Badio Branku de Djam Neguin
Djam Neguin, artista caboverdiano multifacetado provocativo e irreverente, brinda-nos e surpreende com nova composição. “Badio Branku” como título, manifesta uma capacidade sintética de todo um conteúdo e narrativas contemporâneas daquilo que enfrentamos nas nossas sociedades, sedentas de africanidade como processo emancipatório.
Djam canta a um “espelho invertido”, uma máscara de quem não se quer ver. E sobretudo acusar-se. O existencialismo fala-nos do fardo que é a nossa própria liberdade, na simetria de uma responsabilidade que nem sempre é assumida na mesma medida. Amílcar Cabral falou disso, quando projetou e defendeu a criação do “homem novo”, que pensasse pela sua “própria cabeça”. Um ser livre. Um homem que se pode dar ao luxo de se ver e de ser visto, humanamente, sem “lágrimas de cor”.
Gabriel Fernandes, sociólogo cabo-verdiano, alerta-nos sobre uma tal “brancalização identitária”, encrostada na epiderme das nossas ilhas. Uma espécie de percurso ambíguo em que se nega subliminarmente boa parte do todo identitário. Porém, o subconsciente colabora com a subjetividade, tal e qual um software defeituoso, para depois ser por ele traído. Frantz Fanon explica na sua problematização do pós-colonialismo, que o processo “colonizatório” se baseou num racismo tão profundo e implacável que até inculcou a necessidade vital de uma máscara branca nos colonizados… porém também nos colonizadores. Ainda Fanon olha com desconfiança a práxis revolucionária de descolonização, já que a colonização se perpetua na subjetividade, nas amarras económicas, uma colonização mental.
Djam parece-me estar à procura dessa humanidade que ficou costurada por baixo das epidermes negras e brancas, duplamente subvertidas pelas máscaras nesta dualidade de cores à frente do espelho invertido.
Uma caricatura perfeita foi feita há alguns anos pelo humorista Dave Chapelle, que fazia o papel de um cego racista que lutava pela supremacia branca. Porém sem saber que era negro até chegou a liderar a Ku Klux Klan. Quando descobriu que era negro, divorciou-se da mulher por ela ter sido uma “amante de negro”.
Achille Mbembe, historiador camaronês na sua Crítica da Razão Negra refere que a dinâmica da escravização do negro e a coisificação da sua humanidade está muito relacionada ao avanço do neoliberalismo. O devir do negro consagrar-se-á no mundo como uma realidade global. O consumismo, a animalização e o tratamento do trabalhador com o mesmo estatuto dos escravizados, transfere para todo o ocidente todo o historial de dominação, agora em escala universalizante.
Djam está na linha de “Aimé Cesaire” que cunhou a palavra “Negritude” como expressão da afirmação cultural, e defendia um pan-africanismo que valorizasse a reflexão e a expressão da diversidade cultural dos povos como forma de emancipação. Cheikh Anta Diop, um dos maiores cientistas e filósofos do século XX foi, na mesma senda de Césaire, um revolucionário das causas da identidade e da emancipação dos povos, ao lançar o debate sobre a verdadeira identidade dos egípcios.
Importa sim olharmo-nos ao espelho as vezes necessárias para nos reconhecermos em Thomas Sankara, Kwame Nkrumah, Patrice Lumumba, Leopold Sedar Senghor, Mário Fonseca, Amílcar Cabral, Nelson Mandela, W.E.B. Du Bois, Marcus Garvey, Malcolm X, Martin Luther King, entre muitos outros. Porém, sabendo enunciar e desmistificar os tais “lugares de fala” a que se refere Djamila Ribeiro, cientes de que a subjetividade contém as armadilhas da dominação.
Estala o debate racial em 2020, quando em baixo do joelho de um polícia branco morre asfixiado George Floyd. Será o muro de Berlim do debate racial no mundo… foi a especulação latente, seguindo ondas de condenação e de horror pelo vislumbrar de uma realidade que vivia mascarada.
[Sonhos, utopias…]
As coisas desse “Badio Branku” quando “a pele é disputa”. Vale sim alteridade. Ser preto ou branco são construções do campo da dominação socioideológica, um sistema de dominação. Por isso, demências severas. Todavia é urgente aprendermos sobre “o outro”. O outro como identidade [também] alternativa ao eu, num humanismo solidário com o género humano como alma única da natureza. A superação da lógica racista, a superação dos limites da cor da pele, das liberdades de ir e vir.
O Amor torna-se fantasia. Vivemos de uma crise afetiva sem precedentes. A insegurança afetiva tem similaridades com a extrema pobreza de muitas regiões do mundo.
Um dos nossos poetas-maiores, Corsino Fortes poemisa na trilogia “A cabeça calva de Deus”, livros “Pão & Fonema; Árvore & Tambor e Pedras de sol & Substância” num poema épico a necessidade do verbo, do ditongo, do sal e dos afetos que enformam a substância dos nossos dias. É um poema sem dúvida universal, pacificador, porém passível de interpretação à luz dos sistemas de dominação centrados naquilo que nos separa. O substantivo é uno, diria Fortes, quando se trata de humanização e normalização da igualdade genética [pelo menos].
Orunmilá, da tradição Ioruba defende na sua cosmovisão, a disposição de reconhecimento da nossa humanidade como condição para a disponibilidade para o Amor. Sem sistemas de dominação, sem máscaras. Uma “infantilização” a favor da vida que considere os diferentes aspetos da natureza como de igual valor. O amor para ele é um afeto catalisador de bem-estar. Agrada-me esta interpretação afro-perspetivista, em que o Amor encontra sempre caminhos-atalhos para que estejamos bem connosco e com o outro.
Assim como me agrada este grande artista Djam Neguin, un enfant terrible que chega aos nossos neurónios.