Seu corpo absorve as dores do mundo
São seis horas da manhã e ainda não dormi. A vida não espera, parece que onovo dia já acontece, parece que é preciso seguir, parece que mais um dia é preciso serforte, parece que mais um dia é preciso ser esteio, apoio, estrutura, vínculo, laço, base,centro, acolhida. Parece que mais um dia é dia de não ser eu mesma e ser esta grandefundação que sustenta o firmamento.
Com os pés, procurei o chinelo pelo chão, ainda sentada, ainda meio viva meio morta, ainda nem acabei meu ontem mas já é preciso ser hoje, e é preciso que o hoje seja agora. Caminhei uns passos, abri a porta. Ele ainda está ali, graças aos guias. Levantei no susto a noite inteira a cada ruído dos gatos para verificar se ele ainda estava lá. Ele estava. Acendi a luz, sentada à beira da cama o admirei. Como é lindo, como queria que ele se visse como eu o vejo.
Os olhos, posso ver mesmo fechados, ainda estão inchados de ontem. Graças aos guias, para você hoje é um novo dia, posso te dar esta esperança, posso te garantir que hoje será melhor que ontem para você, ainda que para mim ontem ainda seja agora. Você não acorda, está com os olhos grudados, está ainda sob efeito dos remédios que precisou tomar para lidar com as circunstâncias que você ainda não juntou as forças para lidar.
Te acolho em meus braços, você cambaleia, te sustento, te guio até à casa de banho com dificuldade. Você já é maior do que eu e já não posso te levar no colo. Passo um pouco de água nos teus olhos, enquanto você desperta lentamente, penteio teus cabelos longos, tão bonitos, queria mesmo que você se visse como eu te vejo. Você volta para o quarto, vou à cozinha preparar café, ovos, fruta. Você se alimenta do bom alimento, ainda que a vida esteja te levando a se alimentar dos maus alimentos.
Você precisa ir à escola, mas você odeia a escola. Será que precisa? O mundo me diz que não há alternativas, olho para os lados, é suposto que eu saiba o que fazer, mas estou perdida enquanto tento ser seu guia. A escola te reprime, te cerceia e te molda. A escola te tirou toda tua espontaneidade, tua criatividade. A escola fez você achar que aquilo que você é, é inadequado para este mundo. A escola quer que você saiba do seu futuro, quer que você produza as riquezas que alguém vai usufruir, mas você acabou de se olhar no espelho e ver seus primeiros pêlos no rosto.
Você sente a pressão, você funciona em outra constância, você costumava observar as lagartas comerem as folhas da amora, você costumava se interessar pelo barulho que fazem as pedras quando jogadas na água, e passar horas olhando a cadeia de acontecimentos, a pedra afunda, a água forma um pequeno redemoinho, micro ondas circulares surgem e vão se abrandando lentamente até ao momento de jogar a próxima pedra. Mas a escola disse que isto era inútil, e que você era inútil.
Você é forte, mas sensível. Você não consegue jogar esse jogo. Seu corpo absorve as dores do mundo. Você sente tudo ao seu redor, profundamente. Você não sabe ignorar, você não sabe se alienar, você ouve, entende e sente. Você decidiu se alienar pelo pior caminho para você. Você está se ferindo porque o mundo te fere, mas você não consegue ferir o mundo.
Você bebe um copo de água, toma remédios, quando você engole, eu engasgo um engasgo que desconfio que já não irá me abandonar. Acendo uma vela, decido acender duas velas. Dou água para os guias, tento fazer as pazes com os guias que havia abandonado. Você sai pela porta mais um dia. Meu engasgo está aqui, não sei o que fazer com ele, mas por enquanto decido que vou primeiro cuidar do teu engasgo. Entendo neste momento que a fé existe porque existem filhos. E que eu destruiria o capitalismo com minhas próprias mãos só para te ver sorrir outra vez.