A viagem desmedida
fotografias de Daniela Moreau
O encontro
São Paulo: “… rampa de lançamento ou plataforma orbital, onde podem ter origem, confundir-se e anular-se os destinos todos possíveis…” Foi o angolano Ruy Duarte de Carvalho (1941-2010) quem escreveu isto. A frase não começa nem acaba aqui, mas ele gostava de frases a caminho, que já vinham de trás e iam continuar. Gostava de reticências, parêntesis, desvios e voltas, o antigo do novo, o novo do antigo. Era um gourmet.
São Paulo, Vila Madalena. Ruas de casinhas, e, retiradas entre árvores, casas grandes, viradas para um sossego que de vez em quando se quebra. A casa de Daniela, por exemplo, onde um grupo de amigos, incluindo Ruy, ficaram sequestrados na casa de banho durante um assalto.
Nenhum vestígio disso, agora.
Ampla, clara, subtil, a casa tem tecidos antigos de Minas, tapetes do Magrebe, peças de África sem lugares-comuns. O almoço está servido num tampo de vidro sobre pedras brilhantes. É a mesa de todos os dias.
Vindo do outro lado do Atlântico, aqui se sentou pela primeira vez em 2004 Ruy Duarte de Carvalho, relutante e doente.
Depois o Brasil, pela mão de Daniela, trabalhou nele.
A quem me acolheu em São Paulo e me garantiu estabilidade, mobilidade, saúde e companhia para viajar pelos sertões do São Francisco e escrever estas crónicas, lê-se nas páginas iniciais de Desmedida, o livro “brasileiro” de Ruy Duarte que a Cotovia publicou em Portugal em 2006 e agora, quatro anos depois, sai no Brasil, editado pela Língua Geral.
O lançamento aconteceu em Outubro, numa sessão na Bienal de São Paulo em que também foi apresentado o site Buala - Cultura Contemporânea Africana pela jornalista Marta Lança e a curadora Marta Mestre. Marta Lança ajudou a preparar esta edição de Desmedida, fazendo a ponte com o autor. E Daniela Moreau foi a mecenas que tornou possível o site e o livro, através da Casa das Áfricas, centro de pesquisa co-fundado por ela em 2003.
Paulistana-baiana com algo de francesa, descendente de governantes, fazendeiros e artistas, ela mesma historiadora e artesã, 53 anos, aqui está Daniela, à mesa, a falar de Ruy Duarte. “Foi das relações mais complementares que tive. Uma verdadeira parceria, quando você sabe que está fazendo bem para o outro. Amizade total desde o começo. Era muito claro que não íamos ter outro envolvimento afectivo.”
Ela interessara-se por pastores ao viajar em África, e lera Vou Lá Visitar Pastores, obra em que Ruy Duarte está inteiro, poeta e antropólogo, cineasta e ensaísta. “Tentei muito contactar o Ruy na altura, mas não consegui. Passaram-se anos. E, quando se fez a Casa das Áfricas, descobrimos que entre nós o Ruy era uma unanimidade. Então, um dos primeiros projectos foi convidá-lo a fazer uma série de palestras.”
Que hoje podem ser ouvidas no site Casa das Áfricas.
“Todo o mundo falava do tal famoso mau feitio, mas a coisa fluiu muito bem. Tanto que a gente se sentiu confiante para convidá-lo a voltar seis meses com uma bolsa de criação.” E Ruy Duarte acabou por ficar instalado numa casa-atelier onde o músico Arnaldo Antunes, ex-cunhado de Daniela, trabalhara muito tempo.
Não havia “uma contrapartida definida” para a bolsa, explica Daniela, mas “o Ruy tinha muita preocupação de corresponder ao convite”. Cinema? Escrita? “Toda a gente falava na hipótese de um documentário, mas ele só queria falar de poesia. Então combinámos fazer uma parceria com a Cotovia para reunir a poesia dele.” Foi assim que aconteceu a edição do volume Lavra. “Quanto a cinema, o que ele fez nesses seis meses foi reeditar Moia: O Recado das Ilhas.” Um dos vários filmes que Ruy Duarte fizera em Angola e praticamente ninguém vira em Portugal (e agora vão passar no Estoril, ver texto nestas páginas).
O homem que Daniela viu chegar ao Brasil ia dobrar os 65 anos, tinha uma longa obra quase secreta, e isso doía, além das dores físicas e outras. Era um homem em perda. “Ele chega depois de uma separação. Em Angola estava às traças, sem perspectiva, tendo que lidar com dificuldades de toda a ordem, muito sozinho.” Daniela tinha uma vizinha médica. Tentaram cuidar do corpo e do resto, “recuperar o tempo perdido, transformar isso em criação”.
E foram acontecendo coisas.
A virada
Primeiro chegou um convite para uma homenagem na Universidade de Coimbra. Teve surpresa de última hora e tudo: a presença do produtor Paulo Branco. Tinha sido próximo de Ruy Duarte, tinham-se afastado, reconciliaram-se ali.
“Coimbra foi a grande virada, o reconhecimento da dimensão do Ruy”, resume Daniela. Durante a homenagem foi lançado o livro Paisagens Propícias, que depois ganhou o prémio do Festival Correntes d”Escritas. Quando soube da notícia, Ruy correu para Daniela: “Me abraçou e disse: “Apostaste no cavalo certo!” Era a generosidade dele, a preocupação em querer corresponder.”
E António Mega Ferreira, que fizera um belo texto sobre Paisagens Propícias, organizou todo um festival Ruy Duarte no CCB.
Daniela acompanhou Ruy nestas alegrias portuguesas e a cada volta o Brasil entranhava-se na vida dele. “Veio por seis meses e ficou dois anos, saindo de vez em quando. Não se desfez da casa em Luanda, mas a casa dele era aqui.” Já não no tal ex-atelier de Arnaldo Antunes, mas num 11.º andar paulistano de que Ruy fala em Desmedida.
Daniela lembra-se do momento exacto em que surgiu a inspiração para o livro “brasileiro”. Foi durante um jantar na fazenda da sua família onde se faz o café Astro que agora provamos, forte e fumegante.
Aliás, Ruy começa o livro assim, a falar do rio São Francisco “a duas senhoras paulistanas, sentado à mesa delas numa soberba fazenda de café”.
O rio São Francisco, também conhecido por Velho Chico, nasce no interior de Minas Gerais e vai fertilizando os sertões, através do Nordeste. Como Ruy escreveu, “abrange um território do tamanho de metade de Angola onde 80 rios perenes e 27 intermitentes atravessam 504 municípios”. Bandeirantes e bandidos, escritores e aventureiros andaram pelas margens e pelas águas do São Francisco, e isso deu várias literaturas.
O alto São Francisco são as paisagens de Guimarães Rosa, o baixo São Francisco encosta-se às paisagens de Euclides da Cunha. Leitor compulsivo, falava Ruy Duarte do alto e do baixo às tais senhoras. E pergunta a mais velha: “E o médio São Francisco, não? Richard Burton também andou por lá…”
Era um teste, mas olha a quem. “SirRichard Burton,I presume”, respondeu Ruy. Não o actor, não o marido de Elizabeth Taylor, mas Sir Richard Burton das aventuras orientais, das traduções das Mil e Uma Noites e dos Lusíadas, da ida disfarçado a Meca. Ruy Duarte lera muito Burton. Só não sabia que ele também andara pelas paisagens do São Francisco. E mais, que nessas andanças conhecera um parente destas duas senhoras, mãe e filha, e esse parente lhe mostrara uma colecção de pedras.
Então as duas senhoras recolhem-se. E o escritor, que dos 19 aos 25 anos trabalhara “por quase todas as regiões cafeeiras de Angola”, fica num “quintal metafísico”, fumando sob um céu brilhante, a pensar em Rosa e Euclides, no Blaise Cendrars “brasileiro” que já trazia no bolso, e a que agora se junta o Burton (e lá virão Thoreau, Jünger, Edgar Morin, Sérgio Buarque de Holanda…).
Paisagens literárias para confrontar com as físicas (ou, como escreveu a poeta e amiga Ana Paula Tavares num texto sobre Desmedida: “O texto consome os outros textos.”).
Um rio, grandes sertões: veredas, e como tudo isto se liga à identidade múltipla do homem. Ruy Duarte de Carvalho: nascido português e branco em Santarém, Portugal; morto em Swakopmund, Namíbia; angolano por escolha e dedicação - um homem do mundo.
As viagens
As duas senhoras da fazenda não têm nome no livro, mas são Daniela e a mãe, Anna Mariani, 75 anos, fotógrafa, autora de livros sobre os sertões. “Nós dois já tínhamos muita confiança, já éramos amigos nesse tal jantar na fazenda. Mas a minha mãe era um personagem que o Ruy estava conhecendo. Dois cachorros que se conhecem querem-se perceber. Então a minha mãe falou do Burton e olhou para ver se ele sabia do que ela estava falando. Mas claro que o Ruy conhecia o Burton mais que eu ou ela.”
Desse jantar saíram avós e bisavós, que depois no livro também não têm nome, mas são avós e bisavós de Daniela. Ela receou que parecesse estranho a mecenas ter-se transformado em personagem. “Ao mesmo tempo que eu ficava muito honrada por ele ter decidido ficar mais tempo, e escrever um livro a falar na minha família, aquilo me constrangia, era quase um segredo.” Mas as personagens eram tão estupendas que já floresciam na cabeça de Ruy. “Para inventar não dava nem ficava melhor”, diz uma frase de Desmedida. Ele prometeu a Daniela não dar nome à família, que ninguém soubesse.
E começaram então a viajar juntos, três viagens em busca das paisagens físicas que se iriam confrontar com as paisagens literárias.
“Nas três passámos pelo São Francisco. Não houve viagem sem o São Francisco. O Ruy fazia o roteiro e eu só fazia a produção. Ele tinha um mapa onde calculava os quilómetros que a gente ia fazer a cada dia e onde a gente podia dormir. E a produção constava de descobrir voos, reservar pousadas, alugar carro…” Mais guiá-lo.
Daniela fez tudo isso. E fotografou, como se pode ver nestas páginas.
“Na primeira viagem visitámos as paisagens do Guimarães Rosa.” Escreve Ruy Duarte: “Gado, couro, carne, fazendas, vaqueiros, jagunços, é o universo de Guimarães Rosa.” Boizinhos vindos há séculos dos Açores. O alto São Francisco.
Rosa gostaria de ter sido um jacaré numa curva qualquer do São Francisco, lembra Ruy Duarte, que começou a lê-lo em 1965, quando encontrou o Grande Sertão: Veredas numa tabacaria da Gabela, interior do Kwanza-Sul, 5.ª edição.
O Rosa a percorrer os sertões a cavalo, com o seu caderninho ao pescoço, anotando o nome de tudo. E agora Ruy Duarte a percorrer o Rosa, com o seu caderninho, anotando tudo.
Estiveram em Cordisburgo, onde Rosa nasceu e há uma casa-museu; no Parque Grande Sertão: Veredas (entretanto criado); e atravessaram o São Francisco de balsa. “Foi o encontro do Ruy com o rio. Ele ficava olhando, meditando. A travessia leva meia hora, mas é como se a gente chegasse num outro mundo. Do outro lado é sempre estrada de terra, uma região com menos trânsito. Lembro-me dele comentando que não viu miséria. Mesmo nos lugares mais longínquos as cidades estavam limpas, organizadas.”
Dormiram na Chapada Gaúcha, que se chama assim por ter sido zona de migração para gente vinda do Sul. “Visitámos o parque com um guia local que percebia muito de flora e o Ruy sempre tomando notas sem parar num Moleskine. Era muito metódico. Acordava muito cedo, pelas seis, e ficava tomando notas. Encontrávamo-nos à hora a que se começava a servir o café da manhã nas pousadas e ele já tinha acordado há muito.” Quando acabava o asfalto, trocavam de lugar dentro do carro. “Ele gostava de guiar nas estradas de terra. Contava do jipe que guiava em Angola, quando trabalhava nas fazendas de café. Tinha uns truques de como passar os buracos.”
Passaram um Carnaval em Januária “que era quase só a vontade de ter um Caranaval”. Ruy gostou muito.
Esta primeira viagem durou cerca de dez dias e foi “um pouquinho antes” da homenagem em Coimbra, ou seja, antes da virada. “O Ruy estava obcecado. Dizia que queria sumir do mundo, que estava a escolher o lugar onde iria ter uma casa. Várias vezes dizia: “Aqui ninguém vai-me encontrar…” Mas depois veio a semana intensa de Coimbra e a fala dele lá foi muito sobre a viagem que tínhamos feito. Ele via o futuro mais recolhido, mas tudo foi mudando.”
Daniela não se lembra de Ruy levar livros em viagem pelo São Francisco. “Já os tinha lido. Já tinha ido aos sebos [alfarrabistas]. Não me lembro dele lendo, só a escrever e a meditar. Ficava muito quieto, olhando a paisagem. Era normal ficar muito tempo quieto. A viagem era para viver a viagem, com tudo o que acontecia, o que vinha à tona. Ele contava da vida dele, eu da minha. Era longe dos livros.”
A segunda viagem foi no médio São Francisco. “O objectivo era chegar à Barra do Rio Grande, a cidade dos meus antepassados que eu nunca visitara”, conta Daniela. “Minha mãe sempre se queixava que eu nunca tinha querido conhecer o lugar, e nessa viagem ela nos acompanhou. Pegámos um voo até Lençóis, na Chapada Diamantina, alugámos um carro e fomos para a Barra. Atravessámos o São Francisco numa ponte muito grande que ali há. A Barra é onde o rio Grande encontra o São Francisco, e foi onde a gente mais conviveu com o rio. É um lugar onde o transporte fluvial ainda é uma opção muito comum, tem muitos barcos trafegando.”
Estado da Baía. “Devia ser Abril, porque era aniversário do Rui. Aí ele disse: “Aqui ninguém vai-me achar. Mas depois tinha uma mensagem no meu celular da Ana Paula Tavares! Ficámos lá vários dias. Era onde o tal nosso parente terá mostrado uma colecção ao Burton. Então fomos a Santo Inácio, uma região de mineração muito bonita, montanhosa, com muita rocha. Parece quase a Grécia, com estradas muito abandonadas, com muitos bichos. Foi o lugar que mais me impressionou. E a viagem de volta era sempre diferente. São paisagens em que quase não se vê gente. Brotas de Macaúbas… Se eu voltasse, era a esse lugar. Esse seria o roteiro do Burton, do Teodoro Sampaio…”
No livro, o grande protagonista desta parte é mesmo Richard Burton, com saltos ao presente, incluindo o debate sobre a transposição das águas do São Francisco, para o fazer chegar a lugares remotos do Nordeste. Mas na sua centrífuga narrativa, que às vezes parece repérage para um filme, Ruy Duarte ainda convoca cidades submersas, aventuras lidas e sonhadas, ou a história do mulato Teodoro Sampaio, engenheiro que no século XIX comprou a liberdade dos escravos seus irmãos e dá pano para mangas a toda uma reflexão sobre o mulato e a cordialidade que impregna a vida social brasileira. Parte do “património inestimável que é o jeitinho brasileiro”.
Segue-se, no livro, um interregno em Angola.
Depois Ruy volta ao Brasil para a terceira viagem, a do baixo São Francisco, a de Euclides da Cunha e do bandido-herói Lampião, mas também a dos holandeses que dominaram Pernambuco e ambicionaram Angola.
“Fomos de avião para o Recife”, lembra Daniela. “Ele queria ver um pouco as paisagens do João Cabral e toda a presença dos holandeses. A questão da dominação e da produção de açúcar. E fomos a Olinda, que é ao lado, e a Caruaru, famosa feira. Ainda é muito impressionante a vitalidade dessa cidade. Aí pegámos um avião até Petrolina, e foi a terceira vez que atravessámos o São Francisco. Voltámos à Baía, para ver então um pouco das paisagens do Euclides. Bendegó, Canudos, Euclides da Cunha [povoação], Monte Santo, que é muito importante, um lugar de peregrinação. Depois prosseguimos em direcção a Salvador. Mas como um dos fios do livro dizia respeito ao meu bisavô que tinha sido juiz em Juazeiro, o Ruy decidiu que queria fazer o trajecto da minha bisavó, que quando era moça veio da Barra para Salvador com a mãe, que ficara viúva e trazia as filhas adolescentes para estudar. Era o século XIX, eles iam de burro, de barco. Ia-se até Juazeiro e depois pegava-se um trem até Salvador. Hoje já não é possível, não leva passageiros. Então fizemos isso de carro, e de caminho passámos por aquela fazenda que é parte da história familiar.”
Onde o juiz de Juazeiro, futuro bisavô de Daniela, se enamorou daquela adolescente em trânsito, futura bisavó de Daniela. “Ele era do recôncavo baiano, mas estava a trabalhar em Juazeiro. Então essa terceira viagem tem três momentos. Recife, as paisagens de Euclides e o recôncavo baiano.”
Livro e volta
O livro foi-se escrevendo entre viagens. “Ele pensou nele como folhetins a publicar num jornal, uma crónica semanal.” Nunca aconteceu. Os jornais estreitaram.
“Vim cá e viajei experimentando sempre um sentimento de filho pródigo ciente daquilo que enquanto pessoa deve ao Brasil pelo que desde muito cedo na vida o Brasil lhe deu a ler, a ouvir, a aprender, a ver e a imaginar”, escreve Ruy Duarte no fim de Desmedida. “E sediei em São Paulo com o entusiasmo e a aplicação de quem todos os dias confirma estar usufruindo o privilégio de pisar e respirar um lugar de eleição, até no que toca à produção do inédito, e com a consciência de que “estamos juntos”, quer uns possam gostar e outros não.”
Juntos, “no vaivém das balsas”.
O livro saiu logo a seguir em Portugal e para o lançamento brasileiro, em 2010, todos contavam com a vinda de Ruy. Mas aconteceu ele ter morrido em Agosto.
A notícia chegou de forma estranha a Lisboa. Ruy Duarte de Carvalho aparecera morto na sua casa da Namíbia, sozinho. Porquê na Namíbia? Porquê sozinho? Que história terrível, pensará quem pouco sabe.
Nada disso, diz Daniela.
“Ele queria ficar em África, era africano. E escolheu a Namíbia para sua casa pela proximidade do Namibe.” Estava cansado de viver numa cidade grande, e na cidade em que Luanda se tornara. “E já vinha criando essa relação com a Namíbia há muito tempo. Tanto que as Paisagens Propícias já se passam lá. Essa fronteira entre Angola e a Namíbia era imaginária para ele. Eram paisagens de cultura pastoril dos dois lados. Ele fazia questão de mostrar isso para nós, quando chegávamos. E em Minas dizia sempre: “Isso é muito verde para mim.” Ele sentia necessidade do deserto, e na Namíbia estava muito perto do deserto.”
Não foi, ressalva Daniela, uma opção de isolamento. “Acho que foi o contrário, uma opção de conforto, para estar muito melhor do que estava em Angola. Ele tinha comprado um tapete persa, uma mobília bonita. Estava finalmente se dando o direito de viver bem. Tinha conseguido vender o apartamento em Luanda e comprou um apartamento bom ali. Foi romper com essa coisa política, de dever, que o fez ficar lá tantos anos. E quando percebeu que não aguentava mais, pensou no lugar que lhe apetecia mais. Swakopmund é um lugar agradável, não é um fim do mundo.”
Daniela não vê nisto qualquer tristeza. “Tinha conseguido tudo o que queria. Estava muito feliz, fazendo aguarela até enjoar, que era o que mais adorava. Não morreu triste nem abandonado, estava vivendo muito bem, nunca tinha vivido tão bem. Tenho a certeza de que ele nunca ia querer ficar decadente. Então fico feliz que tenha morrido no auge e reconhecido.”
Artigo originalmente publicado no jornal Público, 11/11/2010