"Lembro-me que ele saiu da prisão com um sorriso"
O que mais surpreendeu Nelson Mandela, no dia da sua libertação, foi ver tantos brancos, juntos nas ruas com os negros, a festejar a sua saída. Disse-o no dia seguinte, na residência do arcebispo Desmond Tutu no primeiro amanhecer em liberdade depois de 27 anos na prisão. Estava “absolutamente surpreendido” por perceber que tantos sul-africanos se identificavam com o que estava a acontecer na África do Sul, um novo país que nascia e onde, dizia Mandela, havia lugar para todos. Confessou não ter palavras para transmitir o que sentira no momento em que passou os portões da prisão de Victor-Verster, há precisamente 20 anos.
“Sou incapaz de descrever os meus próprios sentimentos. Foi de cortar a respiração. É tudo o que posso dizer.” Falava com ar calmo, nessa sua primeira conferência de imprensa, frente a 200 jornalistas. Quando foi preso, em 1964, não havia televisão na África do Sul. E em 1961 dera clandestinamente uma entrevista a um jornalista britânico do canal ITN. Mas esta era a sua primeira vez nas televisões da África do Sul e do mundo inteiro. A única imagem que dele existia de todos esses anos a única tirada com a sua autorização e depois divulgada, pelo menos era uma fotografi a feita no pátio da cadeia junto ao seu companheiro de luta e de prisão Walter Sisulu, em 1964, nos primeiros tempos em Robben Island.
Durante todo esse tempo, a divulgação da sua imagem fora proibida. Por isso, no dia da sua libertação, à euforia e aos cantos de alegria juntou-se o espanto de ver um homem envelhecido, digno e sereno caminhar sem sinais de rancor. Com 71 anos, Mandela tinha passado mais de um terço da sua vida preso. Muitos não sabiam o que ver no homem de quem o Governo tinha banido qualquer imagem, qualquer mensagem.
Só em 1985, num comício no Soweto, em Joanesburgo, a sua filha Zindzi pôde passar a mensagem que trazia de uma das raras visitas autorizadas ao pai. No discurso que ela leu, Mandela, a quem as autoridades tinham oferecido a hipótese de uma saída da prisão sob estritas condições, queria deixar claro que só o aceitaria quando os outros presos políticos fossem libertados, o povo livre e o seu movimento, o Congresso Nacional Africano (ANC), legalizado. “A vossa liberdade e a minha liberdade são inseparáveis”, dizia.
No dia em que foi libertado, muitos sul-africanos, sobretudo os mais jovens, nunca tinham visto o dirigente do ANC. Antes de ser condenado a prisão perpétua por traição e sabotagem, Mandela passara vários anos na clandestinidade, tornara-se invisível.
Tinha criado a ala militar do ANC e defendia a luta armada (mas nunca tendo como alvo a população civil) como única forma de resistir a um regime que usava a força contra o povo. Era considerado de tal modo perigoso pelo Governo que este o deixou preso, escondido e sem ser fotografado durante 27 anos, primeiro na prisão de alta segurança de Robben Island, numa ilha ao largo da Cidade do Cabo, depois na prisão de Pollsmoor, e, finalmente, na cadeia de Victor Verster.
A ideia de Mandela que o Governo do apartheid fazia passar era a do líder de um movimento terrorista. E era ainda mais perigoso porque inteligente. Ele próprio, advogado, assumira a sua defesa no julgamento de Rivonia. E aí, como depois no discurso da Cidade do Cabo, disse que lutava contra a dominação branca, da mesma forma que combatia a dominação negra. Acreditava numa nação com oportunidades iguais para todos, com eleições livres em que a cada homem correspondesse um voto.
Para muitos jovens era um símbolo. De uma luta.
Símbolo de coragem
Com as mudanças políticas e o anúncio, nove dias antes, a 2 de Fevereiro de 1990, do Presidente F.
W. De Klerk de que seria libertado incondicionalmente, Mandela passou de símbolo da opressão a símbolo da coragem.
E porque escolheu quando e como saiu da prisão, porque caminhou e não foi transportado de carro da prisão, porque não exultou à saída nem se queixou dos anos de privações, porque não trazia na sua expressão nenhuma das marcas de um homem que tinha estado atrás das grades mais de um quarto de século, Mandela tornou-se maior que o símbolo. E mostrou que uma lenda fica maior e não mais pequena quando se torna humana, escreveu o ensaísta irlandês Fitan O’Toole, numa homenagem a Mandela.
“Não sabíamos como ele seria. Mas o simples facto da sua libertação representava tudo aquilo que tínhamos querido alcançar”, testemunhou à BBC a jornalista da estação Audrey Brown, que já em 1990 trabalhava num pequeno jornal anti-apartheid. “Ri-me e entreguei-me a uma alegria delirante porque tudo, de repente, parecia possível, como sabíamos que seria quando, em crianças, lançávamos pedras ao gigante que era o apartheid”, disse, acrescentando: “E chorei porque tantos amigos e familiares tinham morrido a tentar concretizar isto, à espera disto.” Para muitos jovens este era o momento em que viam Mandela pela primeira vez. O verdadeiro Mandela, não o do slogan em t-shirts ou posters que começaram a aparecer nas semanas que antecederam a sua libertação ou o do ar desafiador que a propaganda do apartheid difundira para sustentar a tese de que era o líder de um movimento terrorista.
“Foi a primeira vez na minha vida que realmente vi o homem. Foi uma experiência verdadeiramente comovente”, disse à AFP Siraaj Cassiem, na altura um activista antiapartheid de 18 anos. David Teek tinha 23 anos e também nunca tinha visto uma fotografia de Mandela dos tempos da prisão. “E, no entanto, ele parecia tão longe do monstro assustador que era como o Estado o tinha retratado”, disse num dos vários testemunhos recolhidos pela BBC. “Ouvi-lo falar foi um momento incrivelmente emocionante. Pouco depois da queda do Muro de Berlim [em 1989], os anos 1990 pareciam-nos a todos como um momento de viragem.”
Imagens interditas
Mandela tinha estado preso e interdito não era possível citá-lo nem mostrar as suas fotografias. Ao apagar-se a imagem tentou fazerse desaparecer o homem. Mas terá esse interdito jogado a seu favor, ampliando o mito? Ou, como hoje, o líder não existiria, se dele não se vissem imagens? “A imagem de Mandela [a sair da prisão] teve uma força imensa, talvez até maior porque o desconhecíamos”, diz Diana Andringa, que esteve presa pela PIDE, e que além de jornalista e realizadora de vários documentários está ligada ao movimento Não Apaguem a Memória. “Esse mistério aumentou muito a emoção no minuto em que ele sai.” A sua invisibilidade pode ter ampliado “a aura romântica do preso”, explica.
Apesar da tensão e dos riscos que muitos sentiam, num país à beira de uma guerra civil, Mandela saiu a caminhar, acompanhado da mulher, Winnie, antes de entrar num carro que os levou à Cidade do Cabo, a cerca de 60 quilómetros dali. Pouco passava das quatro da tarde na África do Sul. Era domingo e estava um calor abrasador. “Lembro-me que ele saiu da prisão com um sorriso”, disse à BBC Deborah Jane Cairns, que na altura tinha 11 anos.
Milhões de pessoas no mundo acompanhavam o momento pela televisão. E milhares de sul-africanos tinham ido a pé ou de autocarro para ouvir o seu primeiro discurso em liberdade na varanda da Câmara Municipal da Cidade do Cabo. Para o verem.
Para a realizadora Susana Sousa Dias, “este interdito sobre a imagem de Mandela acaba por ser um acto de violência que ganha uma grande relevância com os 27 anos de prisão”.
Porém, reconhece: “Ele podia estar presente através da imagem e esteve, afinal, omnipresente.” “O Governo sul-africano tentou apagar Mandela, favoreceu o desaparecimento [da sua imagem].
E fez isso justamente devido à importância da imagem”, continua Susana Sousa Dias, também professora da Faculdade de Belas-Artes de Lisboa. “Se tivéssemos imagens de Mandela, tínhamos o reflexo da pessoa, a dimensão humana. E era isso que o Governo sulafricano queria evitar a todo o custo.” Mais de 500 mil pessoas encheram as ruas, descreveu o repórter da BBC que acompanhou as horas da libertação. A alegria em townships como o Soweto contrastou com a tensão e os motins nalguns bairros de brancos onde entraram negros.
“Entrámos nas ruas de Joanesburgo, desafiando a polícia, entoando os nossos cânticos de vitória. Eles expulsaram-nos e bateram-nos”, contou ainda a jornalista da BBC Audrey Brown.
À alegria visível e à tensão latente juntou-se o medo de que Mandela pudesse ser assassinado por algum grupo extremista. O atraso e a espera contribuíram para os receios.
Firmeza no discurso
Mandela chegou à Câmara Municipal da Cidade do Cabo para o discurso cinco horas depois do previsto. E quando tomou a palavra em público, pela primeira vez em pelo menos três décadas, não olhou para o passado. Mas também não foi tão apaziguador como se esperava.
Deixou clara a sua lealdade ao ANC e manteve o desafio ao Partido Nacional do Presidente Frederik De Klerk para cumprir a promessa e prosseguir a negociação que levaria às primeiras eleições livres de 1994.
“A nossa luta atingiu um momento decisivo. A nossa marcha para a liberdade é irreversível”, afirmou.
Mandela defendia uma continuação da luta armada e das sanções internacionais ao regime, se persistissem as razões que tinham originado ambas. Nos dias que se seguiram, iniciou um périplo por várias cidades sul-africanas. Num grande comício no estádio do Soweto, milhares de pessoas entoaram o hino dos movimentos de libertação negros, Nkosi Sikelele iAfrika (Deus abençoe África), até então proibido.
“Toda a gente queria saber o que este homem tinha para dizer e o que planeava fazer agora que estava livre”, disse num testemunho à BBC Kevan Heesom, que era criança quando Mandela foi libertado. Vinha de uma família inglesa branca e frequentava uma escola numa área “muito africânder”, contou, onde os professores proibiram os alunos de ver televisão e ouvir rádio nas semanas que antecederam o dia da libertação. Também o discurso de De Klerk a anunciar a libertação incondicional de Mandela, dias antes, tinha sido transmitida em directo para os Estados Unidos, mas em diferido e apenas por excertos na televisão estatal sul-africana.
Esse discurso foi mais tarde descrito como o princípio do fim do regime segregacionista, “os 30 minutos que fizeram ruir o apartheid”.
Artigo originalmente publicado no PÚBLICO, no 20º aniversário da libertação de Nelson Mandela (11 de Fevereiro de 2010).