Entrevista a Pedro Coquenão: "Há quem diga que é normal em tempos de guerra as pessoas agrupam-se e defendem-se umas às outras"
Originalmente publicada no jornal Rede Angola (em 2014), o BUALA divulga esta entrevista no dia em que Pedro Coquenão (Batida) dá um concerto no Mexefest, juntamente com Spoek Mathambo. O concerto será na antiga sala de projeção do Cinema Tivoli, à 00h, e dois filmes servirão de inspiração estética a dois dos mais influentes artistas da nova cena afro-electrónica mundial.
Quando chegámos, a primeira coisa que Pedro Coquenão faz é apresentar-nos às suas dikanzas. São três, feitas por pessoas diferentes, cada uma com um feitio e som distinto. Apesar de não ter muito jeito para tocá-las – é o próprio quem o admite – lamenta a raridade em que o instrumento se tornou. Estamos no estúdio de gravação de Batida, numa garagem escondida na zona de Lisboa. Aqui cozinha-se música mas Coquenão e a sua Batida são mais do que isso: “É um mundinho onde tento viver o mais confortável possível”.
Não se deixem enganar pelo diminutivo. Lá dentro cabe muita coisa. Política, viagens, cinema, música e, claro, Angola, de quem não pára de falar. Nascido no Huambo, de onde saiu antes do início da guerra civil para Portugal, este luso-angolano não se assume como músico: “Sou uma pessoa que faz coisas”. Entre essas coisas está o falecido projecto Fazuma, rádio de promoção de música com raiz africana, e o documentário “É Dreda Ser Angolano”, exibido em vários países.
Batida, essa, continua a fazer-se ouvir. Dois é o nome do projecto mais recente, lançado em Outubro. Para lá de Lisboa e Luanda, eternos pontos de partida, a ponte que Pedro Coquenão construiu estende-se agora ao resto do mundo: “Não é algo consciente. Para mim é vida. É crescimento”.
Batida é também um projecto de preservação e difusão de música tradicional angolana. Sentes falta de outras iniciativas do mesmo tipo?
Em Angola houve uma interrupção geracional de fabricação. A própria indústria ficou destruída e inoperacional depois da descolonização, portanto, é estrutural. Nem se consegue fabricar leite quanto mais vinis. Depois há uma outra razão relacionada com as pessoas que entretanto tiveram outras prioridades. Passas anos em tempo de guerra e às tantas achas que a cultura não é a primeira coisa a defender. Veja-se o exemplo de Portugal: assim que o FMI entra, o Ministério da Cultura fecha, e nem é propriamente uma guerra. As prioridades de manutenção diminuíram, ou desapareceram até, e as que vieram são uma espécie de propaganda ou de tentativa de recriar uma identidade nacional. Bandas como os Ngola Ritmos serviram um propósito porque enalteciam esta nova Angola e uma ideia de independência.
Há uma negação do passado?
Uma manipulação da memória construída durante os 1960 e 1970, que eu não vivi, mas segundo sei é uma memória de uma cidade cosmopolita. O próprio MPLA, pela voz do Agostinho Neto, falava dessa necessidade de uma Angola em que todos coubessem. Falava do perigo para o futuro, e que acabou por se materializar, de Angola se tornar inimiga dela própria, de inventar novos opressores e figuras colonialistas, já não associadas a um país ou cor de pele, mas a uma outra forma qualquer.
O kuduro é um produto dessa nova Angola? Costuma dizer-se que está desligado do resto da música nacional.
Parece desligado mas ninguém consegue fazer isso porque nós temos memória e informação. É mais um ajuste ao tempo ou à tecnologia. O kuduro do Tony Amado – foi quem fez a música que deu nome ao estilo – é a passagem do som de uma marimba para um teclado electrónico. Foi a introdução do computador, do teclado, da electrónica. Dá ideia de que se introduziu um novo género. Não, houve só uma nova forma de fazer a mesma coisa.
Hoje é um dos maiores símbolos culturais do país. Como é que explicas este crescimento?
Foi o mesmo que aconteceu no mundo inteiro, uma revolução do quarto. Em Luanda podes não ter luz, mas quando tens dá para ligar um Pentium e começar a fazer um beat. E os beats de kuduro têm, pelo menos para mim, uma semelhança enorme com ritmos anteriores, com as kazukutas e sembas da vida. O que tem de muito interessante é que se a Luanda dos anos 1960 e 1970 foi criada sobre camadas mais finas, a Luanda do kuduro é uma de décadas, de pessoas a fugirem da guerra, não à procura de uma nova vida, mas a fugir da morte. Portanto, não há propriamente tempo para se organizarem, nem há uma definição do espaço entre o musseque e o apartamento. Estive em Angola no pós-guerra e recordo-me de ver apartamentos destruídos a conviver lado a lado com outros equipados com ar-condicionado. Essa esquizofrenia herdada do tempo de guerra provocou muito do que é o kuduro hoje. Aquela maluqueira de dançar, os toques todos, os “Ti Nogueiras”, acabam por ser tudo uma reacção à guerra.
Por outro lado o semba foi adoptado como uma extensão da “Angola em que todos coubessem” de que há pouco falavas.
Houve uma clara decisão durante a independência em fazer com que o semba ficasse como a música nacional e, consequentemente, com que todos os outros géneros deixassem de ser vistos como angolanos. Isso parece que existiu, senão de forma consciente e política, pelo menos de forma inconsciente. Músicos como o Mário Matadidi vieram do [RD] Congo para Angola fazer todo o tipo de géneros e ritmos. O afrobeat é da Nigéria do Fela Kuti, mas haviam músicos noutras partes do continente a tentar tocá-lo, porque o afrobeat é mais do que um país. Simboliza luta política e intervenção através da música. E quando ouvi o afrobeat do Matadidi fiquei super-orgulhoso por mais uma vez encontrar nessa Luanda dos anos 1960 e 1970 uma modernidade que depois perdeu-se durante o tempo.
A opção pelo semba é o resultado de uma escolha política?
Tento evitar fazer grandes julgamentos e limito-me a ser vítima daquilo que me é dado a conhecer. Portanto, quem quer que tenha provocado isso fez bem. E a verdade é que, durante muito tempo, o semba foi celebrado como música nacional, isto num país formado por tantos pequenos povos e culturas, muitas delas tão angolanas quanto congolesas. Luanda também sofreu com toda essa diversidade. Não foi feita sozinha, nem só de dentro para fora. Essa doideira que foi tentar tornar Luanda num sítio invencível e fechado, a partir do qual se conquistaria o resto do país, acabou por fazer com que as pessoas viessem e criassem uma nova identidade, que tem muita intervenção externa e acidental.
Com que consequências?
Ao contrário do que aconteceu na política ou na religião, os artistas se calhar foram os menos bem organizados no meio desta história. Acabaram por ter mais poder do que era suposto e até certa altura eram tão populares como um político, o que pode ser um perigo porque se um artista for livre tanto critica um lado como outro. Refere-se em relação àquilo que o incomoda e não a um alvo. E parece-me que os artistas perderam um bocadinho de liberdade de expressão com a guerra. O que até é compreensível.
Como assim?
Há quem diga que é normal em tempos de guerra as pessoas agruparem-se e defenderem-se umas às outras.
E hoje o pretexto da guerra ainda é válido?
A guerra continua a ser pretexto para tudo. Mais do que pretexto é contexto para perceber como é que chegamos aqui e, por exemplo, como estão as relações com Portugal. Quando parecia já não haver ligação e ser uma questão de tempo até as coisas aligeirarem-se, afinal não. Temos um Partido Comunista Português que não assina uma carta a condenar a morte de pessoas por questões políticas. Temos um CDS e um PSD, aparentemente de direita, que aliam-se a um partido aparentemente de esquerda, neste caso o MPLA, e defendem-no com unhas e dentes. Temos depois o PS que deveria ter inclinação de esquerda e pertence à mesma internacional do MPLA. Vemos altas esferas portuguesas ligadas ao poder completamente aliadas de esquemas de lavagem de dinheiro. Não estou a falar das pessoas em si, mas das instituições que representam. Todo o contexto de guerra e caos que foi perdurando serviu para alimentar esta coisa. Enquanto os cães ladravam a caravana foi passando.
A ligação entre os dois países está dominada por outros interesses? Que lugar sobra para a cultura?
Acho que sim e esse interesse é pouco interessado na cultura até ela significar dinheiro. A cultura é a base de tudo, é aquilo que nos define como humanos, o sítio de onde viemos e, de certa forma, que nos vai encaminhar para o futuro. Não é ficar para trás, quietos a dizer ‘não, uma dikanza toca-se assim, uma marimba, assado’. Cada um deve tocá-las como bem entender. O meu ponto é: deve ser dado um contexto um bocadinho mais livre e rico às pessoas. Se em Portugal não há música nas escolas, em Angola nem escolas há. E aqui a música acabou transformada num exercício de escapismo em relação à guerra, pois durante a guerra todos os músicos com um discurso minimamente interessante e relevante estavam fora do país. E é precisamente esse discurso critico e consciente que enriquece a terra porque faz com que ela circule e não fique estática. Algo que esteve na origem do kuduro, por exemplo. Foi uma espécie de reacção à realidade.
Voltando ao kuduro, ele reage ao quê exactamente?
Foi como alguém dizer “eu não preciso de perceber de música, até posso desafinar a cantar, mas isto vai mexer com as pessoas”. A música, no fim, é mais sentimento, ou dança no caso de Angola, do que propriamente uma questão académica de tons e semitons.
Tem também um lado interventivo.
Se numa fase inicial até foi o rap dos MCK, Ikonoklasta e Keita Mayanda desta vida a ter esse papel de oposição e subversão, o kuduro, por se exprimir livremente, também acabou por provocar qualquer coisa. Na sua origem, é um género muito associado a classes baixas. Não é fácil a um kudurista entrar num clube normal, pela forma como se veste ou pelo cabelo que tem. É muito engraçado para ter na televisão ou para vender documentários para fora do país mas depois não é fácil de assumir na nossa casa. Por outro lado, os índices de popularidade são altos. Uma figura como o Nagrelha é provavelmente a pessoa mais popular do país, só rivalizado pelo próprio presidente. Isso demonstra que aquela música tem uma força própria e faz parte da identidade do país, quer se queira quer não.
Toda essa genuinidade da nova música angolana terá criado um fosso geracional entre músicos? Já não faz sentido cantar, como disse o Bonga, música consoante a sua terra?
A pergunta a fazer é: mas que terra é essa? Podes viver em Luanda e a tua vida ser andar num jipe com ar condicionado até à praia do Miami. Se calhar, essa vida tem mais que ver com a de um Ne-Yo ou de um Usher do que com a música do quintal e das pessoas que o Bonga fala. Se calhar, essa é uma música da qual as pessoas querem fugir, uma tentativa de fuga e escape de alguém que diz “não quero viver assim, com os pés num esgoto a céu aberto, numa rua que cheira mal. Quero viver num cenário de pessoal com um grande carro e grandes relógios”. Há duas tendências. Por um lado, pessoas como o Bonga que querem transformar a realidade numa coisa boa, em vida e arte e, por outro, pessoas que querem falar do que vêem e não do que sentem. A TPA é um bom exemplo disso.
De que forma?
Desde que apareceu, a TPA teve um impacto directo naquilo que é a percepção do novo músico angolano – o que é e para onde deve apontar. Até aqui não tinhas nenhuma reflexão. E aquilo que é veiculado pelo próprio canal público é só o lado do entretenimento escapista e internacionalizado. Ou, então, é a cena dos panos, completamente estereotipada do que é tradicional, imagem essa mais ou menos aceite por todos.
Essa necessidade de escape não poderá resultar da falta de respostas ou alternativas à situação actual? Ou estamos ainda perante a sociedade “embriagada” cantada por Batida em “Cuca”?
O embriagada existe, literalmente. A Cuca é mais barata do que água e as pessoas podem ficar embriagadas num instante – se eu beber uma, às tantas já não me interessa o que estás a perguntar… Depois, se pensar em levantar-me e refilar com alguém oiço “epá, vê lá se queres a guerra outra vez”. Ninguém normal quer guerra. Agora, o confronto de ideias, que é uma coisa diferente, tem de existir. Por outro lado, quando alguém chega ao ponto de dizer que não tem nada a mudar, então nesse momento deixa de ter utilidade para as outras: porque não está a interagir contigo, não está a dialogar, nem está disposta a evoluir. E o ponto está aí, entre as mais valias e os erros cometidos. Não hajam dúvidas, todo o mérito do que aconteceu em Angola é obviamente do partido do poder. O mérito de tudo: do crescimento económico mas também da taxa de mortalidade infantil, da ausência de água, etc. Agora, pergunto, há disposição para melhorar? Não, não há.
O país está estagnado, sem mudança?
Mudança… Não sei. Se eu tiver uma casa em que a partir de certa altura passo ter fossas, então ela deixa de cheirar mal e aquilo que faço vai para outro sítio. Agora, pergunto, isso vai ser tratado? Não. Angola está a crescer como pode, cheia de estradas, um pouco à semelhança de Portugal, com estádios de futebol para dar e vender. Mas no que isso deu? Em nada. Ou melhor, deu numa tremenda crise. Mas há uma diferença entre os dois. Em Portugal, apesar de todo um fado e tristeza, ainda há muitas pessoas que podem refilar, falar mal, tentar intervir, ainda que de forma inconsequente. Há pelo menos uma ilusão de que estamos todos a participar.
E em Angola essa ilusão não existe?
Não, a partir do momento em que há a necessidade de reprimir dez tipos na rua a dizer uma coisa qualquer. Não percebo esse raciocínio e isso deixa-me assustado. Quando se é tão mesquinho é preocupante. Tem que haver mais confiança nos jovens, nas novas ideias e mais abertura e inteligência para aceitar um bocadinho de tudo. Democracia é isso. Não me preocupa tanto as mudanças que já existiram, preocupa-me mais a estrutura que está montada. Preocupa-me que não hajam dinâmicas suficientes para a coisa funcionar como se fosse um ecossistema, equilibrado por natureza.
O Movimento Revolucionário é a excepção que confirma a regra?
A Cuca é mais barata do que água, no sentido literal mas, no sentido mais abrangente, o embriagado pode ser também o estado induzido por uma informação muito turva e de meios de informação com uma conduta muito ziguezagueantes. Não vejo espelho de muitos sentimentos e realidades nos media. Talvez por isso cada um se feche mais em si mesmo. Por falta de espelho. Mas a consistência de alguns eventos nos últimos anos, demonstra uma vontade contrária. Tal como o agrupar de pessoas que não se resignam. Uma manifestação de 100 pessoas em Luanda é uma multidão. É esperança para o futuro. Não por estar ali a solução, mas por se procurarem ali soluções também.
Certamente que pessoas a manifestarem interesse em melhorar o país não pode ser um problema. Principalmente, pelo facto de não terem uma conotação partidária e de terem a participação e o apoio de cidadãos de vários padrões da sociedade angolana. A abstenção também diz que não há uma aprovação activa do que se passa. Há um silêncio. Pode querer dizer muita coisa. Distanciamento, desilusão, desconhecimento. E a forma como uma manifestação de pouco mais de uma dezena de pessoas tentou ser silenciada, pode querer dizer muita coisa também. A mim parece-me desespero e pura prepotência. É como tentar matar um mosquito com uma Ak47 a meio da noite, só para eu poder dormir melhor. Para além de despropositado, é muito pouco eficaz. Ficou a parecer que o mosquito ferrou e já ganhou, só por isso.
Não estamos a falar de um país democrático?
Pelo simples facto de não haver água corrente, de ser um sítio onde as crianças morrem tão facilmente, não se pode começar a falar… Não é haver direitos humanos e direitos das crianças que são impostos e depois não são respeitados. E Angola não os respeita. Temos que começar por aí, a discutir a partir do zero. Mas isto é a nível planetário até. Enquanto bolinha que anda à volta do sol, temos de ser mais equilibrados.
No documentário “É Dreda Ser Angolano” os testemunhos na primeira pessoa são uma constante. Foi algo pensado? Falta dar voz ao angolano comum?
Não foi pensado. É só óbvio. Se queres retratar a cidade onde o Conjunto Ngonguenha se inspirou, dá a palavra às pessoas. A mim parece-me que há ali pessoas comuns e outras menos comuns. Na realidade, todas me parecem muito especiais. Falta ouvir vozes diferentes. Comuns e incomuns. Ficamos mais ricos. Todos.
Recorres ao teu trabalho como forma de ser voz activa nessa discussão?
Enquanto pessoa que faz coisas, sim. Houve pequenos aspectos que têm que ver com a minha experiência própria, que pode estar errada mas é sobre a qual posso falar, Como o documentário, no primeiro ano não é exibido no Festival de Cinema de Luanda. Depois, vai ao Brasil, é aclamado pela critica, e no ano seguinte aparece no festival, mas sem qualquer autorização para passar. Nada contra, podem passar as vezes que quiserem – chega a um ponto em que o trabalho te supera – mas isso denota um provincianismo com o qual não me revejo, nem me sinto confortável em estar perto de. Nesta bolinha onde estamos temos que falar com pessoas. Falar com os pés assentes na terra, no planeta Terra, não na minha terra ou na terra do outro. Isso também é uma característica muito portuguesa.
Mais uma semelhança entre Portugal e Angola.
Não sei qual é o grau de familiaridade aqui, contudo, há uma parte da história de Angola vivida em conjunto com Portugal. Isso vê-se em Lisboa, uma cidade que não representa Portugal na perfeição. Tem muito de Luanda, Brasil, Norte de África. Vens de fora e encontras um sítio para ti. E há coisas que beneficiam do facto desta cidade ter crescido lado a lado com Angola: há ritmos que bebem muito desse diálogo, comidas, toques, falares, festas de quintal… Tudo isso é muito bom.
Batida também bebe dessa proximidade?
Eu bebo e ao beber aconteço dessa maneira. Não é algo pensado. Tento estar aberto ao mundo e ir sendo, sem ter um grande plano ou coisa projectada. Se não for uma coisa tão egocêntrica acabas por ser um reflexo da tua experiência. E a minha foi nascer em Angola e crescer em Lisboa a ouvir todos os dias falarem-me de um sítio mais quente, com outra comida e pessoas diferentes.
Não tens sentido de pertença a um local ou espaço físico?
Em Portugal, não. O que tenho são amigos, amores e é isso que me liga ao país. Ou seja, a vivência de uma pessoa que emigra para um sítio. Mas quanto mais viajo mais bocadinhos meus encontro no mundo. Num dia bom és de muitos sítios. Encontras amor e afecto em todo o lado.
Quando compões música também viajas?
Não, pelo menos não conscientemente, no sentido de uma música ser o somatório disto com aquilo. A melhor coisa que me acontece, e vai acontecendo, é não ter um domínio total daquilo que estou a fazer. O bonito é quando aceitas as influências todas e não as esbates fazendo disso uma espécie de pizza mal feita para a qual olhas e não percebes de que ingredientes é feita. Tu podes usar os ingredientes todos – os partidos, os países, as viagens – e compor a tua ideia, a tua forma de viver. Não tens que misturar as coisas até ao momento em que elas deixam de ser elas. Podes ter um bocadinho de cada coisa e o que tu és e fazes ser uma soma dessas coisas.
Sendo o produto final o resultado de tantas somas não tens receio em perder a direcção da mensagem?
Claro que sim. Quando tentas ser um bocadinho de tanta coisa, de repente, não és nada. Em termos tribais, de identificação e até mesmo jornalísticos, as pessoas têm dificuldade em definir Batida. Olham para mim e perguntam “onde é que eu ponho o teu disco?”. É-me indiferente. Na verdade, só quero estar na prateleira da música. Acho que vou ser mais feliz e confortável quando não for colocado em nenhum sítio. Existe sempre uma prateleira que diz de A a Z. Coloquem-me aí.
Rótulos à parte, Batida é mais do que um projecto musical?
Para mim é um mundinho onde tento viver o mais confortável possível, onde desafio-me e trago pessoas cá para dentro. Banda não é de certeza. É mais uma forma de expressão minha mas que não se traduz num palco com 50 gajos a tocar no escuro, ou numa imagem minha a rir-se na capa de um álbum. Antes, faz-me lembrar a roda de uma aldeia, algures no Huambo, em que as pessoas se juntam. Certamente que há um soba, um feiticeiro, o tipo do batuque, um dançarino mas também há muitas pessoas que lá estão só a participar.
É uma comunidade?
É mais a procura de criar comunidades. Cada vez que vou para um palco tento criar esse ambiente de roda em que o público também participa. Não estou no centro mas sou quem tenta organizar aquilo. Assumo uma posição que me permite representar o que vou vendo. Acaba por ser a forma mais honesta que encontrei de fazer as coisas.
A ideia de diversidade está muito presente no teu discurso. O espaço lusófono pode ser uma primeira aproximação a esse ideal?
Eu gostava muito que fosse mas nem esse temos ainda. O acordo da língua é ridículo e não me revejo de todo na forma como é tratada. Os cotas estão a dormir. O português é tratado diariamente nas ruas do Brasil e de Angola com uma dinâmica que estes dicionários não aguentam. Façam qualquer coisa mais interactiva, uma plataforma em que toda a gente possa participar, não sei… mas tão lento, não dá! Há palavras que acontecem todos os dias, especialmente em Luanda. Muitas delas são inventadas e perdem o sentido. Certo, eu próprio não sei onde está a linha entre o correcto e o errado. Agora, mais importante do que isso é passar o que se quer de forma correcta e, no fim, entendermo-nos. Ganhávamos todos se pudéssemos enriquecer o português.
A língua por si só é suficientemente forte para unir esse espaço?
A questão é não haver vontade para esbater essa distância. Parece que só há quando estão em causa estímulos financeiros e agendas políticas. Não fosse a cultura a funcionar por baixo, com a arte, a música, as novelas, e ninguém faria por isso.
Batida faz por isso?
Não sei, a minha avó ensinou-me a nunca responder que sim a uma pergunta dessas. Posso é admitir que tenho tentado estabelecer essas pontes e em coisas muito simples. Por exemplo, ao falar com um amigo português que se queixa de Angola e procurar explicar e contextualizar para que perceba que, apesar de tudo, são realidades diferentes. E faço o mesmo quando estou em Angola e alguém casca em Portugal.
Dois é o nome do teu mais recente álbum. Quais são as principais diferenças entre este e o primeiro trabalho?
Recebemos influências de tudo o que vivemos. Viajando mais, talvez acabe por ser mais influenciado por outras culturas e este disco pode reflectir essas viagens que tive o prazer de viver nestes dois anos. Não é algo consciente. Para mim é vida. É crescimento. O primeiro disco sou eu em Lisboa a assumir as minhas ligações e a dialogar com Angola. Muitos artistas já o fizeram no passado. O Waldemar, o Bonga, o próprio Duo Ouro Negro, que também foram influenciados por músicas de outras partes. Fazem-no ainda hoje e a nova geração também. Por vezes, sem sair do país. Todas as pessoas que conhecem o período dourado da música angolana ou tomam contacto com o kuduro, ficam mais ricas. O diálogo, a troca, a partilha, é sempre uma boa. Ganhamos todos.
Nairobi foi o destino de uma dessas viagens.
Aconteceu. Fui convidado a ir e gostei tanto das músicas que não as consegui deixar de fora. Foram três semanas a viver em Nairobi. Digo viver porque não fiz outra coisa senão dormir, comer e fazer música. E conhecer pessoas. Era só isto o dia inteiro. Foi impossível escapar à música naquele ambiente.
Essa experiência traduz uma maior abertura de Batida ao mundo? Ou continua ancorada naquela ideia de ponte entre Lisboa e Luanda?
A posição mais confortável para mim seria fazer um disco parecido com o anterior em que havia uma história e uma narrativa sobre esse encontro entre Lisboa e Luanda, certamente envolvendo os subúrbios, a minha infância na Amadora, os musseques de Luanda. Essa ideia iria bater muito mais, mas a minha história não é essa. Ou melhor, envolve tudo isso mas não tem esse romance. Tem outro, mais intenso e complexo, relacionado com o facto de crescer fora de Angola. Mas a ponte está lá.
Luanda e Lisboa continuam a ser pontos de partida?
Sem dúvida, são influências muito fortes. Não cresci sequer em Luanda, embora haja sempre uma ligação, mas sinto-me muito bem em certos sítios da cidade. Por exemplo no Elinga, onde estou em casa. É uma carga artística que me agrada muito, sobretudo aquela tensão entre um prédio com tanto romance contra o pragmatismo dos prédios muito mais altos, querendo a tudo o custo comer aquele bocadinho. Mas ele vai ficando e ficando… Espero que aguente porque é um sítio com qualquer coisa de especial. E, depois, as pessoas, claro.
Tens várias colaborações com o Ikonoklasta, o MCK…
São os meus cartões de visita mais fixes. O facto de ter lá dois irmãos a viver, um de sangue e outro emprestad,o como o Luaty. E o K [MCK], que vai sendo irmão.
Como é que negoceias essas colaborações?
No geral, identificamo-nos mutuamente com o que fazemos. Conheço-os através do trabalho e depois a amizade pode ou não acontecer. E, no caso deles, aconteceu e muito. Com o Luaty e com o K, principalmente, que também está no disco [Dois].
São as várias caras de Batida?
Eles não são caras. É mais aquela coisa de substituíres-te a ti próprio. Sobretudo o Luaty, a quem digo “vamos falar sobre isto nesta música” e sei que ele vai conseguir materializar aquilo numa letra melhor do que eu. Acaba por me representar também. É para isso que o trago.
O Luaty é uma extensão tua?
É, assim como eu também espero ser a dele. Ele vai agora dar o seu primeiro show em Lisboa, sozinho, e eu vou ajudar até onde ele quiser, no palco ou fora dele. Está marcado e será na mesma noite em que eu vou apresentar o meu disco. Ele faz parte integrante da minha vida.
Estiveste recentemente no festival de world music Womax. Que balanço fazes?
Muito bom. Muito bem recebido. Tive uma reacção muito boa ao show. Aparentemente a NPR Americana disse que foi uma das descobertas do festival. Eu senti uma reacção muito quente e humana de um público que é, essencialmente, composto por profissionais da indústria. E isso é muito bom. Há esperança para eles.