Simha Arom, uma vida consagrada às músicas da África central
Simha Arom consagrou a sua vida ao estudo da música dos povos da África central. Estudou, em particular, a música dos pigmeus que ele considera «absolutamente extraordinária». Depois de ter vivido muito tempo na África central, instalou-se em Paris onde prosseguiu uma carreira de etnomusicólogo. Hoje, é diretor honorário de investigação no CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique), o Centro Nacional de Investigação Científica, em França. Acaba de publicar as suas memórias, La fanfare de Bangui - Itinéraire enchanté d’un ethnomusicologue, ( A fanfarra de Bangui: Itinerário encantado de um etnomusicólogo) nas edições La Découverte. Entrevista.
Simha Arom toca trompa na orquestra nacional de Israel quando, em 1963, lhe pedem que vá para Bangui, na República centro-africana, para criar uma fanfarra. Essa fanfarra nunca verá a luz do dia, mas Simha Arom fica imediatamente apaixonado pelas músicas que descobre neste país e, em vez da fanfarra, cria um grupo coral que canta um repertório de cânticos tradicionais. Hoje, ele é um dos maiores especialistas mundiais das músicas de África, fez um milhar de gravações em cerca de sessenta etnias, das quais extraiu trinta discos - incluindo uma antologia com a música dos pigmeus Aka, premiada pela Academia Charles-Cros e reeditada em CD pela UNESCO - bem como três filmes. E durante a sua estadia na República Centro-africana, ele conseguiu inclusivamente criar…o museu nacional, o museu Boganda, reunindo objetos provenientes de todo o país. Instalado em França desde o seu regresso de África, Simha Arom aí defenderá uma tese sobre as polifonias e as polirritmias instrumentais da África central e fará uma carreira de etnomusicólogo no CNRS, do qual é atualmente diretor honorário de investigação. Fomos encontrá-lo no seu apartamento em Paris, por ocasião da publicação das suas memórias: La fanfare de Bangui - Itinéraire enchanté d’un ethnomusicologue (La Découverte). Trata—se de um livro extraordinário que restitui toda a excitação e todo o entusiasmo do músico para compreender, catalogar e dar a conhecer as músicas dos povos, nomeadamente dos Pigmeus, que a maior parte dos Ocidentais considerava como «primitivos» nos anos 60, porque viviam quase nus, na floresta tropical. Mas, explica-nos o músico, os Pigmeus, que vivem de forma tão rudimentar, produzem uma das músicas mais complexas e sofisticadas do mundo…
No seu livro, conta como, assim que ouviu aqueles músicos da África central pela primeira vez, se sentiu «tão feliz como qualquer pesquisador de ouro que tivesse encontrado algumas pepitas»…
Aqueles músicos fascinaram-me, transportaram-me para outro mundo. Eram coisas como eu nunca tinha ouvido. Era evidente que tinham sido «fabricadas», se assim posso dizer, de uma forma extremamente complexa e eu estava estupefacto pela complexidade que não esperava encontrar ali. Porque nessa época eu era um músico profissional europeu, tinha feito o Conservatório de Paris, tinha recebido um Primeiro Prémio, não imaginava que tais músicas pudessem existir em sociedades de tradição oral. Isto passou-se em 1963: As músicas do mundo não eram conhecidas como hoje. Discos de música africana, havia cinco, seis, sete talvez, em França. Eu não compreendia minimamente como é que músicas como aquelas podiam funcionar, eu não compreendia como é que vinte pessoas podiam tocar juntas sem um maestro, sem partitura… Tudo isso me espantou muitíssimo. Ao mesmo tempo, sentia bem que esta música era altamente estruturada: não era uma coisa qualquer. Porque há muitas pessoas que, ao ouvirem aquelas músicas pela primeira vez, dizem «Mas é um caos, cada um bate e toca o que quer». Mas não é nada disso. E eu consagrei quase toda a minha vida a estudá-las. Recolhi aquelas músicas, arquivei-as, para fazer delas alguma coisa que pertença à nação (nas estantes da sala de Simha Arom, alinham-se as caixas de arquivos, numeradas há pouco tempo, ndr).
Ao desembarcar em 1963, teve o sentimento de que os povos africanos saíam de décadas em que a sua cultura tinha sido completamente subvalorizada pela cultura colonial e em que essas músicas tradicionais eram consideradas como músicas «de selvagens»?
Absolutamente. Aquelas músicas não eram subvalorizadas: as pessoas não se interessavam por elas! Os governadores e os administradores (coloniais) mandavam vir pessoas para “tocar o tam-tam”. Ou seja, para terem qualquer coisa de exótico. Mas ninguém considerava que era cultura! A Radio France tinha enviado alguém para lá, alguns anos antes, para gravar músicas para a SORAFOM (Sociedade de Radiodifusão Francesa do Ultramar, ndr), o antepassado de OCORA (marca de músicas do mundo da Rádio France. ndr). Era Charles Duvelle quem dirigia essa coleção.
Então, o senhor tinha sido contratado pela República Centro-africana para fazer a recolha das músicas do país…
Eu fui enviado para Bangui no âmbito da cooperação entre Israel e a República Centro-africana. Tinham-me enviado para criar uma fanfarra. E essa fanfarra, eu não a fiz. Disse: «vamos fazer alguma coisa que vai ser mais rápida, que será igualmente espetacular e que exige menos dinheiro e menos tempo». E criei esse coro. E o Presidente Dacko ficou muito entusiasmado.
O senhor conta que, quando o coro se apresentou, os ministros choraram comovidos, ao ouvirem os cantos das suas aldeias… Porque eles nunca os tinham ouvido valorizados daquele modo…
Eram os cantos das diferentes etnias da África Central das quais eu tinha representantes no coro. Porque eu precisava de pessoas da etnia para ensinar aos outros e a mim próprio as suas canções. Por exemplo, os pigmeus não viviam fora dos seus acampamentos, eu não tinha pigmeus no meu coro, por isso, eu não podia cantar cantos pigmeus - senão eu tê-lo-ia feito.
Falemos precisamente dos Pigmeus a quem o senhor consagrou uma parte importante das suas pesquisas em etnomusicologia…
Os Pigmeus mantiveram durante muito tempo o modo de vida que tiveram durante milhares de anos. Nos anos 60, quando se chegava aos acampamentos pigmeus, eles andavam semi-nus, com tangas feitas de casca de árvores, durante mais de metade do ano eram nómadas na floresta. Estavam no neolítico! Mas para mim, a razão do meu interesse por eles era a sua música que é absolutamente extraordinária. É a música mais complexa - complexo para mim é um critério, porque o que me interessava, na minha qualidade de músico, não era ouvir uma canção de embalar e cançonetas. Esta música era extremamente elaborada, por pessoas que viviam em condições de vida muito sumárias.
No livro, é isso que é chocante: essa oposição entre a extrema pobreza destas populações pigmeias - eles fabricam os instrumentos no momento de tocar e depois põem-nos fora - e a extrema sofisticação da sua música. Para si, há uma ligação entre o nível de desenvolvimento material e o lugar da música nessa sociedade?
Eu constatei que há uma relação inversamente proporcional entre a riqueza da arte plástica e a riqueza da música Nas sociedades em que se encontram máscaras, esculturas, extremamente desenvolvidas, eu acho que a música é menos elaborada, portanto, menos interessante para mim - ainda que eu não tenha nenhum direito de dizer menos interessante. Ao passo que, quando se chega a pessoas que vivem materialmente da forma mais rudimentar, elas têm uma música que ultrapassa tudo o que se pode imaginar! E isso tocou-me muito. Para estabelecer uma comparação que talvez não seja muito boa, se se diz que os Judeus são o povo do Livro, eu diria que os pigmeus são o povo da música. Os Pigmeus não têm nada: têm tudo na cabeça.
Pode dar-nos alguns exemplos do papel central da música entre os Pigmeus?
Por exemplo, eu ia aos acampamentos com o meu land-Rover: quando partia, eles subiam para trás, para a parte descoberta, uns 20 ou 25 a empurrarem-se uns aos outros e, assim que o carro começava a andar, punham-se a cantar! Quando eu voltava para os ver, depois de um ou vários anos de ausência, encontrávamo-nos, havia um momento de timidez, eles baixavam a cabeça assim, e passado um momento punham-se a cantar… Não há um dia num acampamento pigmeu em que não haja música. Quando as mulheres vão colher bagas, cantam. Quando os homens regressam da caça, no caminho de regresso, se apanharam alguma coisa, cantam…
Essas músicas estão a desaparecer com a modernização?
Sim, infelizmente estão a desaparecer. Eu posso testemunhar o desaparecimento de toda a espécie de repertório: quando regresso 20 anos depois e digo: « Eu estive na vossa aldeia e gravei isto e isto, com tal orquestra que era composta por estes instrumentos», dizem-me «Ora! isso já não existe!» E mesmo nessa época, nos anos 70, eu ia a qualquer lado e perguntava se tocavam determinado instrumento e respondiam-me: «ah sim, antigamente!». Porquê? Porque a maior parte dos seus instrumentos são de madeira, que é comida pelas térmitas, e é preciso que haja artesãos para fabricar outros. E agora os jovens não querem tocar estes instrumentos, acham isso fora de moda, têm transístores, ouvem música, querem guitarras elétricas, coisas dessas, não querem passar por parolos. Por isso há um desinteresse por essas músicas. E conhece a célebre frase de Amadou Hampaté Ba: Neste caso, pode dizer-se que cada velho músico que morre é uma parte de música que desaparece. Porque quando toda a geração tiver desaparecido, não haverá ninguém para tomar o seu lugar. Não se pode fazer «reviver»: não resta nada. Compreende, se se saltar uma geração, já não se pode reconstruir. Eu bem lancei gritos de alarme à direita e à esquerda, mas ninguém me ouviu. Foi por isso que, no início, eu não fazia, de facto, musicologia: eu coligia. Antropologia de urgência. Era preciso coligir o mais possível. Porque eu sabia que, um dia, como toda a gente me dizia, a gozar, « os Pigmeus virão ao Museu do homem para ouvir as gravações, ver os seus instrumentos e reaprender a sua própria música». Infelizmente, isso não é impossível…
Entrevista publicada originalmente em AFRIK.COM