A cidade na cabeça dos seus criadores
Ruy Castro, escritor. Lia Rodrigues, coreógrafa. Raul Mourão e Ernesto Neto, artistas plásticos. Enrique Diaz, encenador. BNegão, músico. O que o Rio de Janeiro é, e pode vir a ser, são todas as cidades que eles têm na cabeça.
Será a grande cidade do século XXI? Vai acabar num grande McDonald”s? Estava decadente e renascerá? Mudará por dentro ou só na fachada? E será que precisa de mudar? Na fé e na dúvida, o que se segue é o debate amoroso de seis criadores brasileiros com a cidade onde vivem, a propósito do que deve e não deve ser diferente no Rio de Janeiro, a três anos do Mundial de Futebol e a cinco das olimpíadas.
Para começar, Ruy Castro, 63 anos. Os leitores podem encontrá-lo num livro publicado pela Cotovia, Rio de Janeiro. Mas no Brasil há muito mais livros cariocas pela sua mão, da bossa nova ao Flamengo, de Garrincha a Nelson Rodrigues. Ruy Castro é um cronista da cidade.E não está zangado.
Se lhe perguntarmos - por escrito, a seu pedido - qual o estado de espírito face às mudanças que se anunciam, a resposta será: “O melhor possível.” E a explicação é esta: “O Rio tem levado os últimos 50 anos sendo roubado, perseguido e, de modo geral, passado para trás por Brasília. Nunca recebeu as devidas compensações quando deixou de ser a capital federal (função que, com diversos nomes, exerceu por quase 300 anos). Veja o que aconteceu com Bona, por exemplo - foi capital por cerca de 30 anos e, quando esta voltou a ser Berlim, está recebendo benefícios até hoje. O Rio, não, foi só espoliado. E tudo que era federal e não pôde ser transportado para Brasília foi simplesmente abandonado pelo poder federal: a Universidade Federal do Rio de Janeiro, o Colégio Pedro II, inúmeros hospitais (até então referências mundiais), a Biblioteca Nacional, o Observatório Nacional, o Parque Nacional da Tijuca, até o Cristo Redentor!”
Houve motivações políticas nisto, aponta Ruy Castro: “Os ditadores militares (1964-1985) nunca se conformaram com que o Rio fosse o principal reduto da oposição no Brasil e, por isso, tentaram esvaziá-lo de toda a forma, política e economicamente. Uma maneira de fazer isto se deu em 1975, quando o ditador Ernesto Geisel (1974-1978) promoveu a fusão do rico estado da Guanabara (a cidade do Rio de Janeiro) com o pobre estado do Rio sem consultar as populações carioca e fluminense. Mas, a provar que o Rio é mesmo abençoado, apenas dois anos depois descobriu-se petróleo no estado do Rio!”
O que acabou por beneficiar… os paulistas: “Uma manobra marota do então deputado José Serra por São Paulo fez com que, na única excepção imposta na Constituição, o petróleo pagasse impostos no consumo, não na produção - todos os outros produtos brasileiros beneficiam o produtor, não o consumidor -, e, com isso, o petróleo do Rio passou a financiar a prosperidade de São Paulo, onde há o maior consumo. Com tudo isso, é fácil perceber como o actual surto de realizações no Rio (e sua nova afinidade com Brasília) é motivo de euforia para todo mundo aqui.”
Há o risco do “excesso repentino de dinheiro ser usado para projectos menos importantes ou até nocivos”, mas, se tudo der certo, crê Ruy Castro, será a hora do Rio. “Já está sendo. Nesse ponto não é diferente do Brasil. Aqui reagimos por espasmos, por euforias súbitas, somos ciclotímicos. Da mesma forma, podemos cair em depressão súbita. Mas muitas medidas que serão ou estão sendo tomadas - a pacificação dos morros, a revitalização da zona portuária, o porto de Sepetiba, a volta de muitas indústrias, o influxo turístico - deverão ter alcance pelos muitos anos a seguir.”
Resultando em quê? “Na cidade que - o carioca sabe, mas fora daqui quase ninguém acredita - é o melhor lugar do mundo para viver.”
Em qualquer outro lugar do mundo, o melhor crítico é sempre local. No Rio, não: carioca ama ser carioca.
Favela é cidade
Agora liguemo-nos via Skype à mais internacional coreógrafa brasileira, Lia Rodrigues, 55 anos, que calha estar na Holanda. Por correr o mundo não deixa de ter os pés fincados no Rio de Janeiro, onde há 30 anos escolheu morar, sendo paulista. E morando no Jardim Botânico, em plena Zona Sul, fincou os pés na Maré, uma das maiores favelas da Zona Norte, onde desenvolve um projecto com a organização não governamental REDES.
“Não separo a favela da cidade”, diz Lia. “E isso é essencial: quando a gente consegue enxergar a favela como parte do todo. Quem mora lá tem todos os direitos, inclusive de decidir o que fazer com o seu próprio bairro. E eles sabem o quê. Pensa-se sempre na favela como o lugar da falta, mas é um lugar rico, de pessoas, de projectos. A REDES mudou o meu jeito de olhar para a cidade.”
Que sejam precisos os Jogos Olímpicos para mudar o Rio parece-lhe “um pensamento do lado avesso”, mas espera que “esses eventos possam mudar a forma de pensar a cidade, que é complexa, com muitas diferenças”. Durante anos, parte do Rio “esteve abandonada pelo poder público” e agora “não se trata apenas de pacificar, há que entrar com todas as garantias que um cidadão deve ter”.
As UPP - Unidades de Polícia Pacificadora, que gradualmente estão a ocupar os morros, levando à saída do tráfico - “são uma estratégia necessária”, mas apenas “um primeiro passo”. “Não pode ficar por aí. Tem de haver uma mudança radical dentro da própria polícia, porque a corrupção é uma doença que afecta tudo. No Brasil, é uma doença que atinge quase todos os estratos da política. Não adianta ter uma pacificação e mudar de uma facção do tráfico para a milícia.”
O centro do mundo
O Rio na cabeça do artista plástico Raul Mourão, 43 anos, será “bárbaro”. Fim de tarde no velho Bairro da Lapa. Há dez anos que Raul e amigos partilham um prédio dividido em ateliers. “A Lapa estava voltando a ser ocupada”, diz ele, que já lá ia antes. “O meu pai me levava no [restaurante] Nova Capela, no Bar Brasil, em frente havia a boîte de striptease Novo México, o botequim Arco-Íris… Era um deserto de gente, escuro. E o Circo Voador [um espaço cultural] que ficou fechado anos por causa de uma briga política! Quando o Circo reabriu [em 2002], coincidiu com o regresso da Lapa.” Que fora coração da boémia nos anos 30, tempo de Madame Satã, gangster reconvertido em drag queen, entre chulos, prostitutas e compositores de samba.
A entrada do prédio está cheia de barras de ferro, o material que Raul tem usado para as esculturas a que chama “cinéticas”, duas ou mais peças em equilíbrio instável. “O espectador é que bota ela em movimento”, mostra, empurrando uma suavemente.
Mas também se vêem vestígios de uma série anterior, inspirada pela obsessão com a segurança no Rio: grades de janelas. “Era um comentário sobre o medo, a paranóia. Tinha uma conotação política.”
Carioquíssimo - cresceu em Laranjeiras e no Flamengo, viveu em Copacabana, Ipanema, Humaitá, Santa Teresa, Urca e agora no Baixo Gávea -, Raul transita pela cidade como pelos materiais, com “liberdade”. “Para o bem e para o mal haverá mudanças, é indiscutível. Podem ser grandes e belas, ou pequenas. Parece-me que serão grandes e belas.” Contrariando uma decadência? “A decadência é a mais pura verdade. Principalmente por maus governantes. O Rio perdeu a capital, teve uma crise de identidade, e, depois da abertura democrática, má gestão, conflito de interesses, o estado brigando com o município, a falta de um projecto. Com a posse do Sérgio Cabral [actual governador do estado] e do Eduardo Paes [actual prefeito], ambos com contacto fácil com o Lula, isso começou a mudar. Esse grupo conquistou as olimpíadas.”
Deixando para trás a queda face a São Paulo. “Há 30 anos, São Paulo era uma cidade caipira [provinciana]. Quando entra em ascendência, o Rio começa a descer uma ladeira vertiginosa, população crescendo em zonas de protecção ambiental, transporte público informal na mão de mafiosos, degradação dos serviços… Para comprar material do atelier, compro em São Paulo!”
Onde tudo parece disponível, e mais barato.
“Mas no meio desse caos, tem o Carnaval, que é uma experiência deslumbrante, tem uma grande qualidade de vida, uma vitalidade que compensa. Há decadência e há uma potência. Duas forças que eu espero que se encontrem agora.”
O momento político e económico é favorável e o entusiasmo de Raul levanta voo. “Tem uma sintonia de poderes [municipais, estatais, federais]. Tem um bilionário como o Eike Baptista [o homem mais rico do Brasil], que mora aqui e tem projectos na cidade, como a limpeza da Lagoa, a recuperação do Hotel Glória e da Marina, uma escola de Gastronomia…”
Há os projectos de museus. Raul cita o Museu da Imagem e do Som, o Museu de Arte do Rio e o Museu do Amanhã, todos eles com a Fundação Roberto Marinho por trás, e previstos para 2012.
Há o projecto da Casa Daros. “É uma fundação privada suíça, que tem a maior colecção de arte latino-americana fora da América Latina. Eles querem uma cidade aqui e escolheram o Rio, compraram um palacete em Botafogo. Então vamos ter um novo espaço de arte a sério, com orçamento e residências.”
Se a isto se juntar a Cidade da Música, ambicioso edifício abandonado na Barra da Tijuca, “a cidade terá cinco novos espaços culturais”, destaca Raul. “Imagina cinco novos espaços em Lisboa! Agora soma isso ao que Eike quer fazer, às reformas da olimpíada, às coisas da Copa [de Futebol]… E a Faculdade de Arquitectura de Columbia quer abrir um escritório aqui…”
As obras da Cidade da Música inacabadas na anterior gestão municipal custaram “mais de meio bilhão de reais”, disse ao P2 Victor de Martino, assessor da prefeitura do Rio. A actual gestão garante que vai acabá-las em breve: “O arquitecto francês Christian de Portzamparc veio ao Rio para definir os detalhes finais com o secretário de Cultura, Emilio Kalil, que disse que as obras estarão concluídas em Julho.”
A prefeitura também vai pagar um quinto da primeira feira de arte contemporânea, a ArtRio. Confirmada para entre 7 e 11 de Setembro, nos armazéns do porto, contará com um milhão de reais municipais (430 mil euros) e cinco milhões privados (2,15 milhões de euros), e das 77 inscrições 28 vêm de outros países, incluindo Portugal.
Voltemos à Lapa. Raul recosta-se e acautela: “A mudança pode ser desastrosa, se ficar na mão errada, dos tecnocratas. A cultura tem de ter um papel estratégico na construção da nova cidade. Os políticos andam de carro blindado pedindo para abrir o trânsito, mas quem vive a cidade somos nós, e o Rio tem uma história de arte fantástica, na música, no cinema, na literatura, nas artes plásticas. A criação não sofreu essa decadência, é fantástica, de deixar você embasbacado!”
Todos os dias tem exemplos. “Ainda ontem eu estava numa laje da Praça Tiradentes [centro histórico] ao entardecer, e tinha uma dupla nova de música pop. O centro estava muito abandonado, e ainda está. Mas agora num condomínio da Lapa [perto do centro] em três dias venderam 700 apartamentos!”
Ao contrário de outras cidades, diz Raul, o Rio pode crescer em bairros tradicionais. “Na zona portuária, São Cristóvão, Gamboa, Santo Cristo e Saúde. A própria Lapa. O Estácio [entre o centro e o Maracanã]… São Paulo pode melhorar, mas não pode mudar de cara. O Rio pode. Pode ficar cafona [piroso], demasiado para turistas, tem sempre esse risco, e perder identidade. Mas o meu lado optimista acha que vai ser bárbaro.”
E aí vai o carioquíssimo, descolando, numa corte à cidade: “O Rio é mulher, completamente. Mulher linda, maravilhosa, tem de cuidar direitinho…”
Mas quando aterra, olha em volta, acautela de novo: “Uma coisa é eu fazer estas peças, outra é elas irem parar a museus. Isto é arte, mas não é cultura.” Ou seja, enquanto estiver aqui não está acessível aos outros. “Temos uma produção poderosa reconhecida, samba, DJ, escritores. Mas a cultura não chega na casa das pessoas, não é um bem, não é património. Com o que produz, o Brasil podia ser a capital cultural do planeta!”
O que há de origem é imenso: “Aqui se inventou o samba, o chorinho, a bossa nova. Buenos Aires só inventou o tango, Lisboa só inventou o fado… O Museu da Imagem e do Som vai ter essa dimensão importantíssima, devolver a cara da cidade.”
A cultura é que pode “redefinir a identidade do Rio”, ser “o garante de que o Rio seja o que é”, acha Raul. “Amovida de Madrid mudou a cidade tanto ou mais que a olimpíada de Barcelona.”
Portanto: boa conjugação política, um bilionário, museus, bairros para recuperar, e talvez “o mais importante: uma produção artística oprimida”, no sentido de não ter explodido em todas as direcções possíveis, alcançando a gente. “Uma consequência da decadência é que as pessoas ficaram nos condomínios sem usar a cidade, ver o sol, ver a lua, ir na Lapa.” Então, “existe uma poderosa cena artística pronta para desabrochar” e “o poder público tem de apoiá-la como nunca antes”, por exemplo, financiando ingressos. “Vamos encher os teatros, consumir cultura para valer. A cultura é uma economia também.” Mas a grande mudança só vai acontecer se os artistas entenderem que está em curso. “Têm de se falar loucamente, levar o trabalho para outra escala, dar-lhe uma potência nova.”
Chinelo no pé
Existem umas festas no Rio que são “as festas do Ernesto Neto”. Um forasteiro pode não ter visto a exposição dele na Tate, ou mesmo nunca ter ouvido falar dele, mas vai ouvir falar dele mal pisa no Rio.
Lá fora, é um dos mais bem sucedidos artistas contemporâneos brasileiros. Para muita gente aqui, é esse cara de calção e chinelo, a beber “chopp” com a mulher e amigos (um alemão, dois dinamarqueses, uma mineira, e vão acabar todos convidados para casa dele), mais as crianças correndo ao redor.
Estamos no Leme, pequeno bairro na ponta norte da baía de Copacabana, na esplanada do mais célebre restaurante local, o Fiorentina, que serve quase de terraço lá de casa, porque Neto mora mesmo aqui por trás.
Se Raul é carioquíssimo, mas tem cara de podia-ser-europeu, Neto, 46 anos, é um todo, fala, cara e caracóis transpirados: o carioca.
A ideia não é falar das suas grandes esculturas-instalações orgânicas, sensoriais, que fazem do espectador um agente. Mas há certamente Rio de Janeiro nisso: corpos em praça pública, experiência de texturas e temperaturas.
Por exemplo, o chão de algodão de uma delas, montado no estrangeiro. Quando Neto voltou ao Rio, pisou na praia e percebeu: “Aquilo não era mais do que a praia, um lugar onde as pessoas se encontram.”
Esta é a parada dele: “Criar um ambiente para que as pessoas se encontrem.” As festas vêm daí, na verdade desde criança. Muita festa em casa, pai amigo dos sambistas da Portela. “Sempre gostei de farra e sempre fui muito gregário.” Então calha que um dia ia passando com dois amigos por um churrasco entre o calçadão e as barracas, no Posto 9 de Ipanema. Quiseram barrá-los e eles começaram a cantar Martinho da Vila. Neto mostra como, cantando: “Esse churrasco é particular… / Esse churrasco é particular…” Rio e particular não liga bem. “Depois da gente cantar muito deixaram a gente entrar.”
E aí, com amigos, surgiu a ideia de fazer um churrasco no Posto 9, depois do poente, para não incomodar. Ao todo, só num Verão, acabaram por ser dez churrascos. Era 1998. “Começou essa coisa gregária.” Entrou coluna de som, virou festa, vieram aniversários e réveillons. “Desde o princípio que a gente pensou que não queria fechar o churrasco, porque a praia é pública. Aí, quando botámos o som, já havia uma multidão em volta. Eles sabiam que a festa era de alguém. As pessoas normalmente não querem os penetras, mas nós queremos atrair outras pessoas. Essa coisa pública do Rio, onde as pessoas se misturam sem saber quem é quem.”
Até certo ponto. Porque, como admite Neto, “claro que a praia está toda dividida”, cada posto com as suas tribos, ao ponto do Posto 9 ter hoje várias subdivisões: a galera do PT, a galera jovem, a galera pop… No caso de uma festa, a fronteira natural é a música. Como Neto e os amigos não passam funk, provavelmente também não vão atrair “funkeiros”. O problema é que atraíram “marketeiros”: há uns anos a prefeitura resolveu fazer a sua própria festa no Posto 9, cheia de patrocínios, e com música de bate-estaca, ou seja, tecno. Então Neto e os amigos mudaram para o Arpoador, a ponta entre Ipanema e Copacabana que tem o melhor pôr do sol da Zona Sul. Aí estão, o último réveillon foi lá.
“A festa da prefeitura deu errado, porque eles só pensaram em marketing”, resume Neto. “O que pode destruir o Rio de Janeiro é o marketing, porque marketeiro não pensa na felicidade humana, visa o lucro. E existe uma vontade de higienização que é uma vontade de ocidentalização.”
O que este carioca tem descoberto é “que é maravilhoso não ser ocidental”, e o Brasil tem de entender isso. “A gente não vai conseguir instalar um sistema político aqui, se quiser ser como o Ocidente, porque a gente é misturada. Acho que o Lula jamais achou que era ocidental e isso fez muito bem para o Brasil. O brasileiro culto tem vontade de ser ocidental, mas quando vai à Europa acha aquilo um saco.”
Então o Brasil tem de parar de querer ser o que não é: “A gente não estuda o índio, o negro, e isso é uma estupidez, está dentro da gente!” Tal como a separação entre arte e público aqui é fisicamente menor, acha Neto. “Num show tem altar e plateia, mas no samba as pessoas dançam em volta.” Tal como na praia “a festa acontece em torno dela, porque não tem paredes”.
No Renascimento, o Ocidente racionalizou o mundo, separando países, lembra Neto, e a ciência começou a classificar. “Então o que é ser ocidental? Separar uma coisa da outra, a regra, os apartamentos, uma hora. Claro que isso é extremamente produtivo. Claro que o Ocidente é fundamental, não significa que não faça parte da gente, mas temos outros temperos.”
São esses temperos que Neto teme que acabem com a política chamada Choque de Ordem na praia ou o receio do coco aberto à machadinha. “Aqui em frente [aponta o quiosque] você não toma coco na machadinha. Eles abrem um furo, e você não vê a água de coco e não tem a dança do cara abrindo o coco! Então na hora que você empacotar o coco, entra a Coca-Cola e a Nestlé!”
Se “a corrupção desaparecer, as mudanças podem ser boas”, admite. “Mas se forem feitas com a prefeitura dirigindo, corremos o sério risco de virar um McDonalds.” A não-aposta municipal na cultura até agora é um sintoma. Neto espera para ver se esta tendência será invertida pela recente nomeação para a Secretaria de Cultura de Emilio Kalil, que chega da Bienal de São Paulo com um forte currículo. “É uma entrada legal, mas será que ele vai poder fazer algo? Acho que a prefeitura não compreendeu a importância cultural do Rio de Janeiro. O que gera riqueza é a cultura.”
A arte da rua
Filho de paraguaio e paulista, nascido no Peru, o encenador Enrique Diaz, 43 anos, viveu quase sempre no Rio, onde hoje dirige a Cia dos Atores. E isso significou viver na pele a queda da cidade.
“Você só fazia porque queria fazer, nada te ajudava a vencer a adversidade”, diz ele, na sua casa das Laranjeiras, num daqueles fins-de-tarde-com-dilúvio. “Havia uma decadência no sentido em que era uma cidade muito turística, mediática de um jeito meio bobo. Tudo era turismo, mercado, mass media. Mas a cultura era muito rica, e isso é que era louco. A sensação de que as coisas se interrompiam por falta de relação com o público, com a universidade, com os media. Parecia que a cidade estava fadada para um pensamento tacanho, mas riquíssimo de ritmos, histórias, olhares. Tanto que sempre adorei morar no Rio, sempre fui muito feliz aqui.”
No Rio há mundos que não convivem, e, no entanto, o que parecia imutável talvez não seja, crê Enrique. “É bom ser céptico, mas é muito difícil você não pensar: “Nossa, tem alguma coisa mudando…”” Por exemplo, as UPP nas favelas. “Quando começou essa ocupação, eu perguntava: “Que acordo é esse? É para durar até às eleições, à Copa, à olimpíada?” Porque parecia impossível.”
Se agora não parece, isso “deve-se muito ao Governo Lula”, acredita Enrique. “Há uma auto-estima da classe trabalhadora. E essa é uma mudança muito saborosa, um olhar interessante. É o começo de uma nova conversa.”
Não o preocupa se o Rio será a grande capital. “O Brasil é muito mais complexo que o Rio. Minha família é PT, Teologia da Libertação, e ver o Brasil de agora é uma diferença tão grande que a gente começa a ter uma felicidade diferente. Isso do Rio ser sempre um glamour, acho uma bobagem. Mas começo a sentir a mudança de retina.”
Que também passa por um embrião de comunidade batalhando: “São Paulo criou a Lei do Fomento [fundamental no apoio às artes] com uma campanha. No Rio isso é inimaginável. Mas existe cada vez mais uma irrigação nova entre criadores e produtores.”
Talvez a melhor defesa contra uma “institucionalização” ou “apossamento” por parte dos poderes municipais. Enrique acha o prefeito Eduardo Paes “meio Barra Tijuca” (a faixa de prédios, shoppings e novos-ricos, na parte ocidental do Rio). A ideia de proibir o coco cortado a golpes de machadinha é só um exemplo. “Claro que tem de ter obra e limpeza, mas até onde é que o estado auxilia a inteligência e até onde é que se apossa da cidade, e ela vai sendo loteada? O dilema agora é esse: o pessoal que fez a cidade ter de pagar ingresso para a própria cidade.”
Exemplo do que o Rio voltou a ser, e ainda bem: carnaval de rua. “Qualquer lugar cria bloco, você vai e se diverte. É uma mudança enorme ter uma cidade que se diverte por oposição a uma cidade que consome. E vejo muito mais artistas a quererem trabalhar com a rua.”
Nas traseiras
BNegão. A 21 de Abril, lisboetas, podeis vê-lo e ouvi-lo, com DJ Negralha no Clube Ferroviário de Lisboa, mas neste momento ele está em casa, aqui no Rio, a tomar conta dos dois filhos, enquanto tecla no Skype. Sendo protagonista da cena rap e funk brasileira, não deixa de ser “um pai activo”.
O B é de Bernardo, 37 anos, nascido e criado nos altos e baixos de Santa Teresa, bem lá para cima, à beira da favela. Mas parte da sua família é da Baixada Fluminense, e a Baixada é mesmo a traseira de tudo.
Por tudo isto, o Rio de Janeiro que BNegão tem na cabeça é bem diferente do dos artistas que o precedem.
“Quando as UPP foram instaladas em outras comunidades, o meu bairro [Santa Teresa] teve um aumento de mais de 600 por cento no índice de violência.” Agora, “mudou completamente”, porque a UPP também chegou lá. Mas o ponto principal de BNegão é este: “Alguns lugares devem estar um verdadeiro inferno, pois todos [os traficantes que fugiram das favelas ocupadas por UPP] foram para lá. O que se diz é que na Baixada, em São Gonçalo e na Região dos Lagos [subúrbios], o bicho “tá pegando [a situação está grave].”
De que forma? “O pessoal do tráfico recebe os fugitivos, mas não divide os lucros das “bocas” [venda de droga]. Daí, os “visitantes” têm de se virar, assaltando, e fazendo o que mais rolar, nas redondezas de onde estão “acampados”. Então, resolve um lugar, e aumenta o caos do(s) outro(s).”
Nos anos 70 e 80, quando a violência se concentrava na Baixada Fluminense, “ninguém, nenhuma autoridade fazia nada por isso”, lembra Bernardo. “A violência só começou a ser “percebida” pelos meios de comunicação quando chegou à Zona Sul, que por acaso é onde esse pessoal mora, os “formadores de opinião”. Enquanto não os incomodava a eles, nada acontecia. E corremos o risco disso acontecer de forma mais violenta, novamente, agora.” De a violência ficar oculta da Zona Sul, das vias de acesso que vêm do aeroporto internacional e que levam a outros estados, enquanto explode nos fundos, nas traseiras, dominadas por tráfico e milícia.
BNegão não quer dizer com isto que a política das UPP seja de fachada. “Sempre há obras e atitudes de fachada por parte de políticos, é inerente à profissão deles, mas acho que não é o caso das UPP. O que digo é o seguinte: nem 8 nem 80. Nem “tá tudo maravilhoso”, nem “são atitudes de fachada”. O momento agora é para observar.”
O que deve ser feito? “Se vai fazer esse lance de UPP, teria de ser em todas as comunidades, pois a polícia não é uma instituição “do bem”. Tem vários policiais-bandidos na instituição, portanto não é um alívio completo para a população.” Falta “acompanhamento”, das pessoas da comunidade e de fora, “que as denúncias de abuso sejam apuradas e não arquivadas como é o comum”, “que as autoridades tomem providências reais”.
E como vê o diálogo entre os vários mundos separados do Rio? Como “algo próprio do homem”, não especificamente ocidental. “O Ocidente faz isso de forma profissional há vários anos, mas se virmos a cultura hindu, com o regime de castas, as épocas dos impérios no Japão, na China, até hoje a África e suas tribos se matando, enfim…”
Será que o Brasil, e em particular o Rio, pode dar outro exemplo de uma fusão? “Pode e não pode. Mas é errado falar: “O Brasil é um país sem racismo”, porque existe isso também.”
Como seria a cidade na cabeça de BNegão? “Um Rio onde todos possam ir e vir tranquilamente, sem receio nem dos bandidos, nem da polícia. Com cultura para a população, acesso real a escolas públicas de e com qualidade, como eram antigamente. Em que o dinheiro dos impostos volte à população em forma de melhorias, porque o que se vê é a gente pagando impostos absurdos, entre as maiores taxas do mundo, e as pessoas morrendo nas filas de hospitais, sem atendimento, as ruas cheias de buracos, e acidentes por causa disso. Vários pedaços do Rio derrubados naquela última chuva violenta continuam destruídos. Não na Zona Sul, com certeza…”
publicado originalmente no Ipsilon, Público 18/3/2011