Não é contra a censura que lutam. É contra a autocensura

Têm aversão à política porque, sem uma sociedade civil forte, vêem-na associada ao Partido no poder. O seu primeiro gesto, portanto, é artístico.

Corrupção pode querer dizer muitas coisas. E Angola é muito mais do que corrupção. Mas ao comporem o quadro de uma sociedade, corruptos e corrompidos entram de forma subtil ou irónica nalguma da arte que se faz hoje em Angola.

Ela está lá, com poesia e em forma de canção de amor, em “Serenata a Angola” do músico angolano Paulo Flores, como noutros dos seus temas, que juntam o melhor e o pior de Angola.

”(…) Vou cantar para te dizer
Que é por ti que eu consigo
Por ti que eu canto assim
Explorador dos oprimidos, Fora.
Os corrompidos, Fora.
O patife que desvia, Fora. (…)”

Paulo Flores - Serenata a Angola (excerto)

“A minha música é crítica com o que nós vivemos mas ela é apaixonada pelas pessoas”, diz Paulo Flores (n. 1972, Luanda), prova de que Angola é muito mais que um estereótipo, uma imagem parada e projectada para fora, com uma carga negativa que os artistas rejeitam e desconstroem.

Não é contra o Presidente José Eduardo dos Santos que a nova geração de artistas (que já surgiu depois de Paulo Flores) ergue a voz. O regime não é o inimigo, excepção feita a alguns nomes do rap, do hip-hop ou do kuduru - a arte subversiva ou direccionada (quase) fica por aqui. A música é, por excelência e tradição, o meio que melhor assume esse papel de resistência ao poder, tenha ele sido o colonial, o de partido único depois da independência ou seja ele o dos dias de hoje. Numa cidade de um país que conquistou a paz há apenas dez anos e onde em tempos imperou o recolher obrigatório, o domínio cubano e o receio de um cerco da UNITA, uma nova geração de artistas começou a despontar, já depois da criação da Companhia de Dança Contemporânea de Angola, em 1994, a única companhia de dança profissional, cujos criadores estão “atentos às realidades e contextos onde vivem e que os preocupam”, nas palavras da directora Ana Clara Guerra Marques.

No meio artístico, como um mosaico, há os artistas mais conotados com o regime e alguma instrumentalização da sua arte para enaltecer a nação; mas são os nomes de uma nova geração, muito presente nas artes plásticas, que melhor representam o que hoje se pode definir como arte contemporânea angolana e que chamam mais a atenção internacional; Yonamine, Kiluanji Kia Henda, Ihosvanny, Nástio Mosquito, Ndilo Mutima, Nelo Teixeira, para citar alguns.

Fará sentido falar em “dentro” e “fora” do sistema? Angola tem uma realidade própria e o seu meio artístico também. “O meio artístico, em Angola, ainda é muito pequeno. É portanto difícil ter um percurso completamente alternativo, quando os espaços, as estruturas e os circuitos estão ainda por criar”, diz ao Ípsilon por email o artista Yonamine (n. 1975, Luanda). “Acabamos por estar sempre inseridos no “sistema” directa ou indirectamente.”

Mensagem subliminar

A haver mensagem na obra destes artistas, ela é indirecta, subliminar, e pode ou não estar imbuída de um espírito que cresce num país onde a juventude nas ruas ou nos blogues perde o medo de manifestar descontentamento e contesta a permanência do Presidente há mais de 32 anos no poder.

Não é contra a censura que lutam. É contra a autocensura. É contra o próprio silêncio e conformismo - também ele incutido. É também político o olhar que os artistas têm sobre o que os rodeia. A guerra deixou marcas, a presença colonial também.

Mas a política não os apaixona, ficam fora dela. O principal era a independência e essa está ganha. A haver crítica contida na arte, ela é mais social, menos política. E provoca, mais do que contesta. Será ela uma forma de resistência?

“Estar fora de assuntos políticos é comum em Angola. Penso que são traumas de guerra. Há uma autocensura que temos que combater em nós próprios”, continua Yonamine. O artista prepara uma exposição individual para Março na Galeria Cristina Guerra em Lisboa, uma intervenção em Abril em Guimarães (projecto comissariado por Paulo Cunha e Silva) e uma exposição individual em Luanda, no final de Abril. “Não uso o meu trabalho para relatar, denunciar ou criticar qualquer aspecto da sociedade angolana. Pretendo que a minha acção artística seja mais poética, mais universalista e ao mesmo tempo mais provocadora, numa espécie de grande ecrã visível para todos”, continua.

Marta Lança, directora da plataforma “Buala - cultura contemporânea africana”, e que mantém em Angola, onde viveu, projectos de jornalismo e produção cultural, alarga esta visão a outros artistas. “Podem pontuar nas suas obras grandes cenários políticos como a Guerra Fria e a guerra civil que marcaram a sua juventude, as várias culturas nacionais dentro do Estado-nação, a relação hipócrita com Portugal, os contrastes sociais da veloz urbanização angolana e da não distribuição da riqueza, mas não creio que haja um posicionamento assumido contra o que quer que seja”, considera. Além disso, nota: “Têm toda uma aversão à política porque, devido à ausência de sociedade civil, vêem-na sempre associada ao Partido [MPLA, no poder] e não como intervenção ou activismo.”

Mas perante a falta de força da oposição, contrapõe o realizador português Jorge António a viver em Angola há 20 anos, a força vem dos jovens artistas e das associações estudantis. “Mesmo os políticos da oposição são pessoas dentro de um “status quo” e têm regalias” como os que estão no poder, acrescenta Jorge António. “É mais a sociedade civil, os jovens estudantes, os jovens músicos da periferia que fazem valer a sua voz.” E que têm, como pano de fundo, os extremos entre ricos e pobres, visíveis na capital.

Dois mundos distintos

Luanda é hoje uma cidade sobrelotada de milhões de pessoas, com arranha-céus que deslumbram os que procuram uma nova Dubai, prédios que desabam ou caem por força de um centro comercial de luxo que se impõe sobre um mercado histórico.

É a falta de água, de luz e, ao mesmo tempo, a festa. O kuduru em cada bairro, o hip-hop que dispara contra o poder e os seus abusos, as manifestações de estudantes que exigem maior justiça social. É o fervilhar da energia própria de um país que ainda agora começou. E a ironia traduzida em obras singulares de artistas que se afirmam longe de Angola, que documentam este seu país e, ao mesmo tempo, reflectem um estado do mundo.

Délio Jasse (n.1980, Luanda) também não fala de política, antes deixa a sua fotografia ou instalações falar por si, como na pequena série de fotografias sobre a comunidade chinesa em Angola em que questiona a existência de dois mundos distintos e paralelos, fechados e num só sentido, num contexto, diz, em que a China tem mais a ganhar nos lucros que retira da presença das suas empresas em Angola, do que o inverso. Mais do que realidade, elas retratam a forma do artista olhar e sentir a realidade.

Délio Jasse tinha 18 anos quando deixou Angola para escapar ao recrutamento para a guerra em 1998 quando o conflito entre MPLA e UNITA entrou na última e mais violenta fase. Hoje, vive em Portugal - trabalha com a Galeria Baginski, em Lisboa, e prepara uma exposição, a primeira mostra individual em Angola, no Instituto Camões de Luanda, mas multiplica viagens à sua capital - onde cada estadia, com pouco tempo de intervalo, revela uma cidade em constante mutação.

Símbolos que caem

O grande edifício de apartamentos, com o logo da cerveja Cuca no topo, era um dos “ex-líbris” da cidade. “Já lá não está”, diz para enfatizar o turbilhão de mudanças que sente quando vai a Angola - como já lá não está o mercado de Kinaxixe, pérola da arquitectura colonial e símbolo da cidade de Luanda enquanto lugar de história e património cultural.

Mercado do KinaxixiMercado do Kinaxixi
A imagem da demolição do Mercado do Kinaxixe, em 2008, para aí ser construído o Shopping Centre Kinaxixe, podia ser uma cena de “Barroco Tropical” (2009), em que o escritor José Eduardo Agualusa retrata a demência de uma cidade, em 2020, metáfora para aquilo que critica, como os extremos desequilíbrios. “O Povo, ou Eles, é como em Angola nós, os ricos, ou os quase ricos designamos os que nada têm. Os que nada têm são a esmagadora maioria deste país.”

Não haverá muitos como ele a fazer clara crítica social, mesmo se em “O Desejo de Kianda” (1994) de Pepetela já havia prédios a ruir e noutros romances do autor havia crítica à corrupção e nos livros de Manuel Rui críticas ao poder. Muitos escritores têm um percurso de vida ligado à política, do tempo da luta pela independência.

A resistência na música começou muito antes da independência - com os N”Gola Ritmos, diz o realizador português Jorge António, que filmou uma Trilogia da Música em três documentários - “Angola - Histórias da Música Popular” (2007), “Kuduru, Fogo no Museke” (2007) e “O Lendário ‘Tio Liceu’ e os Ngola Ritmos” - que tenta recuperar nomes de pessoas que a Música Popular Angolana, desde os tempos da luta contra o colonialismo até à geração mais nova do rap e do kuduru.

Ngola Ritmos 1965Ngola Ritmos 1965Quando aparece, o kuduru começa por ser difundido, em cassette ou CD, nos candongueiros - os táxis que trazem as pessoas dos bairros para a cidade e onde se partilha também a música de Paulo Flores que, para Jorge António, mistura um lado de poesia da escrita com mensagens de crítica social e tem a particularidade de chegar a todos - desde o cidadão na rua aos salões das elites.

“Culturalmente, a música de Angola sempre teve esse cariz de intervenção, desde o tempo em que era colónia”, completa Paulo Flores. Começou com a semba, e os primeiros grandes sucessos que hoje são clássicos, músicas em quimbundu, língua do Centro e Norte de Angola, “que passavam uma mensagem de esperança e de revolta, e de união das pessoas”, lembra.

Quando lançou o seu primeiro disco de originais “Kapuete Kamundanda” (1988), nele constava o tema “Por que choras Pió Pió”, sendo Pió-Pió uma criança que é a expressão de um desencanto.

“Porque choras PióPió ?
Se o mais velho tá contente
Diz que Luanda está boa
Tá melhor do que Lisboa
Diz que é mesmo independente (…)”

“Na altura, já era crítico mas sem aquela consciência política que hoje tenho”, diz o músico. “Eu não tinha noção que aquilo ia mexer tanto com a sociedade.” Foi talvez dos primeiros a aparecer “com uma linguagem tão directa”, mas “com a ingenuidade de não saber o que aquilo representava para todos”, apenas sabendo que aquilo lhe tocava a ele.

 

publicado originalmente no jornal Público 2/2012

por Ana Dias Cordeiro
Palcos | 4 Março 2012 | Délio Jasse, kiluanji kia henda, Nástio Mosquito, Paulo Flores, yonamine