O Conselheiro generoso

Diversas vezes pedi conselhos ao Ruy. Afinal, ele aceitara ser Conselheiro da Casa das Áfricas. Essa era a desculpa que eu tinha para pedir-lhe todo o tipo de conselho, nas áreas mais variadas: afetos, trabalho, família… Pois o Ruy era também o amigo.

Posso dizer que fomos parceiros. Sabíamos que fazíamos bem um para o outro.

Ríamos muito. Quando nos conhecemos, em 2004, as circunstâncias fizeram com que eu fosse a anfitriã e ele o escritor convidado. Uma situação delicada, que o Ruy veio a decifrar quando se lembrou de Blaise Cendrars e recebeu a inspiração para escrever o Desmedida. Logo assumimos uma relação muito franca e agradável. O Ruy escrevia um livro e eu era a sua companheira de viagem, motorista, fotógrafa, discípula, amiga, etc…

Nos encontramos já na maturidade. Ele no início dos 60 e eu entrando nos 50. Tínhamos muito em comum. Havíamos lido os mesmos livros, como A um Deus desconhecido, do Steinbeck, e o Na Patagônia, do Bruce Chatwin. Estivéramos em Londres na década de 1970. Gostávamos de viajar, tínhamos convivido com pastores. Conhecíamos a cultura do café. E sabemos o quanto o Ruy gostava de falar de café…

Numa conversa, dissemos que sentíamo-nos como “pessoas de fronteira”. Sinto que foi nesse momento que percebemos que podíamos confiar um no outro.

O Ruy sempre manifestava sua gratidão pela Bolsa de Criação de 6 meses oferecida a ele pela Casa das Áfricas em julho de 2004, o que me deixava bastante perplexa. Eu dizia: pode haver honra maior do que ser mecenas do Ruy Duarte de Carvalho? E assim brincávamos. E ele escrevendo a Desmedida.

Fomos juntos aos sebos, buscar os livros que queria ler para referenciar a futura obra. Uma montanha deles! O Ruy devorava um a um. Depois, sentados nas mesas de bares da Vila Madalena, compartilhando petiscos, ele me contava o que havia lido. Assim falávamos sobre a História do Brasil e fiquei sabendo muitos episódios da história da minha família que até então desconhecia. O assunto mais constante de nossas conversas, e o tema do livro, era a relação entre a História do Brasil e a de Angola. A história da minha família havia sido apenas o start, o gancho, a primeira inspiração, recebida no “jardim metafísico”. Ele dizia que queria que o Brasil conhecesse mais a si mesmo. Blaise Cendrars e a Semana de 22, Burton no São Francisco, Antônio Conselheiro, Euclides no Sertão, Guimarães, Holandeses, Guerras de Independência, questão racial, dilemas da atualidade… tudo isso entraria na Desmedida.

Cruzamos milhares de quilômetros Brasil adentro. O Ruy planejava as viagens, eu era a “produtora”: reservava as pousadas, alugava os carros, comprava as passagens de avião. Era um prazer viajar com ele. Acordávamos muito cedo, “matabichávamos” juntos e depois… pé na estrada. Eu guiava no asfalto, ele na terra. Trocávamos impressões e memórias. Tínhamos todo o tempo do mundo, entre um ponto e outro do trajeto diário. Na Chapada Gaúcha, lugarejo mais próximo do Parque do Grande Sertão Veredas, subitamente o Ruy se apaixonou por uma menina que vendia flores de papel. E assim vivemos aqueles momentos.

Certo dia o Ruy recebeu a notícia de que a Universidade de Coimbra organizava um ciclo cultural em sua homenagem. Convidou-me a acompanhá-lo na semana que passaria lá. Foi então que conheci a família do Ruy: Eva, Luhuna, Rute, Filipe e Paula, o Sá, a Luiza, a Paula Tavares…

Passados os eventos oficiais o Ruy levou-me, num passeio em que estavam também o Luhuna e o Sá, para conhecer São Pedro de Moel, praia em que passara muitos verões de sua infância.

Durante os eventos de Coimbra, o livro As Paisagens Propícias fora lançado. Meses depois, António Mega Ferreira escreveu o belo artigo que tanto agradou ao Ruy.

O tempo de Brasil (que durou bem mais do que os 6 meses originais, pois o Ruy estabeleceu-se em São Paulo durante cerca de dois anos) terminara. Mas continuávamos a nos encontrar.

Fui a Lisboa para a inauguração da mostra “Dei-me portanto a um exaustivo labor” no CCB. A alegria do Ruy ao ver a exposição sobre a sua trajetória de vida tão bem concebida e montada era explícita. Generosamente ele havia incluído no roteiro uma “Sala Brasil”, onde as fotos que fiz durante nossas viagens eram projetadas.

Ficamos todos esfuziantes quando lá mesmo no CCB o Ruy recebeu a notícia que ganhara o prêmio literário Correntes de Escritas de 2008. Naquela noite o querido André Jorge, editor do Ruy, convidou-nos para jantar. Comemos e bebemos maravilhosamente bem. E estávamos todos felizes, falando muito, trocando confidências. Parecia que um círculo se completava. O Ruy estava sendo reconhecido, admirado. O André sempre o tinha apoiado e eu, por acaso, tinha entrado na história um pouco antes daquele dia. Foi muito bom ter sido parceira do Ruy naquele momento e contribuir para que mais pessoas conhecessem seu trabalho.

Sinto-me cada vez mais grata a ele. Percebo o quanto sua generosidade me fez bem.

 

fotografias de Daniela Moreau

por Daniela Moreau
Ruy Duarte de Carvalho | 22 Agosto 2010 | Brasil, Ruy Duarte de Carvalho, viagem