Apocalipse Now e os “Soldados Perdidos” da guerra colonial portuguesa na Guiné

Acabado de sair do prelo, Soldados Perdidos é um livro autobiográfico de João Viegas sobre a sua passagem na guerra de ultramar portuguesa, com epicentro na Guiné, na “Guiné meu amor”, como o autor se lhe refere. João Viegas é o único estudante da Universidade de Coimbra que foi destacado para a frente de guerra na selva da Guiné após a crise académica de 1969, dos 49 estudantes ativistas cuja sorte fora a incorporação no exército português, alguns enviados para a morte, mesmo que a morte não quisesse mal ao autor deste romance.

O título do livro diz tudo: uma guerra de soldados perdidos, sobretudo de gente pobre que lhe foi dada o destino de alcançar a maioridade nas fileiras das várias frentes de guerra em que os inimigos impostos pelo regime fascista lutavam pela sua libertação. Mas como lutar pela libertação no lado português, no seio de um exército formado por milhares de jovens impreparados para o que se lhes reservava? A loucura? A embriaguez? O medo? O amor a uma pátria desesperadamente assente numa bandeira usurpada pelo fascismo? A morte, certamente (em frente à bandeira, não aos seus governantes de então).

O alferes Viegas conta-nos a sua viagem alucinante nos meandros da frente de batalha na selva onde nada se vê, onde apenas se cheira aquilo que designavam por IN (inimigo), talvez para se defenderem na linguagem da crueldade que uma guerra encerra. O cheiro a selva, a pólvora, a carne estropiada, a napalm (como o autor testemunha, apesar do desmentido oficial), a cerveja, a humidade tropical, o whisky. O próprio livro cheira a whisky, sobretudo ao whisky velho da marinha portuguesa, não fosse este nosso alferes ter uma trupe de fuzileiros junto do seu quartel improvisado junto ao rio Cumbijã. Com eles havia de fazer ski aquático no meio da fauna de crocodilos ali existentes, ou pescar com granadas para afastar esses crocodilos e garantir a próxima refeição fresca.

O alferes Viegas não se tornou propriamente coronel Walter E. Kurtz de Apocalipse Now, mas pouco lhe faltou. Ambos, provavelmente, apenas queriam salvar os seus homens da morte, não só da guerra, mas da política de Estado que os pôs ali. Nos dossiers superiores e confidenciais, a frase: “Cuidado que o alferes Viegas é perigoso e pode, a qualquer momento, fugir para o inimigo” estaria a negrito. Felizmente, Viegas tinha um furriel ranger, o Trindade, que levantou mais de cem minas na frente de batalha e que o ajudou em tudo de negro que por lá se passou – para acabar em morte trágica na vinda para Portugal, atropelado por um camião da tropa portuguesa –, e os fuzileiros ao lado, comandados por um tal Subtenente Labaredas, uma máquina de guerra suficientemente alucinada para acompanhar este nosso alferes. Viegas não se tornou Kurtz talvez porque se feriu em combate e, por se ter recusado abandonar os seus soldados, acabou nas graças do General Spínola, tendo sido enviado para os serviços secretos militares em Guiné, mesmo sob o olhar atento da PIDE que o chegou a confrontar com a acusação de libertar inimigos no meio da selva.

Na Guiné, saído da frente de batalha, foi visto com respeito por todos à sua volta e, como alferes dos serviços secretos, teve liberdade para gerir os conflitos à sua maneira, nas portas de um 25 de Abril de 1974 que tardava. Aliás, sente-se no livro que os militares não falavam do regime mas que ele já se lhes atravessava na garganta. Na Guiné, apaixonou-se por uma jovem mulata, espiã do PAIGC, a Bela da casa do “Pilão”, onde várias negras conseguiam fazer esquecer a guerra, paixão que lhe sai cara pois a rapariga acaba por ser capturada pela PIDE e enfrenta a prisão secreta e negada dos Bijagós, no ilhéu das Galinhas. Não fosse o 25 de Abril de 1974 e a sua sorte ficaria igualmente marcada pela morte. O Pilão será igualmente a casa que serviu de abrigo ao nosso alferes durante um ataque feito pelo IN à capital guineense.

A possibilidade do amor em tempos de guerra parece um paradoxo, assim como a redenção na guerra também o será. Mas este soldado perdido, abandonado pelo Estado nos anos subsequentes (ele e todos os outros milhares de soldados perdidos que esta guerra fez, de um lado e do outro) consegue quebrar a rede da contradição e fazer inscrever a redenção (pela ficção, diga-se), indo morrer numa viagem marítima aos mares do sul, naufragado como o grande poeta Camões, superando a utopia de um país que nunca quis resolver os problemas que uma guerra destas causa na sociedade portuguesa e nas sociedades outrora coloniais. Só a força de uma utopia concretizada poderá superar os traumas simbólicos e energéticos em todos aqueles envolvidos na que será a maior tragédia nacional do último século. De notar ainda que é este nosso alferes, já em Portugal, que reabre o CITAC (Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra) assim que volta da guerra, fechado pela PIDE em 1970, outra das múltiplas fénix que o nosso autor ousou fazer acontecer.

Agora, temos já o esboço do argumento para o nosso Apocalipse Now. Falta apenas a mão de um realizador que torne essa utopia numa heterotopia e possamos, quiçá, reparar o irreparável. O prefácio do livro é feito pelo Coronel Mário Tomé, com posfácio de Carlos d’Abreu e Tanto-fácio de Paulo Archer.

 

Para encomendas desta obra rara vale o email soldadosperdidos@gmail.com. Este livro é um testemunho único cujo realismo e humanidade emergem agora, quarenta e seis anos depois do final de uma guerra cuja maioria teima em não falar. Paz a todos os que sofreram com tamanha atrocidade. Preparemos, de seguida, o grande ritual de apaziguamento das almas perdidas e enfrentemos os receios que fazem do tabu a tábua rasa dos nossos (des)merecimentos.

 

Extractos de “Soldados Perdidos” de João Viegas

 

«Naquele 16 de junho de 1972 estava um belo dia de Verão, ideal para uma ida à praia. Quis o destino que a minha sorte estivesse marcada para embarcar, nesse mesmo dia, para a guerra colonial, mais propriamente para a Guiné, o paraíso de todos os medos onde a morte espreitava em todas as bolanhas e a vida era só um intervalo no próprio medo.» (p. 19).

 

«Passada uma hora chegámos ao destacamento. O pessoal estava cansado e eufórico, pois tínhamos um prisioneiro. O pelotão substituto regressou à base do comando, e o pessoal, esgotado, foi deitar-se, não sem antes revistarem o prisioneiro, que estava amarrado a uma barra de ferro, numa tenda esvaziada para o efeito.

– Ninguém trata mal o preso de guerra, amanhã, pode acontecer o mesmo connosco e, não quero retaliações.

Com o cansaço que trazia, adormeci rapidamente, só acordando às cinco da manhã com um problema para resolver: o que fazer com o preso de guerra? Decidi falar com o capitão que me daria instruções nesse sentido, segui de unimog para o comando onde o capitão já me esperava com ar de preocupado.

– Então alferes, o prisioneiro está bem guardado?

– Claro, meu capitão, o homem está numa tenda, com guarda à vista.

– Alferes, dentro de dois dias a PIDE vem cá buscá-lo, para o interrogatório. Quero o homem bem guardado.

– Esteja descansado, meu capitão.

Bati a pala, e fui-me embora para o destacamento o mais depressa possível. Entregar um preso à PIDE, nunca. Fui falar com o Trindade.

– Trindade, eles querem entregar o preso à PIDE e, eu não o vou fazer. Ajuda-me a preparar um esquema para lhe dar a fuga.

– Viegas, arriscas-te a ser preso e eu também. Estou de acordo, a PIDE-DGS se quer prisioneiros para torturar, que venha combater para o mato. Primeiro que tudo, vamos prendê-lo a uma árvore, com cordas. É tudo mais fácil, a partir daí.

– OK, trata de tudo para lhe dar a fuga durante esta noite.

Voltámos à rotina normal do destacamento, só que desta vez com o prisioneiro atado a uma árvore, pelo tronco, perto da tabanca, com um soldado na zona.

Falei com o prisioneiro, na presença do furriel.

– Não sei se compreendes: tenho ordens para te entregar à PIDE mas não o vou fazer. Hoje à noite vais embora, após umas explosões de granadas ofensivas. Diz à tua gente para não atacar mais o pessoal.

– Alfero manga di bom comandante.

Não houve mais palavras, fui-me embora para falar com o furriel Trindade, que encontrei no bar, a beber umas fresquinhas, em fim de tarde atribulada.» (p. 95)

 

«Já no início de Maio, foi dada a ordem para a extinção da PIDE-DGS, os comandos internaram todos os agentes “pidescos” no quartel do Adidos, e, foi dada a ordem para fechar o campo de concentração do Ilhéu das Galinhas, nos Bijagós, libertando e transportando os prisioneiros para Bissau. Tive o privilégio de ser convidado para fazer parte do grupo de assalto juntamente com os comandos africanos, entre os quais se destacava o sargento Abibo e os seus oito camaradas. Dois helicópteros voaram para o objectivo, o comandante da força, era um alferes comando, o Mateus, jovem valente e que não estimava os bandidos da polícia política. Os “helis” aterraram no ilhéu, vimos homens a fugirem para o mato, os “pides”. Eu ia armado até aos dentes: G3, pistola; e  granadas. Os comandos, como sempre, assustadores: MG 42 a tiracolo; os bandidos tinham todas as razões para fugirem, sabiam que a morte se aproximava. Fomos recebidos por uma secção do exército, seis homens comandados por um furriel assustado.

– Senhor alferes, o que se passa? Perguntou-me.

– Senhor furriel, viemos libertar os prisioneiros e, só espero que nada de maior lhes tenha acontecido, vocês não tenham feito merda com eles, caso contrário sereis imediatamente presos.

– Meu alferes, só cá estão três mulheres e quatro homens.

– Furriel vá já buscar os prisioneiros. E o que é feitos dos “pides”?

– Quando viram os “hélis”, fugiram para o fim da ilha.

– Deixe-os estar, mais tarde virá uma embarcação para os apanhar. Permanecereis aqui até que alguém vos venha buscar.

– Certamente, meu alferes, disse o furriel com cara de medo.

– Quando chegaram os prisioneiros, a Bela à frente da coluna, com um sorriso enorme, abraçou-me apaixonadamente e chorou, convulsivamente:

– Alferes bonito, eu sabia que me vinhas salvar. E beijava-me o rosto. Os comandos olhavam com um ar sorridente.» (p. 174-175)

por Ricardo Seiça Salgado
A ler | 11 Setembro 2020 | guerra colonial, Guiné Bissau, Literatura