Os Papéis do Inglês e muito mais: venham lá conhecer Ruy Duarte de Carvalho
Quem era o inglês e o que continham os papéis que deixou? As perguntas atravessam o livro que o escritor, antropólogo e cineasta escreveu em 2000.
Em 1976, depois da retirada dos sul-africanos, o então antropólogo, cineasta e poeta Ruy Duarte de Carvalho chegou a Benguela para filmar um comício quando testemunhou o desmantelar de um antigo posto administrativo. Ao que consta, atiravam-se documentos pelas janelas. Entre eles, um “livrinho amarelo” com a história do que passaria a ser conhecido como o inglês do Kwando, chamado Archibald Perkins.
Depois de muitos acasos, muitas buscas, Duarte de Carvalho recorreu à invenção para contar quem foi e o mistério que encerrava esse inglês, inspirando-se numa crónica de Henrique Galvão, o homem que sequestrou o paquete Santa Maria em 1961. Sobre o livro e as suas origens, Ruy Duarte de Carvalho disse, numa espécie de subtítulo, tratar-se da “narrativa breve feita agora (1999/2000) da invenção completa da estória de um inglês que, em 1923, se suicidou no Kwando depois de ter morto tudo à sua volta, segundo uma sucinta crónica de Henrique Galvão”.
Num registo entre o epistolar, o historiográfico e o memorialista, Os Papéis do Inglês (2000, adaptado por Sérgio Graciano, por encomenda de Paulo Branco, ao cinema – a estreia foi esta semana integra a trilogia Os Filhos de Próspero e é narrado na primeira pessoa dirigido a um interlocutor específico, uma mulher. Sabemos cedo que o inglês de que ali se fala procurava sair-se o melhor possível de um crime que cometera e acabou por se suicidar. Décadas mais tarde, alguém que se confunde com a própria biografia de Ruy Duarte de Carvalho – um professor universitário – vai atrás do rasto desse homem numa incursão sem prazo por algumas regiões entre Angola e a Namíbia, na tentativa de desvendar o mistério do inglês e dos papéis que terá deixado, um verdadeiro tesouro perdido, móbil da ficção do autor de A Câmara, a Escrita e a Coisa Dita (Cotovia, 2008).
Estamos diante de um dos maiores exemplares do chamado romance colonial, escrito por um autor inquietante e inquietado com o destino do lugar/país onde escolheu viver. O que escreveu, filmou, fotografou, disse, visava trazer uma perspectiva nova à narrativa oficial então propagada sobre uma história de séculos.
O início do livro remete justamente para essa intenção: a de combater o “imaginário viciado”. Dirigindo-se a essa interlocutora, escreve: “A narração daquela estória que prometi contar‐te, a do suicídio de um inglês no interior mais fundo de Angola e nesta África concreta de que tu, e todo o mundo, tão pouco realizam no exacto fim deste século XX, fora de um imaginário nutrido e viciado por testemunhos e especulações que, afinal, se ocupam mais do passado europeu que do africano (…), poderia, a ser levada avante, começar aqui e agora.”
Tudo começa junto a umas pedras, perto de linhas de água, mata baixa adentro, seguindo um caminho de bois, bem junto ao acampamento onde atearam fogo. Há o céu, o silêncio, e as vozes entrecortadas do narrador e de Paulino, o seu cozinheiro acompanhante na aventura.
“Matéria insidiosa”, beleza estarrecedora
Publicado depois de Vou Lá Visitar Pastores (Cotovia, 1999), Os Papéis do Inglês seria o primeiro dos livros da que ficou conhecida como a trilogia d’Os Filhos de Próspero, e de que fazem ainda parte os títulos As Paisagens Propícias (2005) e A Terceira Metade (2009). A estrutura fragmentada do livro, o tom entre a análise e o questionar do passado onde se enquadrou a presença do inglês, dão um vislumbre do trauma de um país e de uma identidade onde a violência e toda a espécie de exploração deixaram marcas fundas. É um trabalho intenso, profundo, com a memória. A perseguição dos papéis do inglês é uma tentativa de resgate dessa nova versão, alternativa à da história oficial, mas, sobretudo, de resgate de uma memória colectiva a partir de um tesouro pessoal e da mitologia que ele carrega.
É “matéria insidiosa”, ler-se-á muitas páginas adiante, numa narrativa de uma beleza estarrecedora, a convocar a paisagem para a construção de uma intimidade com o leitor que o tom epistolar aprofunda.
“Chegámos à Pedra do Tambor, onde pernoitaríamos antes de atravessar o Kuroka e entrar no parque na manhã seguinte, já a noite vinha vindo. Com ela a aragem fria de uma brisa rasteira. É aquela hora que arrepanha a alma e é sempre breve, mas bastante, assim. É a hora que estrangula a digestão das horas, o programa das rotas, a ordem das tarefas, o compromisso, a lei. A incidência derradeira daquela luz directa recolhia-a de costas para o poente, a ver estender-se a sombra da pedra a que encostava, a da margem de espinheiras que acompanhava o curso de um declive que de outra forma não se anunciava, o reflexo àquela hora, do ocre dessas ilhas, cónicos puzzles de blocos de granito, acumulados juntos e a formar alturas, a emergir do mar dos pastos, vastos, vastos, do lençol do chão, e a púrpura difusa de uma curva escarpa, muito mais ao longe, a leste, altitude de platôs, matriz de migrações. E vinha também a lua. É disto que se faz a emoção.”
Numa gestão exemplar de fôlego, de ritmo, a busca avança pelo deserto do Namibe, desafiando o leitor a reflectir acerca dos limites da representação, seja literária ou científica – traços comuns a muitas das obras de Ruy Duarte de Carvalho –, com a personagem ou a presença do inglês a evocar a complexidade das relações de poder e identidade naquele território. Indaga ainda sobre a capacidade ou o papel da antropologia; e também sobre a possibilidade de a literatura captar e narrar a alteridade.
Na história de suicídio e crime engendrada pelo narrador, e que surge como o centro ficcional deste livro, Ruy Duarte de Carvalho lança reflexões filosóficas, poéticas, etnográficas, e interroga a linguagem. Estamos em campo híbrido, criativo e histórico, mas também territorial, numa África que tem neste livro um dos documentos mais sofisticados para a compreensão do seu passado e da rede em que o presente se sustém. Ao longo da sua vida, que terminou repentinamente a 12 de Agosto de 2010, esse foi um dos seus propósitos artísticos e científicos: deslindar essa identidade complexa a que escolheu pertencer, tendo nascido português.
Nascido em Santarém, em 1941, Ruy Duarte de Carvalho morreu em Swakopmund, a segunda cidade da Namíbia, em 2010. Foi entre pastores nómadas na fronteira entre Angola e a Namíbia que este regente agrícola doutorado em Antropologia passou grande parte da sua vida. A voz que se escuta no livro, a toada que nele se pressente, vem desse lugar. Era o lugar de Ruy Duarte. Muito cedo terá descoberto que era ali que estava a sua “matriz”, a sua aventura – e “a aventura tem dessas coisas”, lê-se algures. Recupera mitos, usa delírios, recorre à magia das palavras e das pedras como auxiliares narrativos, personagens coadjuvantes que, dependendo do curso do enredo, se tornam principais. Os papéis são um pretexto, outra mitologia no desvendar de uma África que sempre desinquietou Duarte de Carvalho, autor infinitamente pouco conhecido para a grandeza da obra que deixou: 13 volumes de poesia, três narrativas difíceis de classificar, quatro livros de ficção, seis de ensaio e uma filmografia com nove títulos.
Haverá em breve uma oportunidade de o descobrir, de o reler. A partir de 28 de Novembro, Ruy Duarte de Carvalho volta a estar disponível. A Cotovia, editora que publicou toda a sua obra, fechou e restam poucos exemplares de um percurso totalmente ímpar na literatura em língua portuguesa, e quase todos em alfarrabistas. A Tinta-da-china vai começar a reeditá-lo e começa nada mais do que por Os Papéis do Inglês, num impulso dado agora pelo cinema. Agarrem-no.
Publicado originalmente no Público a 25/10/2024.