“Fazer música instrumental é uma necessidade espiritual” entrevista a Hernani Almeida
Hernani Almeida, um dos jovens guitarristas cabo-verdianos mais conceituados, fala-nos da sua relação com a música e com São Vicente, sua ilha natal. Considerado o melhor instrumentista da actualidade, já produziu álbuns de artistas como Bau, Nácia Gomi, Boy Gé Mendes e Vadú entre outros, conta-nos da timidez em palco e da sua necessidade de fazer música.
Como começou essa relação com a música?
Quando tinha uns sete ou oito anos comecei a brincar num pequeno teclado que estava na casa de meu tio como peça de decoração. Ao ouvir uma música de Steve Wonder na televisão comecei sozinho a procurar as notas no teclado. O meu pai viu-me a brincar com o teclado e perguntou-me se queria um brinquedo igual. E foi assim que começou a minha ligação com a música.
O que te fazia distrair da música na infância?
O teclado foi o melhor brinquedo que recebi na vida. Ele foi o meu PlayStation da infância e adolescência. Ainda não tinha noção de até onde aquilo podia chegar, por isso considerava-o somente um brinquedo. Achei a música interessante e não mais precisei de mudar de diversão porque reparei que aquele brinquedo tinha muito mais por descobrir. Ainda hoje vivo esta descoberta.
Consegues definir a tua música?
Não consigo porque acho que ainda é uma música bebé que nasceu há pouco tempo. Só gravei o meu primeiro disco em 2008 e não pensei numa definição. A minha preocupação foi fazer uma música sem pensar num estilo porque eu sabia que mais tarde outras pessoas iriam rotulá-la. A minha preocupação é mais orgânica. É saber se a música está sabe ou não, e se estiver é só gravar.
De onde surgiu essa herança musical?
Sinceramente não sei dizer. Não sei tocar mornas tradicionais como o Bau ou o Voginha, porque aprenderam de família. Acho que, por ter descoberto a música sozinho, tenho uma perspectiva completamente diferente. A minha formação de acordes e ritmo é diferente, assim como a minha idéia de melodia. Por exemplo, tenho reparado que enquanto músicos tradicionais fazem uma melodia para depois colocarem acordes, eu funciono ao contrário. Primeiro faço o ritmo, depois coloco os acordos e por fim adiciono uma melodia qualquer. Isso para veres que é tudo uma perspectiva diferente.
Há espaço para a música instrumental em Cabo Verde?
Esta foi uma questão que eliminei desde o início pelo que não me preocupo se há ou não espaço para a música instrumental no nosso país. Eu sempre procurei ser sincero comigo próprio e a partir do momento que decidi ser criador de música instrumental resolvi registá-lo e publicá-lo sem a preocupação se teria ou não sucesso. É uma necessidade espiritual mas tenho que fazer este tipo de música.
Sentiu algum receio quando produzia as primeiras composições instrumentais?
Posso dizer-te que senti todo o receio. Mas o que devia ter feito com esse sentimento? Parar ou assumi-lo com normalidade e continuar meu projecto? Resolvi não ficar dependente deste medo da aceitação das pessoas e fiz o meu trabalho. Apesar de o mercado poder ver a música instrumental como de segundo nível ou de elevador e que a música de cantor é que é a música, decidi apresentar o meu trabalho e deixar o público escolher.
E como foi a reacção do público?
Até hoje tem sido muito boa em comparação com aquilo que estava à espera. Dizem-me que anseiam por um espectáculo ao vivo. Porque mesmo tendo o trabalho já gravado, nos espectáculos conseguimos viajar nas músicas e improvisar porque elas são como aviões. Isto cria uma certa diversão e entretenimento no público pois é algo fora do habitual.
A tua música é para ‘elites’?
Não, e isso pode ser visto na minha forma de criação. Sempre que faço um tema procuro uma criança qualquer para ouvir a melodia. Se ela gostar da melodia saberei que funcionará para qualquer ser humano. Não dirijo minha música para uma elite. Seja o Presidente da República ou uma pessoa da Ribeira Bote (periferia da cidade do Mindelo), qualquer um pode gostar ou não daquela música. Também já reparei que quando ando pelo centro de Mindelo as pessoas cumprimentam-me normalmente, mas quando vou para as zonas periféricas sou reconhecido e acarinhado também. Isso significa que a minha música chega na sua essência a todas as pessoas. Este apreço talvez seja porque não tenho nada de elitista em mim.
Já pensaste em viver no estrangeiro para produzir mais música?
De forma nenhuma. Nem coloco esta hipótese de me afastar de São Vicente.
Porquê esse apego a São Vicente?
Eu nasci e criei-me aqui. Esta ilha fez-me quem sou, então porque é que haveria de sair daqui? Ela é como a minha mãe e tenho prazer em viver aqui. Há locais que gosto imenso, como a praia da Laginha, Rua de Lisboa, Ribeira Bote, Monte Sossego ou Monte Cara. E são essas energias que me fazem criar música e sei que se sair daqui ficarei perdido e posso não encontrar a música. Mesmo com essa crise que a nossa ilha atravessa acredito que devo ficar como parte do alicerce artístico de São Vicente. Por outro lado, há pessoas que se afastam procurando melhorar de vida e olham para São Vicente com olhos de fora reclamando que a nossa ilha está acabada. A esses pergunto, o que fazes fora da tua ilha se podias estar aqui dando o teu contributo para melhorá-la também?
Fazer música para ti é uma necessidade?
Sim. Às vezes é tão forte que se transforma quase que numa obrigação. Mesmo quando estou deitado posso acordar a meio da noite com uma idéia na cabeça e, enquanto não a colocar na viola, não consigo voltar a dormir. Se não registar fico até de manhã com aquilo a ensurdecer-me até que o coloco para fora.
Ainda encaras a música como um hobby?
É uma mistura de profissão e hobby. Dou graças a Deus por fazer o que gosto e ser pago por isso. A música para mim terá que continuar a ser um passatempo, nunca uma obrigação. Mas não sou um entertainer. Às vezes chego num local onde está um violão e as pessoas vão logo pedindo para que eu toque. Nestes momentos costumo dizer que não estou lá para trabalhar. Depois de um dia de trabalho em casa ou no estúdio quando saio é para me divertir, não para trabalhar.
Sentes-te acanhado ao estar em palco?
Tenho alguma timidez em relação ao público. Assim… sou fã da música, gosto de fazer música e de estar dentro do seu processo criativo, mas exibi-lo nem por isso. Gosto mais do estúdio. Isso é uma coisa que já reparei que com alguns artistas é ao contrário – não digo que seja pior ou melhor – mas comigo é diferente. Estou destinado a viver e a tocar nos palcos mas posso garantir que não é algo que me traga uma euforia só porque vou estar em público. Sinceramente prefiro o processo criativo e não a exibição em palco.
Preferes grandes espaços ou um público mais intimista?
Prefiro sempre um público intimista. Um palco maior num ambiente mais amplo quase que te dá uma sensação de ‘perdido’, e torna-se duplamente mais difícil captar a energia do público. Em cima do palco o artista tem que chamar a atenção e ser maior, e isto cria-me alguma dificuldade por causa dessa timidez. A minha preferência é um pub de Jazz com uma sala pequena onde não preciso esforçar-me tanto para que o público possa prestar atenção naquilo que estou a fazer.
Que músicos ouves por estes dias?
É complicado porque há muito tempo que não ouço música de outras pessoas.
Então quem cria música ouve menos música?
Penso que não. Depende de fases e há momentos que tenho necessidade de ouvir músicas pois a arte nasce da arte. Às vezes quando estou sem ideias, passo um tempo ouvindo alguns discos e isso cria sensibilidades. Mas às vezes estou tão cheio de idéias que evito ouvir música. Nestas fases prefiro criar e registar sem ouvir outras músicas para não ser influenciado.
Falando em influências, há algum músico que não ouvirias?
Há muitos, mas é somente por uma questão de gosto, não tem nada haver com o estilo ou nível ou outra coisa qualquer. É a mesma coisa quando se vai ao restaurante e há comidas que não comemos. Mesmo nesse estilo Zouk, que provoca muita confusão se é ou não de Cabo Verde, gosto do Nelson Freitas e desgosto de muitos outros. Aprecio o Voginha mas não de outros dentro do seu estilo. Já do Carlos Santana não gosto de nenhuma maneira.
Como produtor você é muito exigente?
Depende do artista. Há uns com quem é fácel trabalhar e outros bem complicados por causa do problema do ego. Há cantores que me chamam para produzir seus discos e ao mesmo tempo não confiam em mim como produtor, o que é um paradoxo. Mas há outros que são super fácil trabalhar com eles. Acho que a pessoa que produzi e que foi mais fácil de trabalhar e que deu-me mais paz foi Vadú. Ele disse-me: quero que produzas meu disco. Do primeiro ao último dia aquele rapaz foi um espectáculo.
Como foi trabalhar com Vadú?
Foi incrível. Já trabalhei com muitos artistas mas o Vadú era dos pouco que me telefonava sempre só para perguntar como é que eu estava. Alguns telefonam numa relação mais profissional para dizer-me que vão actuar em algum lugar e que querem que eu os acompanhe, esse tipos de coisas. Mas o Vadú não, contactava-me só para saber se eu estava bem e perguntava manera que bo tá, nhe mucin? A sua morte foi uma grande perda.
É mais fácil para si deixar de ser produtor ou de ser músico?
Penso que seria mais fácil deixar de ser produtor. Músico eu já sou, mas não sou produtor. Tenho algumas experiências produzindo artistas mas não tenho formação na produção musical. A idéia de produzir partiu de Zunga Pinheiro, que é um engenheiro de som que vive na Praia. Ele achou que eu tinha jeito e lançou-me o desafio de experimentar e aceitei. Mas não sou produtor musical, sou músico.
Tem usado a Internet para divulgação dos seus trabalhos?
Sim. Tenho uma página pessoal oficial onde é possível comprar o meu disco. Na minha página coloco quatro ou cinco músicas para que as pessoas possam ouvir e se gostarem podem comprar o álbum.
O que pensas da partilha gratuita de música na Internet?
Acho que quem quer comprar irá fazê-lo mas também penso que, se alguém quer ouvir a nossa música, tem esse direito. Por outro lado, é como se fosse escrito na sina dos artistas que eles deveriam viver na miséria. Posso afirmar que no meu caso a minha missão não é ganhar dinheiro mas sim dar a conhecer aquilo que tenho, a minha música e fazer com que as pessoas a ouçam. É claro que se criou uma indústria discográfica para vender a arte mas ela é uma criação muito mais recente do que a própria música. Para mim o mais importante é que a mensagem chegue às pessoas.
Consegue definir o melhor momento da sua carreira?
Não consigo porque tenho o sentido de que o melhor está sempre por vir. O que passou fica arquivado e não fico agarrado ao passado porque senão não consigo avançar. O melhor está sempre por vir.
originalmente publicado no Artiletra - Jornal de Educação, Ciência e Cultura N.º 110
Fotos de Hélder Doca