Essenciais no TBA online

O primeiro rascunho da História está quase sempre errado — mas temos na mesma de tentar escrevê-lo.

Esta frase de Teju Cole, subtítulo de uns apontamentos sobre a pandemia publicados em Maio, podia servir de epígrafe ao projecto Essenciais do Teatro do Bairro Alto, que lançámos esta semana. A ideia explica-se depressa: no início da quarentena houve quem parasse (e no mundo das artes chamaram-lhes “profissionais da cultura”) e quem continuasse (os “trabalhadores essenciais”); convidámos então quatro pessoas do primeiro grupo, que por sua escolheram outras quatro do segundo, e cada dupla fez uma peça em vídeo com cerca de 20 minutos — quatro rascunhos da História.

A performer e criadora Andresa Soares fez Arredar com Olga Cunha, encarregada geral de um lar de terceira idade; Lila Fadista (vocalista de Fado Bicha) criou Tágides, Exemplares com Alice Azevedo (actriz, activista e operadora de call center); a poeta, performer e investigadora Raquel Lima trabalhou com a mãe, a auxiliar de geriatria Maria Palmira Joaquim, para fazer Essencial é a fome; e o artista transdisciplinar Welket Bungué convidou a deputada Joacine Katar Moreira para filmar Mudança.

A palavra “essencial” servia à partida dois propósitos: um deles abertamente político (para falar de trabalho, dinheiro, injustiça, desigualdade, falta — e isto num momento de particular activismo, tanto anti-racista como contra a precariedade nas artes); o outro (im)puramente estético (para explorar as fronteiras e possibilidades das disciplinas artísticas). E todas as peças destes Essenciais cumprem este duplo requisito, mas são também uma terceira coisa: autobiografia, retratos tocantes de todos os envolvidos numa altura crítica. Será talvez por isto, por assumirem uma subjectividade que é simultaneamente estética e política, que estes vídeos são “rascunhos” e estão “errados”: não são de todo a versão passada a limpo de uma “História dos vencedores”, é essa a sua verdade (frágil e resistente ao mesmo tempo).

Essenciais faz parte do programa digital do TBA: desde que os teatros fecharam em Março, lançámos vários episódios do podcast Dito e Feito, oito entrevistas sobre improvisação e duas co-produções internacionais: de Tim Etchells, Jim Fletcher e Chris Thorpe, We are the King of Ventilators, a partir da retórica tresloucada de Trump (o vídeo, que repetia o texto em loop, já não está disponível, mas pode ver-se aqui uma primeira versão da peça); de Kassys com Tristero, The Script - Make Yourself At Home, um solo distribuído a seis performers e transmitido em simultâneo a partir das suas casas em Lisboa, Amsterdão, Bruxelas, Viena e Nova Iorque.

Agora continuamos fechados não já por causa do coronavírus mas porque as obras nos bastidores do teatro se atrasaram, como lhes compete. O programa presencial que tínhamos pensado para o TBA em Novembro e Dezembro vamos fazê-lo quase todo, mas num outro espaço que também não é no Bairro Alto: o Lux Frágil. Vemo-nos lá?

 

DO PROGRAMA: 

Andresa Soares + Olga Cunha
Essenciais #1 – Arredar

Arredar para não tropeçar no emaranhado de sentidos. Descuidar as artes e o final da vida. Desnutrir perguntas e assim matar a narrativa.
Andresa confinou-se às artes e Olga aos cuidados do final da vida. Encontram-se online.

Lila Fadista + Alice Azevedo
Essenciais #2 – Tágides, exemplares

Lila e Alice são duas trabalhadoras engajadas numa reflexão profunda sobre o impacto da pandemia, o significado do trabalho e as implicações do sistema de valoração capitalista – a essência da cultura e o culto da essência.
Mas talvez a reflexão não seja tão profunda assim, não obstante trabalhosa… Surge-lhes A oportunidade de serem eleitas As musas da recuperação socioeconómica. Terão de provar a sua abnegação e resourcefulness numa campanha que poderá mudar o curso das suas vidas. Qual será a escolhida?

Raquel Lima + Maria Palmira Joaquim
Essenciais #3 –Essencial é a Fome

Quando falamos de fome, referimo-nos a tudo o que é essencial e fundamental para sobrevivermos. O básico e indispensável como a alimentação para o físico (comida e água), mas também a alimentação mental, emocional e espiritual que pode advir de uma palavra, de um ritual, de amor-próprio e aos próximos, principalmente os mais frágeis, no verdadeiro sentido de fragilidade. Com a pandemia a fome generalizou-se, e passámos a sentir a fome de ouvir uma história, um poema, uma palavra amiga, uma música, ou mesmo a fome de uma refeição em conjunto. Nesse cenário, como é que mãe e filha fortalecem uma relação desde os seus trabalhos poéticos e geriátricos lidos num espaço de intimidade e familiaridade onde a ação essencial é mobilizada pela revolta do afeto e da fome?

Welket Bungué + Joacine Katar Moreira
Essenciais #4 – Mudança

Essencial é gerar vida, discurso, compreensão e celebrar a humanidade. Em tempos de pandemia generalizada, originando questões em torno da preservação da democracia, da integridade da saúde pública e das nossas próprias noções de individualidade, vemo-nos arrastados num processo de mudança. Neste encontro entre um artista e uma deputada, questiona-se qual a essência dos seus ofícios, fazendo ressoar um inesperado paradigma de revolução iminente.

‘Mudança’ terá como proposta visual a plasticidade do texto interpretado, e da imagem digital (pinturas do artista plástico Nú Barreto) projetada sobre os performers. A música (autoria de Mû Mbana) e o conteúdo textual apelarão ao dramatismo onírico de um território pensado a partir de sensações insulares, trazidas pelas referências ao povo do arquipélago Bijagó, na Guiné-Bissau.

por Francisco Frazão
Palcos | 2 Outubro 2020 | Alice Azevedo, Andresa Soares, Joacine Katar Moreira, Lila Fadista, Maria Palmira, Olga Cunha, Raquel Lima, Teatro do Bairro Alto, trabalhadores, Welket Bungué