découverte, Paris, 2012.
  • 6. Ver Joseph Vogl, op. cit., pp. 166 e seguintes.
  • 7. Ibid., p. 183 e p. 170.
  • 8. Ver Roland Gori e Marie-José Del Volgo, Exilés de l’intime. La médecine et la psychiatrie au service du nouvel ordre économique, Paris, Denoël, 2008.
  • 9. Ver, deste ponto de vista, Francesco Masci, L’Ordre règne à Berlin, Éditions Allia, Paris, 2013.
  • 10. Ver Pierre Dardot e Christian Laval, La Nouvelle Raison du monde. Essai sur la société néolibérale, La Découverte, Paris, 2009. Ver também Roland Gori, «Les dispositifs de réification de l’humain (conversa com Philippe Schepens)», Semen. Revue de sémio-linguistique des textes et discours, n° 30, 2011, pp. 57-70.
  • 11. Ler Françoise Verges, L’Homme prédateur. Ce que nous enseigne l’esclavage sur notre temps, Albin Michel, Paris, 2011.
  • 12. Ver os trabalhos de Stephen Graham, Cities under Siege. The New Military Urbanism, Verso, Londres, 2010; Derek Gregory, «From a view to a kill. Drones and late modern war», Theory, Culture & Society, vol. 28, n° 7-8, 2011, pp. 188-215; Ben Anderson, «Facing the future enemy. US counterinsurgency doctrine and the pre-insurgent», Theory, Culture & Society, vol. 28, n° 7, 2011, pp. 216-240; e Eyal Weizman, Hollow Land. Israel’s Architecture of Occupation, Verso, Londres, 2011.
  • 13. Alain Badiou, «La Grèce, les nouvelles pratiques impériales et la ré-invention de la politique», Lignes, Outubro 2012, pp. 39-47. Ver, ainda, Achille Mbembe, «Necropolitics», Public Culture, vol. 15, n° 1, 2003; Naomi KLEIN, La Stratégie du choc. La montée d’un capitalisme du désastre, Actes Sud, Arles, 2008 [2007]; Adi Ophir, Michal Givoni, Sari Hanafi (dir.), The Power of Inclusive Exclusion. Anatomy of Israeli Rule in the Occupied Palestinian Territories, Zone Books, Nova Iorque, 2009; e Eyal Weizman, op.cit.
  • 14.  David H. Ucko, The New Counterinsurgency Era. Transforming the US Military for Modern Wars, Georgetown University Press, Washington, DC, 2009; Jeremy Scahill, Blackwater. The Rise of the World’s Most Powerful Mercenary Army, Nation Book, Nova Iorque, 2007; John A. Nagl, Learning to Eat Soup with a Knife. Counterinsurgency Lessons from Malaya and Vietnam, Chicago University Press, Chicago, 2009; Grégoire Chamayou, Théorie du drone, La Fabrique, Paris, 2013.
  • 15. Maurizio Lazzarato, La Fabrique de l’homme endetté, Amesterdão, Paris, 2011.
  • 16. Didier Anzieu, Le Moi-Peau, Dunod, Paris, 1995, p. 31.
  • 17. Ver especialmente a poesia de Aimé Césaire. Acerca da temática do lodo, ver Édouard Glissant e Patrick Chamoiseau, L’Intraitable Beauté du monde, Galaade, Paris, 2008.
Translation:  Marta Lança

por Achille Mbembe
Mukanda | 30 Setembro 2014 | Achille Mbembe, animismo, Crítica da Razão Negra, globalização, Neo-liberalismo, racismo