O equilíbrio da "Batida" perfeita
Estamos na oficina de Batida. Um espaço num complexo de garagens em Lisboa. Por fora é apenas isso. Um edifício sem nada que o distinga dos demais. Lá dentro está Pedro Coquenão, ou DJ Mpula, ou o homem que inventou o Batida. Lá dentro, este português de 37 anos nascido no Huambo, de onde saiu com o início da guerra civil, angolano vivendo em Portugal desde então, fala sem parar de tudo o que Batida significa. Quase diríamos que não precisamos de ouvir tudo o que nos explica. Das colunas solta-se música sul-africana. Espalhados pelo espaço, vemos uma marimba, percussões improvisadas com latas de gasóleo, grades da cerveja angolana Cuca, fotos das viagens de Coquenão a Luanda ou bidões que, em concerto, serão iluminados a partir do interior em eficiente cenografia do-it-yourself. Tudo isto é Batida.
Batida feat. Ikonoklasta - Cuka
Conhecemo-la em 2009, quando lançou Dance Mwangolé, álbum magnífico extraído dos arquivos angolanos da Valentim de Carvalho e tornado realidade pelo cruzamento daqueles com os ritmos e as vozes que se ouvem hoje em Luanda. As que rappam no musseque, as que dizem o que tem de ser dito.
Dance Mwangolé é passado. O futuro de Batida é agora outro. Batida, sem mais, título do álbum que a Soundway, digníssima e influente editora especializada em reedições de música africana, das Antilhas ou do Extremo Oriente da década de 1970 (a febre africana dos últimos anos deve-se em parte a ela) escolheu para marcar uma nova fase. Depois de mostrar ao mundo as raízes, busca agora o que frutificou. Escolheu Batida. Que, directamente de Lisboa e com alma luandense, vai partir pelo mundo. Tem tudo para correr bem. Gilles Peterson, influente radialista da BBC, escolheu-o como “o” disco a ouvir em 2012. O site Drowned In Sound entusiasma-se com a alternativa que representa: “Batida, salvem-nos dos perigos da crítica indie rock”. Dia 20 de Abril, será cabeça de cartaz da festa dos dez anos da Soundway, num concerto a decorrer num espaço londrino cuja localização está em segredo.
(Soundway’s 10th year anniversary party flyer)
Miles Cleret, o fundador da Soundway confessa o seu entusiasmo ao Ípsilon: “Muita música moderna africana não recorre tanto quanto eu gostaria às suas raízes. E eu adoro os projectos que contêm elementos clássicos. Quando ouvi o disco de Batida, pensei logo que queria editá-lo. Tem a vibração da música clássica africana, mas é perfeito para a pista de dança moderna”.
Cleret e Coquenão até começaram pelo mesmo sítio. O primeiro sente que faltam elementos tradicionais à música moderna africana e foi isso que o aproximou a Batida. O segundo achava que faltava tradição ao kuduro, viu como “a síntese dos Buraka”, de onde o tradicional está ausente, “começou a interferir em Angola” e pensou em enriquecer o cenário. Ao tentar interferir, ele que tem passado e presente de radialista (passou pela Marginal e pela Voxx, mantém a rádio, editora, promotora e laboratório Fazuma), deu por si “a fazer música” - Batida a caminho. Não é a única feliz coincidência.
Bazuka, de Carlos Lamartine com os Águias Reais, é a canção angolana preferida de Miles Cleret. Bazuka, “kudurada” por Coquenão, é a essência de Batida. Banda moderníssima. Porque não é uma banda. É criação de autor, mas obra múltipla, construída a várias mãos. Pedro Coquenão é o criador, o centro à volta do qual tudo gravita - os samples procurados nos arquivos da Valentim de Carvalho, os vídeos que resgatou aos arquivos da Cinemateca, enfim, todo o imaginário. Em seu redor, Ikonoklasta, valiosíssimo MC angolano, o imprescindível MCK, autor do recente Proibido Ouvir Isto, o Circuito Freixado dos luandenses Sacerdote e Dama Ivone, o produtor Beat Laden, o lisboeta descendente de guineenses e angolanos Ngongo, o angolano radicado em Lisboa Bob Da Rage Sense e, porque Batida é a música que ouvimos mas ganha vida total em palco, há dançarinos, o técnico de luz Luís Moreira, o técnico de som Bruno Lobato, Catarina Limão e os seus vídeos.
Batida - Bazuka (Quem me rusgou)
Na oficina, Pedro Coquenão vai explicando: “Tudo começou com Bazuka e a intuição da primeira ideia normalmente define a direcção certa”. Naquela canção ficou definido que Batida seria música minimal, assente em poucos elementos. “Percussão antiga, sem leitura melódica e quase abstracta, e um beat muito básico”, como o que ouviu na final de um campeonato de básquete em Luanda. Havia um DJ de serviço e o público juntou-se ao ritmo improvisando uma marcação de palmas. Batida é isso: novos e velhos, kuduristas e sembistas, marcando um novo ritmo. Batida é a biografia de Coquenão e o seu olhar perante o mundo que o rodeia: “Nessa final, o Presidente [José Eduardo dos Santos] chegou como se fosse Cleópatra e o público só pôde sair depois dele. Seja ele, seja Cavaco ou Obama, ninguém se pode impor desta forma na vida das pessoas. Essa interferência na minha rotina luandense tão prazenteira, reunida ao momento do DJ, reunida à minha experiência de vida, está toda em Batida”. Em Bazuka, ouve-se o sample de um homem que repete: “dos Santos é minha mãe? Não. Savimbi é o meu pai? Não”. Coquenão: “O que é isto de uma nação que é órfã?”.
Junte-se tudo o que escrevemos acima e Batida é, por fim, isto: “A necessidade de encontrar a minha interpretação do que é ser angolano e ser parte activa na criação de uma nova imagem de um outro tipo de português, de europeu, de africano”. Nascido em Angola, crescendo nos subúrbios de Lisboa, entre a Amadora e Carcavelos, Coquenão diz ser sempre “um novo tipo em formação, em análise”: “Só quando morrer é que se chegará a uma conclusão, inevitavelmente inconclusiva”. Isso deixa-o confortável. Abomina a exploração do exotismo para saciar olhos ocidentais, mas tal, aponta, será impossível com Batida: “Não poderá haver exploração do exotismo para além do que já existe: uma pessoa como eu fazer a música que faz é exótico o suficiente”.
Angola soulful
Ainda assim terá sido, exageremos, exótico de mais para Portugal. Dance Mwangolé foi editado em 2009 e, apesar de ser nova representação do som vibrante que o país abraçava via Buraka Som Sistema, não causou o sobressalto esperado. Choveram elogios, Bazuka foi passado em sets de DJ prescientes e houve vários concertos no estrangeiro. No ano passado, porém, Coquenão já acertara com a Farol, responsável pela edição de Dance Mwangolé, a descatalogação do álbum. Licenciara singles por editoras independentes europeias e iniciara um passar de palavra underground. Preparava-se para lançar uma nova edição de Dance Mwangolé por um selo independente on-line quando recebeu um mail de Miles Cleret. “Gostamos muito. Queremos editar”. Eis-nos então, de volta à Batida. Versão fiel à génese, versão melhorada. Entre Dance Mwangolé e o álbum agora editado, as 16 canções passaram a dez; MCK surgiu a dar o mote, rimando os versos da sua Atrás do prejuízo; Ikonoklasta foi resgatado para uma nova canção, Tirei o chapéu; e Ngongo deu voz a Makumba, até aí instrumental. Acentuam-se os elementos antigos, como as guitarras contagiantes ou ritmo incessante do dikanza (chamamos-lhe aqui reco-reco). O tempo que passou fez bem à música criada por Coquenão. Permitiu-lhe aprimorar a síntese que é Batida.
Ngola Ritmos - Monami
Miles Cleret diz não ser um expert de música angolana - o que quer dizer que terá “apenas” vários caixotes de discos -, mas sabe perfeitamente o que tem ela de especial. “Os ritmos do semba, principalmente os mais alegres, são quase como cumbia colombiana, mas mais rápidos e com guitarras eléctricas. Entram sempre bem nos meus sets porque são uma ponte perfeita entre África e América do Sul. E o som de guitarra é quase congolês, mas enquanto os congoleses se apoiavam nos ritmos das Antilhas, a música angolana é muito soulful”. Explica como também encontra semelhanças entre a música do Norte do Brasil e o seu cantor angolano preferido, Rui Mingas, e entusiasma-se com a visão de “ideias a viajarem e a contaminarem-se”.
Nos próximos tempos, mantendo a política de reedições, a editora lançará os Ondatrópica, encontro entre músicos colombianos com o britânico Quantic, o DJ da festa Soundway que apresentará os Batida a Londres. Eis portanto, o futuro da Soundway. O presente tem um nome. Batida. Temos o privilégio de o conhecer há três anos.
artigo publicado originalmente no Ípsilon, suplemento cultural do jornal Público.