O jazz não é uma música snobe, entrevista a Jerónimo Belo
Depois de largos anos levando o jazz consigo como uma “segunda” opção profissional, Jerónimo Belo pode dizer-se que deixou o que fazia para trabalhar o e com o jazz. Gegé Belo, como carinhosamente é tratado pelos seus próximos, assume-se como a voz e o rosto mais conhecido no sentido da sua divulgação em Angola, onde vê crescer, com notável agrado, o número de seguidores.
Onde nasceu essa paixão pelo Jazz?
Tudo começou numa rua no Bairro do Cruzeiro, em Luanda, onde morava com os meus pais e irmãos. Um dos meus amigos de infância tinha um gira-discos e nessa altura só existiam aqueles discos de vinil de 45 rotações e uns maiores de 33. Foi assim o meu primeiro contacto com o Jazz, que entrou definitivamente na minha vida: Duke Ellington, Count Basie e alguns cantores de Blues. Foi em 1964-65. O tal amigo trabalha como pintor em Lisboa. É o José Andrade, Zan, que durante muitos anos fez programas de rádio e escreveu para os jornais aqui em Luanda e cujo nome é pioneiro e decisivo no capítulo da divulgação do Jazz em Angola. Essa música marcou-me para sempre. Passaram-se já muitos anos. Falo da música, do som, encantamento e do fascínio que exerceu e desempenha em mim. A análise da problemática viria mais tarde.
O que falta para que os angolanos apreciem efectivamente o Jazz como um estilo que também é seu (emana dos seus ancestrais)?
Devido aos esforços de um pequeno grupo de divulgadores nas rádios, televisão e jornais, existe já em Angola um grupo significativo de pessoas que gosta de Jazz e paga para ir aos concertos. É surpreendente como os jovens estão a aderir a esta música maioritariamente instrumental e de audição difícil, que não é uma música parada, está sempre a evoluir, em movimento.
É preciso ter em conta que o Jazz é uma música de minorias. Mesmo na América onde nasceu, o Jazz não é – verdadeiramente – uma música popular. O Jazz é uma música que incomoda, que põe em dúvida certezas e confortos estéticos.
Mas teríamos certamente um público mais amplo se a oferta cultural fosse mais diferenciada, os concertos mais frequentes, os discos, livros e DVDs mais acessíveis, a informação mais afinada e responsável, se aumentasse o número de músicos e cantores angolanos dedicados a esta tipologia musical. Infelizmente não temos muitos músicos apaixonados por esta música, que é difícil e exige muitas horas de estudo diário. Estou convencido que a continuidade, a regularidade e a insistência continuarão a conquistar alguma gente para o Jazz.
Há na nossa sociedade a ideia de que o Jazz é snobe, concorda?
Quem faz a opinião e dita a moda na nossa sociedade é uma elite endinheirada, arrogante, consumista, com uma cultura de prefácios, que quando não percebe diz mal; gente que assumiu cegamente a imitação reflexa e a modernização imitativa como filosofia de vida face aos padrões que vigoram nas capitais europeias, no Brasil, Dubai e nos Estados Unidos. O Jazz não é uma música snobe, é uma música de músicos, associada a uma nova sensibilidade e servida por um virtuosismo notável. Ao fim de pouco mais de cem anos, a vitalidade que o Jazz mantém ainda hoje é espantosa. Cada década do século XX correspondeu a um estilo de Jazz….
Programas de especialidade na mídia tendem a fomentar esta ideia, não lhe parece?
Às vezes há uma informalidade excessiva na abordagem dos conceitos. Sendo o Jazz uma arte viva e sólida, em permanente movimento, as análises e reflexões não se compadecem já com as metodologias de abordagem tradicionais. Os estudos que hoje se fazem têm evoluído sobretudo no sentido da necessidade de elaboração de um importante conjunto de instrumentos teórico-musicais e extra-artísticos – nomeadamente conceptuais, sociológicos, semiológicos, linguísticos e outros, com vista a um entendimento que abarque, de facto, a plenitude da arte que melhor expressou o génio musical do século XX. Este esforço de renovação desenvolve-se hoje sobretudo nas universidades. Regressemos à sua questão: muitas vezes a mídia não sabe olhar o Jazz! É imperioso ir ao fundo desta Arte, porque os novos e actuais “Jazzes” são habitados por uma mobilidade e transversalidade exemplares, cujo metabolismo musical segrega sucessivos desafios, subvertendo conceitos adquiridos e fazendo derrapar antigas certezas.
Das rádios aos jornais, já são largos anos de divulgação do Jazz.
Passei com o Jazz quase a vida inteira. Ao fim destes anos de luta pela dignificação do Jazz em Angola, acho que os prejuízos pessoais (que também existem) são inferiores às vantagens. Aprendi a falar mais uma língua e tornei-me uma pessoa mais rica. Aprendi um pouco mais de sociologia, política, literatura, filosofia, semiologia, história, música escrita, outras músicas, enfim…tem sido um grande enriquecimento. E venho mantendo encontros felizes com gente que gosta e sabe muito de Jazz, “colegas de divulgação”, com músicos, produtores, que seria difícil enumerar neste espaço. O reconhecimento do meu trabalho por parte de gente humilde com quem me cruzo na rua, as excelentes relações profissionais e humanas com os músicos com os quais tenho trabalhado e a outorga de Diploma de Mérito Cultural e outros prémios que tenho recebido quer por parte do Ministério da Cultura, quer de certas Embaixadas sediadas em Luanda (Brasil e Espanha) são manifestações bastante encorajadoras, que muito marcaram o meu percurso ao longo destes anos.
A inveja, que tudo apodrece, tão frequente entre nós, a detracção e o desdizer mais do que dizer… esqueço-as com facilidade. Continuo a acreditar profundamente na frase do saxofonista Archie Shepp ”…o Jazz é a flor que, apesar de tudo, desabrocha no pantanal…”.
Qual tem sido a sensibilidade da classe empresarial para cooptar apoios?
A atitude de alguns empresários e responsáveis de organismos face aos apoios para a divulgação do Jazz tem vindo a evoluir bastante favoravelmente - nada que se compare aos anos 90. Para traduzir por acções concretas esta antiga vontade de dar Jazz a conhecer tenho-me cruzado com empresários e gestores cultos e sensíveis, que efectivamente contribuem e apoiam a divulgação da “música da minha vida” que, felizmente, se vai tornando, cada vez mais, a música de muitas vidas. Tenho de salientar esta realidade e expressar a mais sincera gratidão.
Acha que tem valido a pena? Hoje os angolanos apreciam mais e melhor do que há uns anos, então?
Sou suspeito e não posso ser juíz em causa própria. Em meu entender é inequívoco que o Jazz caminha entre nós para um estatuto de cada vez maior dignidade, mesmo aqueles que o conhecem mal gostam de evidenciar fora do compasso a palavra “jazz”. Acho que tudo valeu a pena, mesmo o que não valeu a pena. Já fomos menos, já fomos mais, já fomos outra vez menos, já somos outra vez mais. As injustiças, a visão lacunar, as associações cavilosas injustas, o menosprezo com que não raras vezes é avaliado, foram más para o Jazz? Poderão vir a ser, se o Jazz acabar!
Que casamento encontra entre a música angolana e o Jazz?
Tem havido uns namoros, por vezes ousados, mas ainda estão longe do casamento, infelizmente. O Jazz que é a tradução instrumental e o prolongamento estético das canções dos escravos (work songs), dos Blues e dos cantos religiosos que os escravos africanos e seus descendentes criaram na América começou por ser uma expressão sonora dos negros americanos; cedo porém, abandonou este espaço e floresceu na Europa. Hoje, com algumas excepções, há Jazz em todo o Globo.
Reputados musicólogos sempre evidenciaram tudo o que o Jazz e os Blues devem à sua origem africana e especialmente, oeste-africana, mais marcada pelo tráfico de escravos. Existem experiências, fusões, intercâmbios muito interessantes. O trompetista americano Dizzy Gillespie louvou a influência na própria História do Jazz de nomes como Machito, Chano Pozzo, Mario Bauza e tantos outros latino-americanos. A História do Jazz é inalienável da História da Música Cubana apesar das divergências políticas…
Nos anos 50 do século passado, os músicos americanos ficaram maravilhados com a descoberta do Jazz africano: High Life (Gana), Ju-Ju (Nigéria), Rumba (Congo), Mbalax (Senegal), as orquestras Mandingues do Mali e o Soul Makossa (Camarões). Nos townships sul-africanos desenvolvem-se o Mbaqanga e o Jive a transbordar de swing. A partir dessa época, para alguns criadores afro-americanos de várias gerações (Armstrong, Archie Shepp, Art Blakey, Randy Weston, Duke Ellington, Melba Liston e tantos outros) fazem do continente africano local de peregrinação, de reencontros familiares. O intercâmbio daí resultante passou a integrar na vida do Jazz alguns dos grandes criadores africanos, nomeadamente Manu Dibango, Dollar Brand, Fela Kuti, Chris McGregor, Louis Moholo, Hugh Massakela, e o genial baixista e multi-instrumentista Richard Bona…E talvez um dia, se o futuro for generoso comigo, talvez acrescente a esta listinha os nomes de Hélio Cruz, Simmons Massini, Newton Bonga, João Oliveira, Dalu Roger, Tony Sá, Affrikanitha, Sandra Cordeiro, Nino Jazz, Wando Moreira, Rui César, Kizua Gourgel, Mário Garnacho, António Adolfo (Pirica Duia Jr.) …e, provavelmente, mais uns quantos angolanos.
Então…
Emocionei-me e acabei por não dizer o seguinte: nomeadamente a dialéctica pulsional (oposição de estruturas internas que definem a tensão repouso), a existência de figuras rítmicas isocrónicas, não-isocrónicas, sincopadas e vectoriais e o policentrismo que incide e acolhe vários centros culturais de referência (USA, Brasil, Antilhas, África), ao nível extrínseco e sobre diversas axiais semânticas, são frequentemente características comuns ao Jazz e às músicas africanas, daí que o casamento do Jazz com a música angolana seja apenas e só uma questão de surgimento de alguém que queira verdadeiramente valorizar a realidade histórico-musical, evocando memórias que, por serem estruturantes do saber e da criatividade, permitem abrir caminhos originais e seguros; alguém que faça do inconformismo estético meta a atingir, que possibilitará um alargamento a outros horizontes dos repertórios.
Apesar destes nomes todos haverá artistas angolanos em condições de se afirmar no music hall africano e internacional?
Certamente, mas infelizmente os dedos das mãos chegariam para enumerar. O Bonga, Paulo Flores e o Yuri da Cunha, por exemplo.
O que tem-lhes faltado, então?
A recusa assumida e consciente da leviandade e do facilitismo, pecadilhos que, como se sabe, os êxitos apressados e catapultados por “máquinas promocionais” poderosas em geral acarretam consigo. Referi o inconformismo estético no percurso artístico, que também tem faltado a uma parte significativa dos nossos artistas. A consciência plena que só o trabalho valoriza o talento. Talentos que não se aprofundam, depressa se esgotam, com o passar do tempo. Também me parece que a interpretação de forma subserviente de um dado reportório, entendido como sagrado e intocável, não ajudaria; fazer dele uma releitura criativa e uma reformulação contemporânea também tem faltado. No entanto, a tradição como uma marca de garantia e de estímulo para os desafios da descoberta parece ser um dos caminhos. E por fim: um bom lobby, que conheça as estradas, os caminhos e os atalhos, organização e pontualidade…serão utéis.
Como encara esta onda de kuduro?
A onda em si mesma não me parece grave; grave afigura-se-me o apoio de sectores que deveriam ter algum cuidado e o paternalismo com que a onda tem sido acarinhada e promovida a patamares preocupantes. As pessoas sem memória são como navegadores sem bússola. Trata-se das piores maldições que existem. Em 1974, 1975 e 1976, para silenciar um grupo de intelectuais descontentes, um esforçado mas modesto professor primário foi promovido a Teórico do Marxismo, mas deixar-nos-ia em 1977. Ainda hoje existem entre nós feridas por cicatrizar.
Quantos discos ou quantas horas de música tem em suporte digital?
Não consigo dizer com rigor. São vários milhares, mas deixei de contar. O que gosto mesmo é da musica.
Os discos de vinil e as respectivas aparelhagens estão de regresso. É o velho a vencer a novo?
As opiniões mais esclarecidas tecnicamente em electrónica, física e acústica afirmam que o vinil tem vantagens. Tudo o que lhe posso dizer é que tenho muitas saudades do vinil, mas o espaço que ocupavam num apartamento que não engordou?!
Que artistas mais admira dentro e fora de portas?
Aqueles que não morrem nunca, que são intermináveis… O Miles Davis, o Armstrong, A Billie, a Belita Palma e a Lourdes Van-Dunen, oTi Liceu, Xodó, Zé Maria, Zé Cordeiro, Manuel dos Passos, Fontinhas, Nino Rodrigues «Dongo», o Ge Gé e o swingante Amadeu Amorim….; os que já partiram deixaram não apenas a música mas a eternidade dos outros. Acho excelente o Paulo Flores e gosto de ouvir o swing da Yola Semedo, os Blues do Do Dó Miranda e as baladas da Afrikkanitha.
Que espetáculos mais lhe marcaram?
Alguns moram comigo agarrados à pele e à alma. E assim passo a viver numa planura de encantamento, sempre que os recordo. Os concertos do Miles Davis em Nova Iorque e em Londres e mais recentemente o Paulo Flores em Luanda, por exemplo.
Um livro?
Um do Luandino Vieira ou do Jorge Amado. A morte de Quincas Berro d’Agua ou Nós os do Makulusso...
Um disco?
Kind of Blue do Miles Davis - a bíblia do Jazz modal.
Um filme?
A vergonha do Ingmar Bergman, um dos meus preferidos cineastas.
Ao ter deixado a Delegação da União Europeia seguramente algumas pessoas têm olhado para si como um louco. Para mais dedicando-se à produção de espectáculos de Jazz. Como tem sido esta experiência de produção de espectáculos musicais?
Ao fim de 13 anos de serviço na Delegação da Comissão Europeia em Angola (1995 - 2008) como bibliotecário / documentalista e adido de Imprensa, tomei a decisão de deixar a Delegação e dedicar-me quase exclusivamente a acções na área cultural e organizar e melhorar os milhares de livros e outros documentos que fazem parte dos meus arquivos pessoais para dar-lhes mais e melhor utilidade. Durante esse período procurei, especialmente junto dos meus compatriotas, dar visibilidade ao papel ímpar da União Europeia e das suas instituições no mundo, com particular destaque para a já longa parceria que mantém com Angola, iniciada ainda antes de o país ter formalmente aderido à Convenção de Lome III, que marca o início da parceria Angola - União Europeia. A “loucura” dos jazzlovers é já minha conhecida. Há quem pense que tomamos cafés triplos para acordar… A minha experiência de produção de concertos data de 1991. Tive de conciliar a paixão do Jazz e a realização de concertos e outras actividades com as minhas obrigações profissionais na Universidade Agostinho Neto, onde trabalhei de 1973 a 1995 e, depois disso, na Comissão Europeia, como já mencionei. Presentemente tenho mais tempo disponível e esta prática tem sido muito estimulante pelo carinho do público, reconhecimento dos músicos, incentivo dos meus colegas e amigos do Jornal de Angola, da TPA e da LAC, órgãos com os quais colaboro há muitos anos e, ainda, pelo permanente animo, encorajamento, estímulo, apoio muito atento da minha família, das minhas mulheres: Margarida e Aleida Naima (companheira e filha), a quem agradecerei sempre de forma insuficiente.
Largos anos depois de estar na UE, tendo assistido a momentos significativos, fala-se hoje com bastante incerteza em relação ao futuro do Euro como moeda única. O que lhe parece?
Estou pessoalmente convencido que a criação da União Europeia está entre os sonhos mais importantes do século XX, e espero que, apesar dos impasses e das dificuldades actuais (as populações fecham-se sobre si mesmas, multiplicam-se as políticas de exclusão, de demonização do estrangeiro e da perseguição expeditiva e medieval aos ciganos, para citar o que é mais publicitado), o sonho europeu da inclusão e da civilidade, da sociedade pacífica e sem hegemonias, e de um mundo sem novos campos de concentração continue a comandar a vida dos europeus.
A crise no continente europeu tem levado países a elevados níveis de desemprego, como em Espanha, onde cerca de 20 por cento da população economicamente activa não tem uma ocupação remunerada. No ano passado, a situação de crise na Grécia ameaçou estender-se a outros países endividados (Portugal, Espanha e Irlanda) e acabou por atingir a credibilidade do Euro, obrigando a Alemanha a aceitar a aprovação urgente de um Fundo Europeu de Estabilização Financeira, com um valor suficiente para contornar a crise imediata, mas incapaz de reverter a desmoralização do próprio Sistema Monetário Europeu, que nasceu com o Tratado de Maastricht, em 1992, e culminou com a criação da moeda única europeia- o Euro, em 2002.
Em conclusão: do meu ponto de vista, a União Europeia enfrenta uma séria e sem precedente crise monetária, crise de insolvência ou de “credibilidade” pública e privada do próprio euro, em que não estarão alheios o consumismo compulsivo dos europeus e as fortes assimetrias na zona euro.
PERFIL
Jerónimo Belo nasceu em Luanda em 1948. Bibliotecário, documentalista, jornalista e promotor cultural trabalhou no Departamento de Documentação e Informação da Universidade Agostinho Neto (1973-1995) e na Delegação da Comissão Europeia em Angola (1995-2009). Desde a juventude que se dedica com paixão ao estudo do Jazz, promovendo a sua divulgação em Angola, em programas na RNA - “Raízes”, “Jazz no Calor da Noite”, “Triângulo do Mar”, na TPA onde entre 1987-2002 conduziu semanalmente o programa “Clube de Jazz-TPA”. Actualmente conduz às segundas na hora do pôr do sol o espaço “Jazz–LAC”. Como crítico de Jazz tem participado em importantes festivais de Jazz pelo mundo. É ainda ambientalista, para além de autor dos livros “Jazz – Geometria Variáve” (1991), Feijoada (1998) e Blues e a Poética contra a Indiferença (2005). Durante alguns meses escreveu também para o Novo Jornal.
publicado originalmente no Novo Jornal, Luanda