Uma página de nós: monólogo para cinco vozes

Personagens: Mulher (M) que também é narradora; Filho mais velho (F1) Filho mais novo (F2); H1 (H1) e o Dono da loja (H2)

(O cenário do interior de uma casa em que a família tem poucas posses) 

F2– Mamã, como papá está à demorar bué assim? 

Narradora–Todos nós sabemos que o tempo é algo relativo. Esperar com fome é uma coisa, esperar de barriga cheia é outra. E nós estamos com fome. 

M–Papá não demora nada só. Tempo não está à passar, porque nós não estamos a fazer nada. De braços cruzados à espera de papá. Vamos fazer qualquer coisa. Deus ajuda quem põe a mão.  

F2– Pôr mão aonde, mamã? 

Narradora–Éramos três pessoas a conversar, eu e dois meus filhos. O mais novo é mais curioso do que o gato, enquanto mais velho acha que o conhecimento faz peso e ocupa o espaço. Ele poupava o espaço da mente, não sei pra quê. Diz que não existe cartão de memória para a sua mente, então tem de poupar o espaço. Saber, ou melhor, perguntar menos coisas possíveis. 

M-É no sentido figurado. Quando eu falo em “pôr a mão”, eu quero dizer “fazer alguma coisa”. Vai buscar panela e água para a gente colocar no fogo.

F2–Gente coloca panela seca com água no fogo, mamã?

Narradora–O nosso português não é o mesmo que português de Portugal. No nosso português é possível uma panela cheia de água, ainda assim ser uma panela seca no fogo. 

M–Sim, pelo menos enganamos os vizinhos. Se a água ferver, gente tira e coloca outra panela. 

F1– Mamã, qual panela, esta que mamã faz arroz nele ou esta que mamã faz banana?

Narradora–Quando se tem poucas panelas, dá nisto.

M–Esta que eu faço arroz.

F2–Chê mamã, esqueceu que esta panela está furada? Dois buracos grande, grande.

M– Vou tapar. (Pega na panela e no pedaço de trapo velho, com vários buracos). Pega fogão pra mim.

F1– Não tem petróleo não, mamã.

Narradora – Vida de pobre é como este trapo velho. Os problemas não acabam. Se você tentar meter agulha para tapar um buraco deste pano, de cada vez abre mais outro buraco. Talvez seja por isso que os ricos defendem que não vale a pena ajudar o pobre. Mesmo ajudando o pobre, ele vai continuar pobre, porque o que torna o pobre mais pobre é a sua própria pobreza. Talvez esses ricos tenham razão, repare quanto ajudar gente não ajudou nosso país? Deixámos de ser pobres? Nada. A coisa piora. País em vez de ir pra frente, está à ir pra lado. Antes coisa estava rija, agora coisa virou cabo d’aço. (Como alguém que havia despertado). Mas meu homem está a demorar verdade. Será que devemos ficar felizes com a demora dele? É sinal de que está à conseguir alguma coisa ou é o sinal de que não conseguiu nada? E como regressar pra casa sem honra e nem gloria, de mãos a abanar mais um dia?

Lá vem ele, parece que se dirige ao cadafalso, sem nenhum plástico nas mãos. Nem tudo está perdido. Ainda há esperança. Quando ele chegar perto de mim, poderá levar a sua mão ao bolso.

“Papá, papá, papá” gritavam os nossos filhos com esta alegria contagiante, própria da vida de inocente, de quem só quer a comida sem saber de onde ela vem. Cumprimentou-os friamente. Dói a qualquer pai não poder corresponder à alegria de um filho, lhe dando qualquer coisa, mesmo que seja um doce. E todos nós sabemos que as crianças também são ingratas. Se todos os dias o pai chegar sem nada nas mãos para lhes dar, um dia vão deixar de celebrar o regresso do pai à casa. Engana-se o pai que pensa que os filhos estão a celebrar a saudade devido ao amor que têm por ele. É mentira. O ser humano é interesseiro desde o útero. 

O meu homem colocou a mão esquerda no bolso. Eu devo fica feliz? Não. É melhor esperar ainda. Ainda bem que não celebrei. De lá só saíram as chaves e ele não colocou as mãos em nenhum dos outros bolsos. A sentença está ditada. E agora? Nem vale à pena lhe perguntar. Quando um homem regressa para casa é porque ele não tem mais a solução. Agora cabe a mim, tomar alguma iniciativa. Maguita nglange ca tapa fata da tomato. Se o homem falha, devemos lhe ajudar. 

M–Amor, eu estou a ir lá do senhor Antô, tomar algumas coisas fiadas pra o jantar.

H1–Está bem, vai.

Narradora–O quê que ele poderia me responder mais?

Vou assim mesmo? Não, esta saia está um bocadinho curta e, com má cara. Deixa-me amarrar um pano em cima dele. (Amarra um pano, coloca chinelo, pega um saco plástico e sai).

Deus paga senhor Antô pra gente. Como eu ouvi que ele também está à querer viajar, se eu pudesse, fazia coisa para o senhor apanhar indeferido. Se senhor viajar, gente vai passar muito mal aqui nesta zona. Esta loja do senhor é chá de cota féble de muita gente daqui. 

a atriz Adozía Cristo a representar o monólogo na Bienal de STPa atriz Adozía Cristo a representar o monólogo na Bienal de STP

M–Bom dia freguês.

Antô–Bom dia mais? Coisa está cheirado noite já é freguesa.

M–Coisa que está na cabeça.

Antô–Se freguesa pegar toda coisa de mundo e colocar na cabeça, freguesa morre sem dia chegar.

M–Freguês, não está fácil gente não colocar não. Cada vez está mais difícil gente viver neste país, gente pode trabalhar mesmo, mas nem dinheiro para comprar coisa de comer gente consegue.

Antô–Assim freguesa veio pedir coisa fiado hoje mais?

M–É freguês, eu tomei vergonha tapei cara e vim pedir freguês coisa fiado mais uma vez.

Antô –Freguesa, dívida está à cair em cima de dívida só.

M–Eu sei freguês. Freguês pode colocar tudo no caderno que tarde ou cedo a gente vai pagar.

Antô–Nada. Coisa está mal pra toda gente. Esses dias também coisa não está a vender. Negócio está muito fraco. Pelo menos freguesa quebra dívida cabeça, assim porta abre pra freguesa mais uns dois dias.

M–Kiêi, até freguês que eu contei com ele? Aonde que eu vou mais!? Pena mesmo são as crianças lá em casa com fome, se for pra mim, posso beber água a ir pra cama. Freguês não pode ajudar-me mais uma vez?

Antô–Mão vai, vai vem. 

Narradora–Disse o senhor de forma descontraída para a alegria do meu coração.

M– Obrigada. Quero um quilo de arroz, duas coxas, meio litro de olho, uma…

Antô–Calma, eu disse freguesa mão vai, mão vem, mas eu ainda não disse freguesa como que a freguesa faz pra mão vir.

M–É preciso dizer? Quando eu tiver o dinheiro, eu pago.

Antô–Eu tive a falar de uma outra coisa, de uma outra forma de pagamento.

M–Qual forma de pagamento, freguês? 

Narradora–Perguntei com a cabeça já à dar voltas.

Antô–Não espanta não, freguesa. Coisa é pra ficar entre nós só. Paredes daqui não têm ouvidos.

M–Ouvidos pra quê, freguês?

Antô–Não sabe? Deixa-me fechar as portas. 

M–Fechar portas pra quê, freguês?

Antô–Chê, freguesa, coisa não tem falar muito não. Coisa é gente grande com gente grande e ainda freguesa veio de pano amarrado já, facilita a coisa mais ainda. Freguesa pode pegar este pano mesmo e estender aqui no chão.

M–Pára, pára, pára. Freguês quer pra eu dormir com freguês depois pra freguês me dar coisa fiado?

Antô–Se freguesa colaborar, vai deixar de ser fiado. Freguesa poderá levar ainda qualquer troco nas mãos.

Narradora –Olhei pra ele com os olhos de ódio, cerrei os punhos e as minhas pernas tremiam. A minha vontade era de lhe agarrar no pescoço e degolá-lo. Naquele momento desejei ser homem e ter força de um homem. Não consegui lhe dizer mais qualquer palavra. Como é desprezível a espécie humana!, aproveita o mau momento do outro para lhe atirar ao poço. O ser humano ao te olhar perto do precipício, ao invés de te socorrer, o melhor que faz é te dizer “vai, vai, tenha coragem, vai” e se não tiver mais pessoas presentes, ela te dá um empurrão e lava as suas mãos. Onde irá parar a raça humana? Não iremos mais ao inferno, porque aqui já estamos no inferno. 

E agora, o que eu faço? Meu homem fracassou e agora fracasso eu e os nossos dois filhos estão lá à espera por nós. O que vou lhes dizer? Aqueles só lhes interessa a solução, a bendita solução. A criança é como o povo: não lhes interessa a justificação, somente a solução e eles estão com fome. O que faço? Tenho ainda um triunfo na manga. É muito difícil uma mulher-mãe deitar as toalhas ao chão. Mas e o meu homem, o que vou lhe dizer? Será que devo  contar o que aconteceu? Eu devo? Não. Mas mentir ele também? Sim, não, sim, não. Não seria mentir, seria sim omitir. Qual mulher que conta tudo ao seu homem? Para o bem da própria relação, uma mulher não deve contar todas as verdades ao seu homem. Os homens são os seres mais desconfiados que existem, se você lhes falar do fumo, eles dirão com a certeza de que há fogo. Mesmo se eles não disserem nada, na cabeça deles haverá sempre esta possibilidade. Então, não lhe conto nada. Mas terei de lhe dizer qualquer coisa. Isto é fácil. Nós mulheres somos boas em arranjar justificações. 

H1–Hoje, até o Antô negou te dar coisa fiado?

M–Sim.

H1–Paciência, ele tem a razão dele. Já estamos à lhe dever demais.

Narradora–Estava à me roer os ossos ver o meu homem à falar bem dele.

H1-Devemos lhe entender. Ele é uma boa pessoa. Tem muito bom coração. Se ele não nos deus coisa fiado hoje, é porque as coisas devem estar mesmo mal pra ele. Negócio está fraco para todo mundo. Devemos pedir Deus pra ele para ver se o negócio dele melhora. 

Narradora–Eu não aguentei:

M –Ele não é santo assim como você pensa, não.

H1–Não é? O que aconteceu?

M– Se você soubesse a proposta que ele me fez, você não estaria aqui à falar para pedirmos Deus pra ele.

H1–Qual proposta ele fez?

M–Boca nem ajuda-me a falar esta coisa. 

H1–Pequena fala.

M–Ele me disse pra dormir com ele pra ele me dar coisa fiado.

H1–O quê? Que abuso é este?

Narradora–Ele foi e pegou no machim. 

M–Não leva machim, não. Não vai matar homem de gente e ir pra cadeia só de graça. 

Narradora–Ele não me ouviu e foi em direção ao encontro do Antô. 

H1–Eu não admito o teu abuso. Você não deve faltar a minha mulher respeito. Narradora–Falou, abanando machim na cara do Antô?

Antô–Eu faltei a tua mulher respeito? Eu fiz ela uma proposta e ela recusou, então assunto encerrado. Você está à vir fazer escândalo e fazer povo saber disto só de graça.

H1–Eu mato você.

Narradora–Antô apontou-lhe uma arma e lhe disse: eu mato você primeiro. Já está com bala na câmara. É melhor você tomar teu rumo, sair da minha loja e ir arranjar o dinheiro para pagar as minhas dívidas. 

Ele saiu da loja. Em casa não lhe perguntei nada sobre o assunto. Não devemos perguntar aos homens sobre os seus fracassos. Dava pra ver que as coisas não correram bem lá na loja com o Antô.

E agora? Devido ao conselho da minha avó, eu tinha um dinheirinho em casa.  A minha avó me ensinou que devemos ter sempre pelo menos algumas moedas em casa que sejam ao menos para comprar um algum comprimido, pode ser paracetamol. E eu tinha algumas moedinhas. Fui buscá-las.

Já não fui mais à loja. Eu não queria que o Antô voltasse à me ver. Mandei os meninos irem comprar 250 gramas de açúcar numa loja depois da loja do Antô. Não me interessava o que ele iria pensar.

M–Toma, vai pra loja da senhora Maria. Loja do senhor Antô, não. Vão e vêm rápido.

Foram e vieram rápido. 

M–Kikito aonde que está açúcar? 

Narradora–Perguntei pra ele por ser o mais velho.

F1–Ferro deixou açúcar cair.

F2–É mentira mamã. Eu disse ele para carregar açúcar, ele não tomou. Ele deu-me açúcar para carregar, quase aqui na entrada já, eu dei topada, chinela cortou, açúcar despejou todo um chão.

M–Coisa que apeteceu me agora é pegar vocês os dois…Açúcar caiu aonde?

F1-Aqui dentro do quintal já.

Narradora–Eu peguei uma tigela e uma colher e com jeitinho consegui recuperar um pouco do açúcar. A pobreza tem cada coisa: nos leva até à apanhar o açúcar no chão. 

Eu fiz a papa.

F1–Mamã, hoje gente tá janta com papa de farinho trigo mais?

M–Sim, filho.

F1–Eu não quero comer não.

M–Você vai comer sim, nem você nem teu irmão. No dia em que você for homem grande é que vai irá comer o que você quiser.

Narradora–Algo dentro de mim me pediu para repensar sobre o que eu disse: Será? Será que chegará o dia em que qualquer adulto santomense comerá o que quer? Eu sou adulta e hoje a minha alternativa é comer ou não comer, é comer ou ficar com fome e não comer a papa de farinha de trigo ou uma outra coisa.

Dói colocar filhos no mundo e saber que eles nunca poderão ter a possibilidade de escolher o que comer. Quando isto acontecer será a culpa deles? Isto me faz lembrar uma história: Certa vez decidiu-se realizar uma corrida. A corrida era entre um paralítico, ou seja, não podia correr e uma pessoa fisicamente normal, ou seja, alguém que podia correr. Havia uma diferença entre eles; o paralítico queria correr, mas não podia, enquanto que o seu concorrente podia correr, mas não queria. Colocou-se os dois no ponto de partida, marcou-se o tempo e soou-se o apito. Passado o tempo preconizado, deu-se por terminada a corrida. O resultado? Surpresa! Nenhum dos dois saiu do lugar. O paralítico porque, mesmo com vontade, não podia correr devido as limitações que não podia ultrapassar, enquanto que o seu oponente tinha tudo para correr, mas não tinha a vontade de correr. 

São duas coisas que nos mantêm num mesmo lugar ao longo da vida: uma é a impossibilidade e outra é a falta de vontade. Quando eu olhar para trás e ver que o futuro dos meus filhos não é diferente do meu presente, hei de perguntar: será que eles foram aquele paralítico que, mesmo com vontade de correr, não podia ou será que foram aquele que tinha as plenas condições para correr, mas optou por vontade própria em não fazer? Olhando para nós hoje, nós que ou jantamos com a papa de farinha de trigo ou, sabe já: somos o paralítico ou aquele que pode correr, mas não o faz de livre e espontânea vontade?

Se somos o paralítico, quem é razão da nossa paralisia? Deus? Não creio. Toda a humanidade sofre do pecado original. Deus não faria a distinção entre os povos: uns para comerem o que escolherem comer e outros para comerem papa de farinha de trigo ou dormir com fome. Deus nos deu a possibilidade igual de escolhermos os nossos destinos, mas só que nos deu o livre arbítrio. Para Ele a salvação é individual, mas nós estamos à fracassar de forma coletiva. E quando se fracassa de forma coletiva, há uma culpa: os políticos. São eles que nos mantêm paralisados. Nós temos a vontade de correr, mas eles têm amputados as nossas pernas. E como que se tira a perna a um povo? Sendo corrupto, sendo incompetente e viver na impunidade. 

F1–Mamã, gente comeu já. 

Narradora–Me avisou o filho que não tinha a vontade de comer a papa de farinha de trigo, mas teve que comer por não ter alternativa. 

M–Está bem. Escovam os dentes e vão pra cama. 

Narradora–Falando em cama, o meu homem já está lá deitado, de certeza, sem sono. Ele não comeu e não é por falta de fome. Nem adianta eu lhe chamar para vir comer a papa de farinha de trigo. Vai dormir como uma pedra, de costas para mim, não irá me tocar, porque quando tem problema no bolso, ele tem problema aqui também, talvez porque as duas coisas estão perto “não tem um, não tem outro”, ni l’un ni l’autre.

Eu que vou ter de comer umas duas colheres desta papa antes de ir dormir, porque conheço a fome. A fome vence o sono. Lá pela madrugada, depois da fome instalar o seu governo dentro de nós, é um inferno total. Só quem já experimentou esta situação sabe do que estou à falar. A fome é implacável, a fome não perdoa, causa uma dor de cabeça que só Deus sabe, algo rói o estômago como uma gadanha arrastando o capim, a cabeça fica uôlo uôlô, as pernas ficam bambas, os olhos ficam viano, viano. É o fim! Vemos cada coisa estranhas. Parece que nos encontramos com a morte. Ai meu Deus, porquê que o senhor fez a fome!? Se eu pudesse, ninguém neste mundo sentiria a fome sem ter algo de comer.

É mais um dia que se vai. 

a atriz Adozía Cristo a representar o monólogo na Bienal de STPa atriz Adozía Cristo a representar o monólogo na Bienal de STP

por Pedro Sequeira de Carvalho
Palcos | 24 Junho 2024 | Bienal internacional de artes de São Tomé e Príncipe, fome, teatro