Joacine, uma estrela de cinema na Berlinale
Mudança, filme-dança com valores feministas, vai estar no Festival de Berlim que começa dia 1 de forma digital. Welket Bungué, ator sensação mas cada vez mais realizador, apresenta-nos o filme e fala da sua protagonista, uma Joacine Katar Moreira em nome próprio.
Joacine Katar Moreira a declamar, a discursar e a não gaguejar. Mudança, curta-metragem do luso-guineense Welket Bungué assume-se como filme-dança experimental mas por estes dias vai ser notado e comentado por ter a deputada Joacine como protagonista. Uma curta que foi selecionada para o Festival de Berlim, mais especificamente para a secção Forum Expanded, espaço para as obras de ensaio e de radicalismos extremos, já a começar online no começo do próximo mês e, depois, num segundo momento, em junho nos vários cinemas da capital alemã.
O facto de não a vermos gaguejar não é o único motivo de espanto. Joacine é filmada em grandes planos (e não só) com sentido estético muito próprio. Trata-se de uma presença que enche o ecrã, seja a ser maquilhada, seja a caminhar para um palco - o filme é parcialmente rodado no Teatro do Bairro Alto, aliás nasceu como desafio do seu diretor artístico Francisco Frazão sob o lema dos “essenciais”. E nesse exercício, a deputada exala uma sentida veemência na declamação dos textos de prosa-poesia do pai do realizador, Paulo T. Bungué, tirados do livro de 1996, Cabaró, Djito, Tem!. Mais do que uma deputada, sente-se uma chama de cidadã, sobretudo quando o seu olhar quer atingir uma justeza a todos os níveis. Se quisermos, Mudança é um grito de uma vontade de se mudar uma sociedade com problemas de inclusão e de racismo. Welket Bungué proclama um desejo de otimismo e Joacine adequa-se sem problemas num discurso empolgantemente feminino e bem explícito quanto aos legados colonialistas e fascistas.
“A Joacine é uma mulher carismática, fotografa muito bem. A direção que se fez com ela no filme passou por convencionar pensar-se que seria para uma peça a ser filmada para o cinema. Esse é o meu método muitas vezes”, começa por contar o realizador, mais conhecido como ator, sobretudo em produções internacionais: foi o protagonista de Berlin, Alexanderplatz, de Burhan Qurbani , concorrente o ano passado ao Urso de Ouro do Festival de Berlim. E prossegue: “ela decorou um texto a partir do poema Mudança do meu pai, mas segundo o guião que escrevi surgem duas pergunta chave: uma no começo e outra no fim, depois de declamar o texto. E em ambos os casos fala espontaneamente, sempre de forma densa, abordando questões de género, da relação que acredita ser mais benéfica para a sustentabilidade do nosso planeta, fazendo referência ao povo bijagó, do arquipélago Bijagó, sobretudo como os indígenas e o planeta têm uma relação bastante ecológica. Antes disso, faz uma parábola exemplar de como observa as estruturas de poder baseadas no sentido daquilo que é o machismo da sociedade contemporânea. Por isso, digo que o filme vive entre a relação da palavra dita e o movimento dos corpos presentes num espaço com uma referência atmosférica e sensorial de lugares como os ecossistemas do arquipélago dos Bijagós e a floresta amazónica . Foi uma experiência muito positiva dirigir a Joacine!”
De referir que o realizador-ator nunca antes tinha conhecido Joacine Katar Moreira, tendo ficado fascinado com a sua inteligência e acessibilidade: “Ela tem sobretudo o dom da palavra e isso é notório no filme, sobretudo nessa cumplicidade com a câmara e na incorporação das minhas orientações”, vinca Welket Bungué. E é caso para relembrar, nos cerca de 26 minutos deste exercício não se sente quase nenhum rasto da gaguez da deputada.
Mudança é também mais uma vez a possibilidade do cineasta recorrer ao seu corpo como presença “performática”, neste caso num bailado em forma de close-up. Welket não esconde a felicidade de voltar mais uma vez a um festival que o tem acolhido bem, já em 2017 tinha estado como ator no elenco de Joaquim, do brasileiro Marcelo Gomes. Diz mesmo que além de grato está curioso para perceber como a indústria e a crítica vão reagir a este seu trabalho.
Se o filme nasce de uma encomenda que pedia que no tema se refletisse o lugar dos trabalhadores essenciais, Welket lembrou-se de contrapor a voz de uma política com a atividade desses trabalhadores e confessa que viu Joacine precisamente como uma “trabalhadora essencial”. E é nesse confronto que se extrai uma reflexão que se agiganta como inquietação, onde não falta em fundo um excerto do discurso do Livre na campanha das legislativas de 2019.
“Mudança é mais otimista do que utópico. Muito do que é falado existe também noutros lugares do mundo. Com este exercício de cinema quisemos articular vozes no sentido de uma ideia de um mundo melhor. Essa é a mensagem que tento sempre passar na minha relação com as pessoas e o cinema permite esse despertar. Os meus filmes visam provocar alguma reação, intervenção. Espero que este filme-dança faça as pessoas sentirem essa necessidade”, realça Welket, nome da lusofonia que não tem medo de filmar com bondade e com uma câmara que aqui se cola aos rostos e aos corpos dos performers. Em Berlim, mesmo na internet, vai provocar diálogo, interrogação e discussão, aliás como sempre acontece na Berlinale. Por cá, era bom que não ficasse refém da ideia feita de ser apenas o filme com a deputada independente…
Artigo originalmente publicado por Diário de Notícias a 21/02/2021