Centro de Dia

Nos passados dias 27, 28, 31 de Maio e 1 de Junho, inserido no festival alkantara, D. Vlassova & guests apresentaram no Centro Social da Sé (um Centro de Dia da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa) o espectáculo CENTRO DE DIA, dividido em duas partes:
O dia - em que o Centro, de portas abertas, recebia os visitantes que aceitassem passar pelos tramites necessários para se ser futuro utente (entrevistas com a psicóloga e com a directora, sessões colectivas de rememoração, visita às instalações do Centro, frequência das aulas de ginástica, danças de salão, baile com Tony entertainer e, finalmente, uma entrevista à recém-criada rádio Muchico, de inspiração na sua homónima rádio angolana de 1977).
E a noite - uma reflexão em forma de espectáculo-percurso pelo trabalho de quase um ano que a equipa desenvolveu com os idosos e as funcionárias do Centro Social da Sé.

Texto do programa
“Somos um grupo de 9 pessoas e trabalhamos com os velhotes do Centro de Dia há coisa de uns bons meses – a primeira visita foi em Julho, os encontros semanais começaram em Setembro. Em Janeiro emprestaram-nos uma sala e passámos a habitar o centro de outra maneira, começámos a estar aqui fora do horário dos nossos encontros e fomos conhecendo melhor os cantos à casa. Alterámo-la com a nossa presença e ao mesmo tempo fomos sendo afectados por ela. A pouco e pouco, passámos a entender os ritmos dos dias, as razões dos habitantes do Centro e a conhecer as flutuações do clima nos ossos e nas cabeças de cada um, a ver o passar do tempo nos seus corpos, a conhecer melhor os lugares onde se está quando por aqui se anda. E de repente descobrimos grupos de pessoas (funcionárias, idosos, assistentes sociais, assistentes domiciliárias, voluntários) e pessoas em grupos (cada um deles, cada um de nós) juntas entre o tempo de agora, o de uma partida de Bingo, e o tempo de um ontem (ainda não há tanto tempo assim) quando Portugal se derramava pelo mapa de África. Encontrámos ecos desses tempos (corcundas, artroses, rugas) nos dias de hoje, vimos passar-nos diante dos olhos um país (ontem, mas hoje ainda) pobre na riqueza e nas histórias domésticas, assistimos a viagens de barco para o Ultramar e fomos na Carrinha da Santa Casa levar utentes a casa. Inventámos momentos de uma intensidade surpreendente: divertidos mas duros, hilariantes, por vezes tristes, ocasionalmente catárticos.
Vimo-nos “outros” perante “eles”. Descobrimos outros “eles” (as assistentes sociais, os professores das actividades), e com esses “eles”, o “eles” dos utentes mais o “nós” do grupo que somos, criámos um novo “nós” para recebermos outros “eles” por vir (o público, o festival) que fantasiámos. Sentimos este “nós” como uma pequena vitória. Divertimo-nos com esta cumplicidade. Começámos a fazer um bocado parte da mobília. Confundimos essas categorias todas. Construímos um espectáculo que existe no cruzamento entre todos estes “nós”e todos estes “eles”, todos estes tempos e todos estes lugares. Um espectáculo que é nosso mas não controlamos.”
 
(escrito por Ana Bigotte Vieira a partir de discussão colectiva do grupo)

 

Centro de Dia só por um dia! “Bem-vindo, Futuro Utente!”

Convidados para experimentar um Centro de Dia por um dia é a proposta de Dona Vlassova & Guests (artistas reais de Lisboa), no âmbito do Festival Alkantara. Durante o dia é-se convidado a conhecer a vivência do Centro Social da Sé da Casa da Misericórdia de Lisboa, na condição de futuro utente. Conversa-se com a directora do centro, fazem-se os testes e avaliação com as técnicas para se estar apto a integrar as actividades que o Centro nesse dia promove (ginástica, dança, expressão plástica, etc.). Ao som das palmas rítmicas, inconfundíveis, que se ouvem junto às escadas, faz-se fila para a refeição. E no ritmo de uma outra digestão, é-se entrevistado na rádio efémera do Centro por estes dias, a “Rádio Moxico” (evocando a rádio homónima de Angola), transmitida em AM e nas colunas que difundem o som para o jardim que cerca o Centro.

apresentação no Festival Alkantaraapresentação no Festival Alkantara

O espaço é uma antiga casa senhorial que transpira a sua energia Bũnueliana, com a diferença de ser a cores e real. Na perspectiva de espectador (por esta altura, esquecemo-nos com facilidade de que o somos), a realidade da ficção funde-se com a experiência da realidade persuasiva (diria, ainda, na forma de ficção) porque, na verdade, é de um espectáculo que se trata. A ficção torna-se realidade porque se sedimenta, como na vida documentada. Quer dizer, por esta altura, parece que não há actores. Não há actores nem actrizes (apesar de eles estarem lá, apenas não aparecem como tal), aparecem invisíveis no seu papel, aparecendo apenas como pessoas que habitam um Centro de Dia. E o público? São as visitas que se querem como actores, são futuros utentes por um dia. Como os actores são invisíveis, também a condição de idoso o é. Pelo menos, invisíveis no sentido social. São aqueles de que não se fala nem se vêem, melhor ainda, de que não se quer ver, atirados para além da margem (de forma a não poderem ser abrangidos/protegidos pela lógica do poder). Então, se são invisíveis os actores e os sujeitos protagonistas (na sua dimensão social), não estaremos nós, público, a viver uma ficção, a habitar um não-lugar? Se os actores não o são, e há a inversão de papéis (o público como actor), então o lugar do não lugar que agora se apresenta não é a realidade, mas mais perto de uma ficção. Pois. A tensão começa.

Não sendo permitida a estadia durante a hora vespertina para o jantar, obrigam-nos a um distanciamento para uma merenda rápida na zona da Sé. Faz lembrar haver apenas uns trocos pela falta de tempo para comer à mesa e o espectáculo propriamente dito começa às 19h. O espectáculo está dividido por capítulos. Como nos diz o programa, “uma narrativa livre dos dias que passámos no Centro Social da Sé”. São dias, muitos, que agora se apresentam no limbo do dia para a noite. É logística necessária ao evento, mas também soleira da vida para a morte, limiar do real para a ficção. Vamos morrendo, quer dizer, vivendo!

“O primeiro dia” é passado no hall de entrada. Toda a audiência expectante e especada à espera do início do espectáculo. Penso na tarde que passei. Convidam-nos para uma selva evocando, estereofonicamente, Tarzan. A selva da vida, pensa-se; o imaginário colonialista, evoca-se. Os actores reais espreitam na porta depois das funcionárias ultra-reais darem o mote do início do espectáculo. Bebo o meu último gole de água, da garrafa de um dia muito quente. Entramos com a mostragem de uma placa a sinalizar o capítulo: “todos os dias”. A ordem sonora é de poder circular pela casa, desde que não se abram portas, que não se abram portas…

O público circula pela casa que não tem ninguém, se é que se está à espera de pessoas. Apenas arquitectura, sonoridades em cada sala (que despertam à atenção de um espaço funcional), e uma subtil interacção entre as únicas pessoas que circulam, a audiência, e de que eu faço parte. Afinal somos actores, e a nossa experiência vivida, a cena ao vivo! (Será o público uma ficção quando se torna actor no espectáculo?). “Ah! O que é que é aí?”, ouço ao meu lado. “É só arquitectura. É a lavandaria”, responde-lhe o companheiro. “Deixa estar, então”, responde-lhe desinteressado o interlocutor, como se a ficção da realidade não existisse. Caminho pela casa, agora vazia de (ultra) actores reais. Como eu me enganava. (Re)conheci as salas (2 pisos com salas de estar, lazer, trabalhar, imaginar) do “deixa estar” do outro, desse lugar que rapidamente, com ninguém, se transformou na experiência de uma viagem pelo vazio (apesar da arquitectura e dos adereços ultra-reais, feito antiquário). O público caminha de sala em sala num fluxo que parece curioso e se transforma num mecanismo colectivo de experimentação do espaço, de um todo que vai para ali e para acolá, de sala em sala. Estamos num espectáculo e, de repente (só podia ser), a ultra-realidade eram os fantasmas que ali habitavam e que em nada incomodavam, como se fosse uma exotização de uma ficção que, afinal, estava a ser real (é a morte).

Porque foi orgânico o movimento colectivo da audiência tornou-se fácil ver, e todos viram uma nova placa, um novo capítulo, “rock’ n’ roll”. No átrio das escadas do primeiro andar, uma porta abre-se, “surpresa!”. Entravamos agora numa sala ampla com todos os actores ultra-reais ao fundo (viam-se também os reais), agora sim, para uma ficção dramática (pensa-se), um palco com actores e uma audiência (para além dos fantasmas).

Em forma de espectáculo de variedades, os actores ultra-reais (os idosos que se auto-representam), na sua idade avançada, cantam-nos canções, um a um, em coro, canções de um tempo que nos faz renascer, de uma portugalidade que imaginamos perdida (e tantas vezes sem sentido). Uma realidade que, afinal, toma a forma de ficção. O público assistia, de facto a um espectáculo. Havia os masters of ceremony idosos da sessão que apresentavam as canções e os idosos que representavam cantando-as (para quem não conhecesse tinha a tradução em inglês projectada na parede – estávamos num festival internacional). Só podia ser uma ficção! O que é facto é que uma energia embarcou no grupo que representava, uma energia tal que de imediato me comoveu. Não pela exotização da velhice, não pela piedade, não pela freakilização que poderia haver, nada disso (e creio que para todos), mas pela sensibilidade, dignidade e humildade que se apresentavam defronte de nós, a cantar e depois a dançar (com os actores, com a audiência), porque depois do concerto houve um baile no centro da sala, em volta do público que também participou. Comovi-me por adivinhar uma história-fantasma que ali vi nas personagens ultra-reais, uma ficção persuasiva. Comovi-me (lágrimas visíveis mas silenciosas, daquelas que dão prazer sem denunciar), pela dor daquela gente que entrevi sem saber, pela ficção que se me entranhou como real. Por excesso, parecia que o concerto, e depois o baile, não tinham fim, que era aquilo a vida (que a ficção afinal, fez brotar o real que eu imaginei).

No tempo certo, felizmente para mim, uma saída da sala em marcha popular fez aparecer outro capítulo. Agora, os actores reais dividiam a audiência (também actores de uma realidade ficcional, diria simplesmente: actores), são convidados a fazer o seu percurso. Estava visto que iríamos separados, cada um para a sua ficção; não (quero dizer): realidade; não: vida; não: morte? Sim! Os velhinhos disseram o que tinham a dizer, parecia… a dança da vida.

O meu percurso levou-me para o capítulo “Andam aqui artistas”. Um grupo de pouco mais de uma dezena de pessoas foi dirigido para o jardim onde, com esta temperatura, tinha sido servido o lanche, à tarde, de dia. A funcionária mais antiga do Centro explicou a biografia do edifício, história que é feita de aristocracia que (como é usual para quem estuda história) se degrada, desta vez pela aposta no jogo (e que conduziu à penhora dos seus bens) daqueles que associam a busca da vertigem na voluptuosidade do pânico, um estonteamento de quem desvanece a realidade na sua mais pura ficção, o facto do dinheiro da aposta se tornar vício da falta de prazer na vida (de não necessidade de trabalho e, talvez, de amor), ali por alturas de uma revolução de Abril. Pois. Foi o mote para conhecer a Sra. Z., uma senhora de pouca conversa que apenas requer que lhe perguntem pela vida (ficção?). Engana, porque porta um livro de poesias de Bocage. No jardim, ao lado, e antes de falar com ela, está uma casa com um pequeno e curto telhado. É contígua ao limite do jardim, da propriedade e, quando se entra, se vê que tem 1metro por 5metros. Como é possível uma casa de madeira de 1x5? Numa extremidade está um ecrã de tv com a Sra. Z. a citar Bocage. Agora não chorava, gargalhava. E depois, lá estava ela, à espera, lendo Bocage, agora na realidade (ficção da ultra-realidade?), a ultra-actriz pronta a responder ao que se lhe perguntasse. Lia mas não sabia escrever; vivia naquela casa apesar de agora não estar lá, por causa do espectáculo (a sua casa real fora transformada em ficção?); sempre fora caseira desta propriedade, mesmo quando os donos desapareceram, hipotecando a casa numa aposta; sempre viveu só por ali; sempre tomou conta de tudo. Agora não há ninguém que cuide das telhas, que sulfate as uvas das parras que insistem em produzir uva; tudo parece um pouco perdido, apesar de a palmeira continuar a crescer (e ser uma das mais antigas desta zona de Lisboa), de haver ameixas (vermelhas e amarelas), e limões, e nêsperas, e ela ter refeições do Centro, e ir à missa ao domingo (independentemente da igreja) e de passear de seguida e continuar só, e apenas responder ao que lhe perguntam. E, depois do espectáculo, voltar à sua casa de 1mx5m. E da ideia de nada parecer ter mudado neste país, a não ser, talvez, o facto de agora a casa dela ser uma ficção, de toda a realidade só poder ser uma ficção.

Chamaram-nos para outro capítulo. Carambas! Capítulos remetem ao livro. De livro, cedo, tudo parece acontecer nas entrelinhas. A realidade acontece nas entrelinhas. Mas, de facto, é nesse espaço que, atentos, nos encontramos na ficção. Ainda mais porque, capítulo a capítulo, abrem-se portas que nunca se abriram. Subo escadas e entro agora na porta da placa negra que nos diz: “Só fazem o que querem”. Estamos no salão onde outrora habitavam os fantasmas, e onde numa ala se ouviam números para um jogo que reclama apenas um a dizer: “bingo!”. A sala agora tem ao fundo duas senhoras de uma idade muito avançada, ao redor das quais todos nos sentamos.

“bxbxbxbxbxbxbx”, ouve-se uma actriz real a dizer ao ouvido algo a uma actriz ultra-real. E vai-se. Ouvimos agora uma história de sofá ao pôr-do-sol, pela senhora idosa que outrora cantava e me fez chorar. “Pois! O Burro puxava a água…. E eu era nova, lá no campo, havia um caminho e eu ia sozinha, a minha avó já tinha ido para casa. Era um campo que amanhávamos. Eu ia no caminho e, no pinhal, que estava para lá, vi um lobo e fiquei cheia de medo. Não era um lobo porque eu nunca vi um lobo! Eu não sei como é que é um lobo, por isso… era um… As raposas apareciam assim, junto das casas. Comiam galinhas que iam para o poleiro à noite. Punham-se lá no poleiro, à noite. As raposas comiam porque tinham fome. Tinham fome e comiam tudo… Amanhávamos uma terra e tínhamos de pagar com 10 (?) alqueires de milho, porque a terra não era nossa. A terra era muito grande e eu ia pelo caminho, no pinhal. A minha avó já tinha ido para casa. E estava cheia de medo porque vi um lobo, um lobo não, porque nunca vi um lobo. Era um carneiro… não um carneiro eu sabia bem o que era. Por isso não era nenhum carneiro. Estava cheia de medo, ia pelo caminho, no pinhal. O que vale é que o animal foi por outro caminho e foi-se e eu, cheia de medo, estava por outro caminho… ia para casa.” – ultra-real = ficção?

Vêm-nos buscar novamente, nova placa: “Para onde é que nos estão a levar?”. Sei que me estou a alongar, mas o espectáculo continua, apesar de o tempo ter parado. No teatro o tempo pára, expande-se… bem sei. Só poderia ser actor! Porque a experiência vivida me estava a transportar para uma realidade outra (novamente: ficção?), uma realidade de um contexto que eu era o fora-dentro (novamente a soleira da porta) mas, afinal, era a realidade! Subimos as escadas até ao sótão, terra de ninguém (dir-se-ia), a avaliar pelo calor e pelas madeiras que desenham o telhado, barrotes pintados de branco mas espaço que os idosos certamente não se interessavam em entrar.

Estamos no topo do edifício e entramos numa espécie de espaço onde se guardam os documentos do passado da instituição (fantasmas, novamente). E sentamo-nos num anexo do sótão onde está uma actriz real, sentada, olhando para uma tela de projecção onde se vê a nova Lisboa, a da Expo, a da representação do outro na contemporaneidade. Em plano único, o travelling conduz-nos pelo Parque das Nações. A actriz real contempla a paisagem e fala-nos do outro, da experiência vivida do homem negro pelo facto de por fora ser negro, nas palavras de Fanon. Há uma estranheza pelo facto do texto ser dito em inglês. Fala-se para o mundo, penso (estamos num festival internacional). A cena contrasta com o estilo até agora expresso. Talvez pelo facto de estarmos num espaço marginal (o sótão da casa), lugar de ninguém, tenha conduzido à criação de uma cena também ela marginal ao todo. Trata-se certamente de um statement. Esta incapacidade da contemporaneidade portuguesa lidar com o outro, com os outros da nossa história, com os outros da nossa sociedade actual em todas as dimensões, cruzando todos os sistemas de opressão, e o medo que o negro provoca àquela criança é também o medo que a velhice, condenada ao abandono, encerra. Parece então que assistimos a uma ficção, a um fantasma da nossa experiência, do facto de as nossas memórias serem escondidas, incapazes de se inscrever, como em José Gil. Assistimos a um puro acto performativo. Talvez vendamos uma imagem limpa e aparentemente amistosa do outro (Expo). Mas essa realidade parece não passar de uma ficção, uma nebulosa ficção que teima em não querer parecer real, não se assume.

Nova placa, novo capítulo. A página do livro desfolha-se. Entramos finalmente nos estúdios da “Rádio Moxico”, assistindo ao vivo ao programa do momento, um programa de economia em que as convidadas, ultra-actrizes em acção, explicam formas de gerir o dinheiro do mês, dão dicas para não se ser assaltado na rua, ou no eléctrico. Estas pessoas, apesar de vestidas andrajosamente (talvez tenham escolhido os melhores vestidos do guarda-fato) esticam a reforma até não ser mais possível, não por falta de força, mas de meios. Vivem na velha Lisboa, nos bairros à volta da Sé e parecem abandonadas, não fosse o Centro, passavam fome. Mas onde está a família? _ Pergunto. Enquanto revelam as estratégias de sobrevivência, comovo-me novamente com a humildade e dignidade destas pessoas. Caminham com medo na rua por causa dos larápios que bem conhecem (foram criados com os seus filhos), caminham com medo nas suas casas, sós, talvez não tanto, porque à janela assistem à novela dos novos tempos. Se não fosse o Centro… Ainda tenho tempo de apanhar o programa seguinte, sobre as viagens a Àfrica de uma convidada que passou parte da sua vida na mata, no tempo ultramarino, mas uma nova placa chama-nos para um novo capítulo, “foram-se as pernas, ficaram-se as calças”.

Se ficaram as calças vazias, ficou a solidão, a saudade, novamente fantasmas pairam nos corredores. A cena é performativa, feita por uma actriz real. Tem inspiração dos tempos salazaristas e refere a participação das mulheres na guerra colonial, a retaguarda de “madrinhas de guerra” que o esforço ultramarino produziu e mostra-nos uma Lisboa deserta de homens. Provém certamente de histórias de vida reais, mas apresenta-se em forma de ficção. Que gente maravilhosa, esta_ penso. Tripartida em várias divisões, acabamos assistindo a um vídeo. Uma floresta com árvores que rodopiam ao vento. Mas, de repente, em câmara fixa, uma árvore cai. E nova imagem com árvores a dançar. E outra árvore cai. E nova imagem… Acho que chorei. A morte deve ser chorada.

O espectáculo é longo, como devem estar a perceber, se chegaram a esta parte do texto. Acabamos todos sentados na esplanada do jardim. Temos cartões de bingo à frente do nosso lugar. No meio da mesa, botões. Na realidade vamos jogar, um real que junta actores (público), actores reais (performers) e actores ultra-reais (performers que se auto-representam). A mesma voz que na segunda cena dava a sonoridade de uma sala, ouve-se agora, ao vivo. A energia instalada é de “communitas”, partilhamos todos uma solidariedade do tipo ritual. E digo isso pelo que de imediato senti: uma tranquilidade como estar em família num domingo vespertino. Sim! Já somos uma família. Até que alguém grita: “BINGO!”, e o espectáculo acaba… até ao dia em que ali todos esperamos voltar.

por Ricardo Seiça Salgado
Palcos | 8 Julho 2010 | centro de dia, experimentação, Festival Alkantara, imaginário colonial, retornados, teatro