1000 anos de Ai Weiwei e Ai Qing
Dez mil anos de alegrias e tristezas
Não resta um único vestígio
Aos que estão vivos, vivam a melhor vida possível
Não esperem que a terra preserve a memória.
Ai Qing
8:08, 8/8/2008
Comecei a estudar mandarim em 2005. Uma licenciatura em mandarim e japonês acabava de ser inaugurada na Universidade do Minho. Em 2008, estava a embarcar para a China, para aprofundar os meus conhecimentos de mandarim num mestrado em Tianjin. Quando aterrei, telefonei para a minha mãe de um telefone no aeroporto pago a cartão de crédito. Sabia que era suposto ela estar a dormir, mas provavelmente não estaria. Estaria antes a ter casualmente sonhos em que acordava e atendia o telefone que lhe fica na cabeceira da cama. Hei-de lamentar para sempre os trinta e cinco euros por uma chamada de cinco minutos, mas precisava de ligar para casa e dizer ‘estou bem’. Não conhecia ainda na minha família ninguém que tivesse feito uma viagem de avião entre dois continentes. Tudo era novo, misterioso e assustador. Eu garanti à minha mãe que ia estar à altura de qualquer desafio. Quando na viagem para a Universidade Línguas Estrangeiras em Tianjin, o carro que nos transportava ficou sem bateria na auto-estrada e fomos levados por um reboque até ao campus, parecia que ouvia em loop a música “Běijīng huānyíng nǐ” (Pequim dá-te as boas-vindas) de forma irónica. Esta música acompanhou os chineses e os estrangeiros que visitaram Pequim num ano que a China queria sublinhar como um símbolo: a abertura ao exterior, a concretização do progresso. Num vídeo-clip produzido com as maiores estrelas pop chinesas, viam-se representantes das cinquenta e seis minorias étnicas chinesas a desfilar contentes. Contentes por terem Pequim na sua vida! Os jogos olímpicos arrancariam às 8 horas e 08 minutos no dia 8 de agosto de 2008 no Estádio Olímpico “Nino de Pássaro” cuja arquitetura arrojada e futurista era responsabilidade do artista Ai Weiwei. O 8, símbolo de sorte na tradição chinesa, era o bom presságio necessário. Muito se poderia pedir aos poderes divinos ocultos. Os jogos começavam, os Olímpicos e os outros.
Jogos de sombras em que à imponência demonstrada pelo regime chinês se juntavam desastres naturais e humanos. Como o sismo de Maio em Sichuan. Setecentas e quarenta crianças perderam a vida quando a sua escola ruiu. A nação chinesa mergulhou em luto. “Porquê um edifício tão frágil e quem ia responsabilizar-se pela sua construção?” Perguntou uma mãe de uma dessas crianças a Ai Weiwei, interpelando-o no seu blog. No final de fevereiro, uma série de nevões invulgarmente fortes paralisaram os transportes durante dias seguidos. Depois, a um movimento de protesto iniciado em fevereiro pelo governo tibetano no exílio, seguiram-se em março manifestações contra o domínio chinês em Lhasa que levaram à implementação de medidas repressivas pelas autoridades chinesas. No Verão seria descoberta melamina - um químico que pode provocar cálculos renais e desencadear a falência da função renal - em leite em pó para bebés e noutros produtos lácteos vendidos na China.
Nesse ano, não bebi leite e repeti mil vezes os mesmos caracteres chineses em vários cadernos até os ter a todos decorados. Enquanto me embrenhava nesta memorização frenética de caracteres chineses, Ai Weiwei já explicava ao mundo que não estava satisfeito com o seu Ninho de Pássaro. Não queria o seu nome em propaganda política.
O que aconteceu a seguir na sua vida, fiquei a saber com mais detalhe agora, após ter lido o seu livro de memórias publicado em novembro deste ano em Portugal pela editora Objectiva, uma chancela da Penguin Random House - Grupo Editorial.
1000 anos de Alegrias e Tristezas
1000 anos de alegrias e tristezas é o título do livro de memórias do artista chinês Ai Weiwei (艾未未). Digo artista mas podia também dizer ativista. Digo chinês mas poderia também dizer cidadão do mundo, ou inconformado ou até mesmo cidadão do mundo inconformado. Ai Weiwei fala-nos do passado mas parece estar sempre a explicar o presente. Como se para se entender uma flor, tivéssemos que começar pelo seu caule e depois seguir atentamente cada pétala. E não basta entender a flor, mas saber onde se posiciona: se é um girassol num cartaz de propaganda maoista ou se é uma orquídea colhida naquele dia e colocada por cima das câmaras de vigilância de Caochangdi, perto da morada de Ai Weiwei em Pequim. A memória, essa corda que se pode agarrar e avançar ou voltar para dias que ficaram no passado. É a corda à qual Ai Weiwei se tenta agarrar depois dos seus meses de prisão em Pequim, quando pensou pela primeira vez em como é que o pai se deveria ter sentido quando ele próprio fora um preso político. Quis Weiwei preservar a memória para a entregar ao seu filho em formato de livro.
A partir de uma relação descrita como ‘nunca próxima’ ou ‘nunca particularmente afetuosa’, ficamos a conhecer a trajetória de vida do poeta Ai Qing, pai de Ai Weiwei. Quando Ai Qing nasceu, embrulharam-no com uma manta que prometia “1000 anos de alegrias”. Mais tarde, o poeta utiliza esta frase, típica da tradição chinesa aquando do nascimento de uma criança, para lhe acrescentar os 1000 anos de tristeza. Compreende-se o desabafo. O poeta que se iniciou na criação artística pela pintura, foi em 1932 pronunciado para julgamento no Supremo tribunal provincial de Jiangsu com o fundamento de que tinha violado as leis da China ao “causar perturbação pública através de atividades do Partido Comunista”. A imagem em causa era a de Chiang Kai-shek deitado no chão a lamber um par de botas militares que tinham o intuito de simbolizar o imperialismo japonês. Em 1958, seria enviado para campos de trabalhos forçados, desta vez, pelas mãos dos comunistas. Ai Qing incomodava, fosse o poder tomado pelo partido nacionalista, quer fosse tomado pelo partido comunista. Um artista, defensor acérrimo da liberdade de expressão, independentemente da cor política vigente.
Ai Weiwei conta-nos muito sobre si, mas mais do que a sua vida e os factos curiosos acerca da sua intervenção cívica e artística, estas memórias são também as memórias do pai.
Aquelas que Ai Qing nunca chegou a escrever mas que surgem agora, escritas pela mão do filho que se começa a interessar pela obra do pai quando compreende, finalmente, que o seu próprio caminho de resistência é, no fundo, um prolongamento do caminho do pai.
“Só quando eu próprio me tornei um alvo da hostilidade do regime é que comecei a perceber o que ele devia ter sofrido”.
Ai Weiwei, ‘1000 anos de alegrias e tristezas’ (p.112)
“As estradas da China
São tão íngremes e tão lamacentas
A dor e o desastre da China
São tão grandes e intermináveis como esta noite nevosa
Cai neve em solo da China
E o frio envolve-a como uma prisão.”
Ai Qing em “Cai Neve em Solo da China”
Ai Qing, leitor devoto de Maiakovski e Verhaeren, queria alertar os seus leitores para o crescimento descontrolado das cidades do mundo capitalista e para o espetáculo de tantas aldeias em vias de extinção. Em Paris, na sua juventude, inspirado pela experiência dos surrealistas franceses, encheu o bloco de desenho com sensações efémeras, ao estilo do “automatismo psíquico” de André Breton. Acreditava na libertação dos constrangimentos dos poetas chineses que escreviam versos heptassilábicos em chinês clássico.
Foi quando regressou à China que começou a prestar atenção a uma corrente revolucionária que valorizava a cultura como veículo para fundamentar teoria e ideologia em formas visíveis de expressão. Integrou a Liga de Escritores de Esquerda e tinha como objetivo tornar as vozes dos autores verdadeiramente representativas do povo chinês.
“Hoje em dia, a poesia devia ser uma arrojada experiência no espírito democrático e o futuro da poesia é inseparável do futuro da política democrática. Uma constituição é ainda mais importante para os poetas que para os outros, porque só quando o direito à liberdade de expressão é garantido podemos dar voz às esperanças do povo em geral. Suprimir as vozes do povo é a forma mais cruel de violência”.
Ai Qing, Shi Lun (Sobre a Poesia)
Aos olhos do filho, oitenta anos depois da publicação deste texto, a sua fé na poesia como embaixadora da liberdade ainda não foi reconhecida na China.
Em 1940, Zhou Enlai o arquiteto político da nova China, conhece Ai Qing e convida-o a juntar-se ao número crescente de intelectuais de esquerda no reduto comunista de Yan’na. onde poderia dedicar o seu tempo a escrever, sem outras preocupações. Ai Qing - escreve o filho – cumpre a promessa de escrever “com a mesma indómita teimosia com que um soldado luta numa batalha” (P. 92).
Por esta altura, Mao Tsé-Tung fez um apelo para “atrair intelectuais em grande escala”. Nas suas palavras,“A política de garantir o apoio de intelectuais é uma importante condição prévia para a vitória da revolução”. Aos poucos, a produção intelectual de Yan’an começou a alertar para falhas e vicissitudes da sua governação. Quando vários textos e artigos começaram a ser censurados, Ai Qing começa a compreender como funciona, afinal, o Partido Comunista Chinês. O espírito do Quatro de Maio incluía democracia, liberdade, independência e igualdade, mas esses valores iam quase de certeza contra a unidade ideológica, a liderança centralizada e o coletivismo exigidos pelo Partido Comunista chinês.
“Parado sob baixos beirais
Contemplo com deslumbramento as montanhas despidas
E o céu infinito
E sinto que um milagre está a acontecer
Vejo uma coisa a brilhar com luz
E, como o sol, aquece-me o coração.
A bater com força, o meu coração continua a correr atrás dela
Como um noivo que se apressa para um casamento
Embora eu saiba que o que traz não é festiva alegria
Nem a diversão de um espetáculo de vaudeville
Mas uma visão mais cruel que mil matadouros públicos
E ainda assim avanço na sua direção
Com toda a avidez que uma vida pode conter.”
Ai Qing, excerto do poema “Época”, 1941
O poema “Época” resume com perturbadora presciência a interseção da dramática mudança e calamidade pessoal que acompanhariam a revolução que varreu a China na década de 1940.
A 8 de março, dia da mulher, uma das mais prestigiadas autoras da comuna, Ding Ling, escreve sobre as desigualdades e a opressão silenciosa que as mulheres enfrentam naquela comunidade, supostamente progressista. A autora viria a ser presa anos depois, como um símbolo contra a autoridade do poder. Sobre Ding Ling, Ai Qing escreveu “Uma escritora não é uma cotovia, nem é uma rapariga cujo trabalho é recitar monótonos gorjeios para entreter o seu patrono. Para além da liberdade para escrever, os autores não exigem outro privilégo. Só quando a criação artística tem um espírito livre e independente é possível impulsionar a missão de reforma social”.
A 26 de junho de 1946 teve início uma guerra civil em grande escala. Chiang Kai-shek lançara um ataque às áreas libertadas com o objetivo de as dominar. Começara a conhecida guerra entre o Kuomingtang (KMT) de Chiang Kai-Shek e o Partido Comunista Chinês de Mao.
Apesar da superioridade militar do KMT, a revolução chinesa do século XX foi, na sua essência, uma revolução camponesa. Assim, em 1949, oitenta por centro da população era constituída por camponeses e os camponeses tornaram-se a maior força da revolução. A reforma agrária eliminou a classe da aristocracia local que existia desde os primórdios da era imperial.
Após o domínio comunista, Ai Qing faria parte da comissão encarregada de analisar propostas para a nova bandeira nacional. Porém, passado pouco tempo, aqueles que criaram os símbolos da nova república, seriam expostos ao desprezo público.
Quando a reforma agrária eliminou a classe de proprietários de terras e permitiu a apropriação da sua riqueza, o Partido Comunista Chinês inverteu o curso, reclamou a terra e coletivizou-a.
O Desabrochar de Cem Flores
“O Desabrochar de Cem Flores” encetado por Mao para incentivar a expressão das mais variadas escolas de pensamento (inclusive anticomunistas) para corrigir e melhorar o sistema, atraíra para a comuna de Yan’an artistas e intelectuais que julgavam estar a participar num movimento de esquerda que pretendia a reforma do sistema pela razão, a tolerância e a libertação de quaisquer dogmas. Pouco depois de dizer que uma centena de flores deviam florescer e uma centena de escolas de pensamento deviam argumentar, Mao mudou drasticamente de atitude. Tudo não passava de uma armadilha para que Mao encetasse uma busca brutal e desenfreada contra aqueles que o criticavam.
Em 1957, O Diário do Povo publicou um artigo na primeira página a insinuar que Ai Qing e alguns dos seus associados mais próximos do tempo de Yan’an estavam com conluio com Ding Ling. Ai Qing seria assim identificado como alguém ativo há muito tempo em diversas “cliques anti-partido”.
“O Outono estava a chegar e o meu pai passava o dia inteiro sentado à secretária, solitário, com um olhar triste, e passava o dia inteiro sem proferir uma palavra. A minha mãe, Gao Ying, fazia questão de esperar na rua quando o carteiro entregava o jornal para rasgar qualquer artigo que o mencionasse e deitá-lo ao lixo”. (p.143)
O destino destes intelectuais que desrespeitavam a autoridade de Mao, era o deportação para campos de “reeducação” no mundo rural, ou seja, campos de trabalho forçado. Ai Qing foi condenado a cumprir pena numa das regiões menos hospitaleiras do país, no extremo Nordeste, na “Floresta Nanheng” e desempenhou funções num posto de silvicultura.
O Grande Salto em Frente foi um esforço para uma industrialização rápida, que incluía uma campanha de aço em grande escala e as comunas do povo - destinadas a coletivizar a economia rural da China. Eram as “três bandeiras vermelhas” erguidas em toda a nação. Porém, essas políticas radicais fariam com que dezenas de milhares de pessoas morressem de fome nos anos seguintes. Numa conversa com a filha Jiang Qing, Mao Tsé-Tung partilhou as suas expectativas para a Revolução Cultural. A sociedade tinha que ser mergulhada num caos, afirmou, antes de poder ser devidamente governada. A cada sete ou oito anos, seria necessário um movimento deste tipo para fazer “os demónios com cara de boi e os espíritos de cobra” saírem dos covis, em conformidade com a natureza da sua classe. A Revolução Cultural seria um exercício de guerra à escala nacional, em que esquerdistas, direitistas e indecisos teriam “o que mereciam”. A campanha Antidireitista teve como alvo a elite cultural, mas a Revolução Cultural visou toda a gente.
Ai Weiwei conta-nos como foi nascer, crescer e começar a conhecer o mundo através da vida em campos de reeducação. Vários relatos da sua vida com o pai, nos vários campos de reeducação para onde foi remetido, agregam uma perspetiva humana à experiência desumana que foi nascer sem escolha.
“Em Abril, embora as folhas ainda não estivessem verdes, o meu pai levava-nos, a nós crianças, para a floresta em busca de pássaros. A luz do sol penetrava na densa cobertura de árvores. (…) Sem pássaros, a escura floresta parecia ameaçadora e nós ficávamos com medo quando a noite se aproximava e ventos fortes uivavam no vale. Nesses momentos, o meu pai dizia-nos num tom de consolo que a floresta era a casa do vento: todas as noites, após grande azáfama, ele tinha de voltar para casa, como nós voltávamos. Ele afirmava que o vento era o cidadão mais velho da montanha e eu era o mais novo.” (p.151);
“Como a sua visão estava a deteriorar-se, ele tinha começado a usar uma lupa para ler. Um dia, antes de uma reunião de condenação, um oficial de segurança entrou subitamente, pegou na lupa e subiu uma escada para o telhado do auditório, onde, a espreitar por ela, perscrutou o horizonte à procura de sinais de atividade hostil, como um ataque iminente de alguma fração rival. Aquela imagem de um homem a tentar usar uma lupa como um telescópio ficou sempre comigo como um exemplo da ignorância e loucura dos anos da Revolução Cultural.” (p.123)
“Depois da ocupação de Praga pelos soldados do Pacto de Varsóvia em 1968, houve uma intensificação da tensão nas relações da China com a União Soviética. Os soviéticos estacionaram um milhão de homens do seu lado da fronteira com Xinjiang e durante algum tempo pareceu que ia haver uma guerra. “Em antecipação, a minha escola primária começou a reforçar o treino de russo e eu aprendi a dizer frases como “Entrega a arma e não te matamos” e “Nós tratamos bem os prisioneiros”. (p.175);
Ai Weiwei e a crítica à contemporaneidade
A segunda metade do livro descreve a vida do autor a partir da data em que teve oportunidade de viver em Nova Iorque na sua juventude. Assim, mais um traço do seu caminho se juntava ao do seu pai, que tinha na juventude vivido em Paris. Ai Weiwei apresenta-nos, nesta fase da narrativa, a sua forma de concetualizar a arte. Para ele, a arte não deve ser apenas um objeto valioso. A sua visão da arte contemporânea é a de uma relação dinâmica com a realidade, com a nossa forma de vida e com a nossa atitude perante a vida, e não deve ser colocada num compartimento diferente. “Não tenho interesse na arte que procura manter-se fora da realidade.” (p. 287). “Vejo o que está à minha frente como um ready-made, como o urinol de Duchamp. A realidade cria maiores possibilidades para a minha arte e esta perceção está na base da minha confiança”. (p. 314)
Ai Weiwei relata uma China ditatorial e opressiva sem, ao mesmo tempo, deixar de apontar o dedo do meio ao resto do mundo. Um alto-funcionário falou com um amigo dele para que transmitisse uma mensagem: “Diz-lhe para parar de fazer todas aquelas coisas que agradam aos estrangeiros, mas magoam os sentimentos do povo chinês”.
Depois do colapso do mercado e da tomada de posse de Obama como presidente, os políticos ocidentais que visitavam a China, ansiosos por conseguiram ajuda para resolver a crise financeira, evitavam manifestamente qualquer tema sensível. Os direitos humanos eram menosprezados nos interesses da globalização e do crescimento económico, confirmando que, no Oriente ou no Ocidente, é o dinheiro que fala.
“O Ocidente tem a obrigação de reafirmar a inviolabilidade dos direitos humanos, pois, se isso não acontecer a sua conduta equivale a uma exploração neocolonialista das nações em vias de desenvolvimento” (p. 356)
“Naquela altura, inúmeras galerias estrangeiras tentavam entrar na China, ansiosas para servirem outro prato no grande banquete da globalização. Poucos dias depois de me fazerem desaparecer, em Abril de 2011, uma popular exposição sino-alemã foi inaugurada no Museu Nacional na China, na Praça Tiananmen. Dizem que é o maior museu do mundo, mas as salas estiveram quase sempre vazias durante a exposição.
Não podemos deixar de nos interrogar porque insistem estas organizações em viajar para tão longe para serem humilhadas. De uma forma perversa, a ditadura da China foi a parceira perfeita do mundo livre, fazendo coisas que o Ocidente não pode fazer, e a humilhação ocasional é considerada um preço aceitável a pagar se permitir a glória e prosperidade continuadas do parceiro ocidental. Lamentavelmente, a liberdade de que os ocidentais tanto gostam, perde o significado se o Ocidente não lutar pela liberdade noutros lugares.” (p. 426)
É em 2011 que a sua atividade, tanto no Twitter como no seu correspondente chinês Weibo, chamam a atenção do regime a um ponto impossível de ignorar. Depois de terem em janeiro demolido o estúdio de Ai Weiwei em Shanghai, mais de uma centena de pessoas tinham sido detidas por motivos políticos, incluindo académicos, advogados e estudantes universitários. Foi quando Ai Weiwei tentava apanhar o seu voo para Berlim que a sua viagem foi subitamente intercetada. Ele e quem o acompanhava foram identificados. Mesmo que não tivesse planos de deixar definitivamente o país, a sua viagem foi travada. “Na minha mente, era o estranho regime da China que precisava de se levantar e sair”. (p. 359)
“Quando um Estado restringe os movimentos de um cidadão, significa que se tornou numa prisão (…) Nunca amem uma pessoa ou um país que não têm a liberdade de deixar”. (p.351)
O relato da sua vida em encarceramento contribui para a formação de uma imagem dadaísta na mente do leitor.
“Quando me levantava, dirigia-me ao chefe de equipa e pedia-lhe para lavar a cara. Enfiava-me na casa de banho com os guardas, um à frente e outro atrás, e pedia autorização para urinar (…) Um de cada lado, os guardas também avançavam com os olhos pregados a mim enquanto a escova de dentes se movia dentro da minha boca”. (p. 387)
O movimento do jasmim ou a Primavera Árabe enquanto empolgante revolução online conduziu a uma fragmentação da sociedade, com duradouras repercussões e um retrocesso para o ressentimento, o conflito e o desespero - o padrão típico sempre que havia agitação. O ativismo online que outrora marcava a vida de Ai Weiwei, começava a desiludi-lo.
“Um dia depois de ser detido no aeroporto de Pequim, foi o dia do festival Qingming (festival de homenagem aos mortos). Xiaowei, um homem honesto e de confiança que fazia biscates no estúdio há muitos anos, tinha ido à casa da sua família em Anhui para prestar homenagem à campa do pai. Enquanto voltava pela regirão rural, viu um carro da polícia a bloquear a estrada. Queriam fazer-lhe perguntas sobre a minha empresa, FAKE.
Depois de três horas de contra-interrogatório, os polícias perguntaram-lhe: “Sabes alguma coisa sobre Jasmim?” Ao ouvir por fim uma palavra conhecida, depois de tantas perguntas sem sentido, Xiaowei acenou a cabeça como um cavalo e disse com confiança: “Sim, sei”.
Os polícias ficaram alerta e observaram-no atentamente quando ele continuou “A flor do jasmim é muito fragrante e é nativa do Sul da China” (Pág. 404)
Os esforços que fazemos, os reveses que encontramos, afirma Weiwei, são o preço que pagamos por viver.
“Tropeço nas partes que nunca me pertenceram, como uma aranha que não consegue fazer boa teia e cujos esforços só destroem os fios que já teceu”.
Até porque sem o som das vozes humanas, sem calor e cor nas nossas vidas, sem olhares atentos, a Terra não passa de uma rocha inanimada suspensa no espaço. Voltei de Pequim em 2020 e desde então não consigo regressar ao país. Como Ai Weiwei, estou presa fora da China. O motivo que a mim concerne não é de ordem política, apenas uma resposta à crise sanitária. Ao fim de 16 anos de dedicação ao estudo do mandarim, compreendo a maioria dos carateres chineses. Contudo, ainda não compreendo completamente a China. Mas para mim, compreender a China, é compreender o mundo.