Ambiente e paz: a luta toda
De acordo com o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, o termo “luta” enuncia vários significados:
1. Combate corpo a corpo.
2. Briga, disputa entre pessoas ou grupos.
3. Duelo, combate.
4. Conflito armado. = BATALHA, CONFRONTO, GUERRA
5. Disputa, controvérsia.
6. Esforço ou trabalho para atingir algo.
Existe a luta enquanto guerra e a luta enquanto esforço ou trabalho para atingir algo. Por estes dias, na Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (COP26), cimeira dos dirigentes mundiais em Glasgow, luta-se pela aceleração do abandono progressivo dos subsídios para o carvão e os combustíveis fósseis. As ausências nesta Conferência falam mais alto do que as presenças, como no caso do Presidente chinês Xi Jinping. Contudo, quando falamos destas lutas específicas em prol de um problema global, não consigo deixar de pensar que não basta reproduzir a lógica tokenista, aplicarem-se símbolos às lutas e não se olhar para o problema na sua intrínseca existência sistémica. E que existência é essa, perguntam-se os caros leitores. Vamos por partes. Não podemos negar que o sistema vigente se baseia no neo-liberalismo económico. Porque é relevante falar de política económica quando se fala de proteger o ambiente? Porque tudo é ideologia, já todos ouvimos o mediático filósofo Slavoj Žižek. Vamos manter Žižek em mente. Querendo pensar de modo global, afasto a minha lupa como uma criança que, simplificando a visão do mundo, nos transporta para as questões essenciais que, por vezes, deixamos de ter presentes. O mundo depende em larga medida da eventualidade de um confronto ou da possibilidade da manutenção da paz. Paz! Esta palavra! Pouco em voga depois de Schopenhauer que tanto fez para glamorizar o pessimismo, a inevitabilidade do conflito. A paz pessimista, agregada à teoria realista das Relações Internacionais, é a paz episódica. A paz que só é paz para o vencedor. A paz que é neste sentido uma expressão de poder.
Os realistas, desde Tucídides, aperceberam-se do perigo que representam estados em rápido crescimento económico em momento de declínio de estados protagonistas, onde um estado aspira ao status de hegemónico e outro pretende mantê-lo. A própria obtenção de prestígio durante as maiores guerras esteve sempre relacionada com destrutivos conflitos armados.
Se, por um lado, o tratado de Vestefália conferiu aos estados um papel central e soberano na compreensão das relações internacionais, por outro, os estudos da paz colocam em causa esse consenso da elaboração do terreno pacífico como aquele que apenas é intrínseco ao sistema estatal. Refiro-me a “consenso” porque essa definição é transversal às duas principais correntes da tradição moderna das Relações Internacionais: o realismo e o liberalismo. Estas duas escolas de pensamento continuam a oferecer perspetivas acerca do comportamento dos estados e respetivas consequências na manutenção da paz.
Por um lado, os liberais advogam a liberdade individual, acreditando na conceção rousseana de que os homens são bons por natureza. O foco principal reside assim no individualismo, nos direitos humanos, na universalidade, no desapego à autoridade, no tratamento igualitário perante a lei e na liberdade pela ação social. Mantém um elevado nível de otimismo e confiança. Intimamente relacionada com a teoria liberal encontra-se a teoria da paz democrática e a crença nas democracias representativas. Várias teorias liberais apontam ainda para a relação da paz com o crescimento económico e defendem vincadamente a liberdade para a ação económica independente de qualquer interferência do estado. A paz liberal reclama para si o estatuto de ideal platónico que dá a forma a um imperativo kantiano.
O continuum de pazes e violências deve assim ser gerido de forma a evitar o confronto, ou seja, a guerra. Um dos grandes desafios dos teóricos, realistas, liberais ou neo-neo é o de tentar decifrar no tecido heterogéneo da história padrões explicativos das causas de conduzem à guerra.
Foi com base nesta definição de paz que os liberais da economia, nos venderam (como tão bem sabem fazer) a ideia de que é, precisamente, nesta relação de interdependência económica que o mundo, iria, finalmente, viver em paz.
A organização do comércio internacional (WTO) apresenta vários argumentos que fundamentam o facto de que o comércio entre estados soberanos conduz à paz, nomeadamente defende que os comerciantes têm menos tendência para gerar conflitos com os seus clientes (World Trade Organization, 2003: 2); o segundo argumento é o de que as disputas são tratadas de forma construtiva nos procedimentos das instituições e organizações. Os adeptos da paz liberal argumentam que a interdependência reduz o conflito porque o conflito reduz as trocas comerciais. Interdependência económica promove a paz porque o conflito é inconsistente com laços económicos que promovam o benefício mútuo desde que cada estado recorra às suas “vantagens comparativas”. Onde dantes tínhamos unidades políticas, temos agora unidades económicas. A partir dos anos 80 esta passa a ser uma malha de relações bilaterais, sendo assim a globalização a perda desta referência nacional.
Não é de admirar o entusiasmo humano em relação àquilo que Marshall McLuhan cunhou de “aldeia global”. Afinal, o entendimento intercultural possibilitado pelos avanços tecnológicos é, indiscutivelmente, uma mais-valia. É compreensível o olhar otimista para a globalização. Uma globalização de valores que promove tolerância, facilita a compreensão do outro. Mas não é aceitável uma globalização que faça da ausência de fronteiras pretexto para a criação de selvas. O desregramento não é ideologia, é o seu contrário. A China, mais do que ninguém, devia sabê-lo por questões históricas.
O papel da China no sistema internacional começou a ser mais proeminente desde que o país se viu forçado a quebrar as políticas de enclausuramento, características da sua “Visão Imperial”. Quando a Dinastia Qing é subitamente avassalada pelas forças britânicas, cansadas do balanço económico desequilibrado a favor da China, decidem provocar a Guerra do Ópio (1839 - 1842). O Império Britânico apregoava que só recorrendo a uma paz de cunho económico liberal se poderia manter a paz mundial. Para os britânicos, o cumprimento das legislações do comércio internacional por parte da China era necessário por uma questão de ordem e paz mundial. A ideia assentava numa percepção do desenvolvimento de um estado que tinha necessariamente que integrar uma economia global. A Grã-Bretanha era clara na propaganda que distribuía junto da opinião pública – a introdução do ópio como forma de degradar a sociedade chinesa até que esta apresentasse a resistência necessária de forma a justificar a declaração de guerra era um método defendido pelo entusiasta da Guerra do Ópio William Jardine, presidente da Medical Missionary Society e um franco adepto da superioridade moral britânica para disseminar modelos supostamente avançados. “Freedom of expression at the service of free trade.” Com a balança comercial desequilibrada face ao desinteresse chinês pelas manufaturas britânicas, a insistência na importação sem restrições de ópio para a China foi a solução encontrada por estes para conquistarem finalmente o mercado chinês. O ópio foi introduzido de forma ilícita e com o propósito claro de viciar a população chinesa no único produto que poderia apresentar lucros para a Grã-Bretanha.
A guerra anglo-chinesa foi apresentada pelo governo britânico como um processo necessário em que os fins justificavam os meios. Apesar do universalmente reconhecido fracasso ético e moral da disseminação ilícita de um narcótico com vista à abertura forçada de um estado às legislações do comércio internacional, o pedido de desculpas oficiais pelo Reino Unido nunca foi formalizado, nem mesmo aquando da recuperação da soberania de Hong Kong pela República Popular da China em 1998. A imposição de uma única ordem mundial do comércio pode apresentar vários argumentos para a condução de um mundo mais pacífico mas se esse pacifismo é implementado por uma coação nunca nos poderemos alienar do paradoxo conceptual óbvio que constitui a imposição da paz pela guerra.
Mais do que demonstrar que o liberalismo económico não é solução para a paz, este episódio lança-nos para o tema de abertura desta reflexão. Se a paz se torna inalcançável através da ideologia capitalista vigente, a preservação do ambiente também.
O sistema é, na sua essência, um compressor impulsionado pela energia concentrada de indivíduos e pequenos grupos assentes em interesses próprios, controlados apenas pela sua mútua competição. O impulso de criar na forma como podemos usar a natureza para nos servir e o de destruir na capacidade que a natureza tem de responder às exigências humanas. São dois impulsos contraditórios e incompatíveis. Tenta-se resolver o problema no ajuste da capacidade da natureza, mas o ajuste tem de vir do outro, o do domínio do homem. O capitalismo teve séculos para nos convencer que o seu impulso criativo era uma força benigna e que a sua destruição se poderia conter. O paradigma económico que nos rege não funciona. A única solução prende-se com a redistribuição do poder económico, para que seja detido por todos, assim como o poder político é detido por todos numa democracia saudável. Atiramos as questões económicas para a sua base, queremos que a economia se pergunte “Quem possui os recursos e quem tem o poder?”.
Está na altura de fazer a luta toda, não uma luta parcial, que ignora o seu enquadramento ideológico. Uma luta toda, é essa a grande proposta!