“A identidade multicultural da Índia”
“India is a pluralist society that creates magic with democracy, rule of law and individual freedom, community relations and [cultural] diversity. What a place to be an intellectual!…I wouldn’t mind being born ten times to rediscover India.”
Robert Blackwill,
Antigo Embaixador dos EUA em Delhi, em 2003
“If I were asked under what sky the human mind has most fully developed some of its choicest gifts, has most deeply pondered on the greatest problems of life, and has found solutions, I should point to India”
Max Mueller, orientalista alemão
A Índia é um país fascinante e é um destino do sonho para muitos daqueles que nunca a visitaram. Para os visitantes, a visita à Índia é uma experiência complexa, decorrente da presença de grandes contrastes económicos e culturais: o extremo da riqueza e pobreza, da fome e da abundância, do sofisticado passado histórico e de um futuro projectado num desenvolvimento económico sustentado e num crescimento demográfico que a tornará previsivelmente o país com a população mais jovem do mundo - tudo sendo visível à distância de dois passos.
A diversidade acima enunciada torna difícil dispor a Índia em categorias estáveis. A que Índia nós devemos referir quando tentamos apresentá-la? Um poder global do século XXI ou um país pobre em vias de desenvolvimento? Uma economia baseada na tecnologia de ponta ou numa agricultura de subsistência? Um estado liberal secular ou uma sociedade profundamente religiosa? Uma civilização antiga e tradicional ou uma cultura que está a tornar-se cada vez mais moderna? As possibilidades são muitas e é nelas que residem os desafios a uma investigação no domínio das humanidades e das ciências sociais.
Efectivamente, nos últimos anos, desde a liberalização iniciada nos princípios dos anos de 1990 pelo que fora conselheiro económico de Indira Gandhi depois ministro da Economia, e é hoje o Primeiro-Ministro da Índia, Doutor Manmohan Singh, as políticas económicas levaram a Índia a um crescimento fenomenal mas, simultaneamente, a maior parte da população ainda não beneficia do desenvolvimento económico. Assim, numa das suas cidades mais dinâmicas, Mumbai, cerca de dez milhões de pessoas vivem em bairros de lata e no entanto estes bairros não são lugares perigosos como algumas das favelas da América Latina, e neles pode-se sentir apenas um silêncio espantoso – ao contrário de estereótipos divulgados pelos média e pela indústria cinematográfica, como foi o caso do aclamado Slumdog Bilionaire. Qualquer outro país talvez tivesse sucumbido a estas contradições e contrastes. A Índia, mesmo com estes contrastes e contradições, é um Estado de uma surpreendente estabilidade.
Os sistemas de governo na Índia incluíram, ao longo de história, algumas culturas urbanas antigas, regimes nómadas militares, comunidades agrícola, famílias dinásticas, hindus e muçulmanas, poderes comerciais e impérios estrangeiros assim com modernos sistemas constitucionais. As mudanças políticas não foram uniformes, mas a tendência de longo prazo foi a de levar à consolidação e expansão de um estado centralizado, burocrático, controlando relativamente as economias integradas e intervindo na vida da sociedade. Estes estados surgiram de tempos a tempos no último milénio e têm persistido mais ou menos continuamente desde os mogóis, no século XVI. Todavia os mogóis sucumbiram aos desafios internos e externos no início do século XVIII, sendo perseguidos pelos estados regionais, centralizados, que mais tarde foram vencidos pelo governo colonial dos Britânicos. Este processo levou mais tarde ao nascimento de uma nação chamado “Índia”.
A construção histórica da Índia
Quando analisamos a Índia de um ponto de vista diacrónico, é-nos possível avaliar as diferentes matrizes culturais que nela se foram inscrevendo, ao mesmo tempo que nos damos conta que alguns essencialismos que as ciências sociais têm justaposto a esta sociedade – o misticismo, o imutável sistema de castas, a tradição e a resistência à mudança – se revelam problemáticos em face destas prolongadas coexistências culturais. Elas sugerem antes que encaremos a Índia como uma estrutura negocial que foi acolhendo e sintetizando quer transformações endógenas quer exógenas, que tornam pertinente a definição de Embree de “a structure in the making”.
Vejamos então:
A civilização de Harappa ou a civilização do vale do Indo
A civilização de Harappa ou a Civilização do Vale do Indo (por ter ocorrido no vale do Rio Indo) que teve lugar entre 3000 -1700 a.C. Desenvolveu a agricultura, o comércio e a vida cívica. Os lugares arqueológicos em Harappa, Mohenjodaro e outros que hoje pertencem ao actual Paquistão e ao nordeste da Índia põem em evidência a literacia, a organização política e um excedente de produção, suficiente para os residentes da cidade e para os rituais religiosos. Do ponto de vista religioso, esta civilização teve cultos animistas, em torno de animais sagrados e de símbolos masculinos e femininos da fertilidade. A sua cultura urbana acabaria por decair por razões não bem conhecidas (acredita-se que a razão principal foi a mudança de clima) mas deixou os seus elementos estruturadores às civilizações seguintes, particularmente os arianos. Algumas práticas agrícolas bem como o culto da fecundidade associado à Deusa hindu viriam a ser integrados em planos de continuidade que permanecem nos nossos dias.
Os arianos
A chegada dos arianos à Índia, por volta de 1500 a.C., foi decisiva para o seu futuro social e religioso. De origem indo-europeia, e constituindo com os iranianos o bloco oriental desta cultura, os Arianos trouxeram uma língua parente das línguas nobres da Europa, o sânscrito, que continua a ser a língua do ritual na contemporaneidade.
Eles trouxeram, além disso, uma morfologia social que, transformando-se e complexificando-se ao longo dos séculos, viria a impor-se na Índia até aos nossos dias Efectivamente, a sociedade ariana inicial dividida em varna (termo que significa “cor”), a saber, brâmanes (sacerdotes), ksahtriya (guerreiros e reis), vaisya (comerciantes e agricultores) e sudra (grupos de serviços, de onde derivaram mais tarde os intocáveis) viria a evoluir para o sistema de castas, caracterizado tradicionalmente pela endogamia (a obrigatoriedade de um individuo casar no interior da sua casta), a “endocozinha a comensalidade e a troca de alimentos cozinhados também dentro de uma mesma casta e a especialização profissional hereditária.”
A Índia contemporânea, independentemente de um conjunto de medidas políticas tendentes a construir uma “casteless society”, de que deve ser destacada a abolição oficial da intocabilidade desde o princípio da constituição da nação independente, e a protecção económica e educacional das castas desprivilegiadas, continua a manter uma estrutura de castas, sobretudo em meio rural. Esta morfologia, apesar do abandono sucessivo da especialização profissional hereditária e da “endocozinha”, é sustentada ainda pela tentativa de preservar a endogamia, mesmo em meio urbano e na diáspora indiana no mundo.
O hinduísmo, prática social e religiosa dominante na Índia tem, pois, as suas origens mais próximas no contacto com a civilização ariana.
A ocupação muçulmana
A partir de século VIII, os árabes começaram a ocupar a Índia (unida ainda, com o futuro Paquistão e o Bangladesh), onde entraram por Sindh, ocupação que continuou e fortaleceu-se com os turcos, no século XI. Estas ocupações trouxeram uma nova cultura, particularmente uma nova religião, o Islão, que foi espalhado pelos imperadores muçulmanos, convertendo o povo que até esta altura tinha predominantemente uma religião hindu. – ou secundariamente, budista, jainista, parsi, cristã ou judaica. O império mogol reinou na Índia entre os séculos XIV e XVIII - e foi designado por muitos como a Idade de Ouro da história indiana, particularmente pela acção de Akbar que tentou acolher as religiões da Índia, assumindo que todas as religiões são verdadeiras mas nenhuma delas possui a verdade suprema. Akbar aboliu o Islão como a religião do estado e introduziu uma nova religião Din-E-Ilahi (religião de Deus), casando ele próprio com uma princesa hindu.
No início, os invasores muçulmanos eram estrangeiros mas, pouco a pouco, foram impregnando o tecido cultural indiano, constituindo uma cultura sui generis. A comunidade muçulmana da Índia é hoje demograficamente a segunda umma (a comunidade dos crentes) do mundo, a seguir à Indonésia – o que diz muito sobre a natureza do Islão na Índia e sobre a própria Índia.
A chegada dos ingleses
Os ingleses chegaram à Índia no século XVII, por volta de 1600, por motivos comerciais e fundaram a Companhia das Índias Orientais mas, gradualmente, começaram a interferir nos assuntos políticos dos vários impérios em que estava dividida a Índia (incluindo os actuais Paquistão e Bangladesh) e viriam a consumar o poder político em 1857, com a colonização sucessiva dos diferentes estados.
Em 1888, Sir John Strachey, um membro do concelho do Governador Geral do Império Britânico disse sobre a Índia: “(…) the first and most essential thing to learn about India – that there is not, and never was an India, or even any country of India possessing, according to any European ideas, any sort of unity, physical, political, social or religious.”
Esta visão de Sir Strachey é contestada, mas mostra que até esta altura a Índia não era uma identidade colectiva mas um conjunto das várias identidades que partilhavam alguns traços em comum.
Com os ingleses e outros europeus, nomeadamente franceses, holandeses e portugueses, vieram os missionários, outras línguas e uma cultura curiosa e nova para os indianos. Muitos foram convertidos ao cristianismo, todavia a conversão, por vezes pela força, não apagou a tradição religiosa dos antepassados. Um exemplo muito interessante é que ainda em Goa muitas famílias têm uma planta de tulsi no pátio, a planta sagrada para os hindus, embora também tenha efeitos medicinais.
A Índia teve a independência a 15 de Agosto de 1947, mas o custo foi a divisão de uma parte do território e a criação violenta de um novo país, o Paquistão.
A diversidade linguística
A constituição da Índia reconhece vinte e duas línguas como línguas oficiais, havendo, além disso, mais do que 844 dialectos falados em torro o território. A língua mais importante é o hindi, falado por 600 milhões pessoas, isto é, cerca de 50% da população do país. As línguas oficiais correspondem quase sempre aos limites do Estado e são: assamese, bengali, bodo, dogri, gujarati, hindi, kannada, kashmiri, maithili, malyalam, manipuri, marathi, nepali, oriya, punjabi, sânscrito, santhali, sindhi, telugu, e urdu, uma língua de família semita. Cada uma destas línguas tem uma escrita distinta e cada uma tem muitos milhões dos falantes nativos.
O inglês é a língua da administração e funciona como língua veicular entre indivíduos de diferentes estados e entre os indianos em diáspora.
Ser indiano comporta, assim, as possibilidades de falar uma ou mais línguas e dialectos e de ter diferentes pertenças religiosas. O que torna a Índia bastante singular é a forma razoavelmente equilibrada como essas possibilidades coexistem.
Os usuários das línguas em todo país usam em geral duas ou mais línguas entre eles, nos contextos diferentes das suas actividades. Incontestavelmente, apesar de grande diversidade linguística, a comunicação em todo país continua acessível.
“If one draws a straight line between kashmir and Kanyakumari and marks, say, every five or ten miles, then one will find that there is no break in communication between any two consecutive points” (Pattanayak, 1984:44)
Nas situações de contactos entre as línguas de minorias e as línguas dominantes, a maioria dos falantes da língua minoritária tem tendência a ser bilingue ou multilingue. Isto leva à comunicação entre os vários grupos mas também à manutenção das línguas de minorias e a um multilinguismo estável.
Multilinguismo como uma força positiva
A característica excepcional do multilinguismo indiano, o etos pluralista e a função multilingue da socialização torna o multilinguismo uma força positiva. Efectivamente, o multilinguismo ao nível individual e social tem consequências positivas, particularmente quando o pluralismo cultural e o multilinguismo são aceites como normas sociais, embora, de uma perspectiva política, possa constituir um problema de grandes dimensões para o planeamento da língua e da educação, nomeadamente quando cada região quer promover a sua língua, criando problemas para o governo central.
Face negativa do multilinguismo na Índia
Apesar do que foi referido, muitas línguas são objecto de discriminação, social e de negligência política, contrariamente a algumas línguas indianas que têm o privilégio de ter acesso aos poderes e recursos políticos. Eis o que conduz a um fenómeno interessante: a grande diferença do estatuto entre as várias línguas da Índia. Por isso, por vezes o multilinguismo indiano é descrito como um multilinguismo das línguas que, embora constitucionalmente iguais, são estatutariamente desiguais, em que as línguas são claramente associadas a uma hierarquia do poder e de privilégios. Mesmo quando as línguas são preservadas numa tal hierarquia, a preservação não é feita sem nenhum custo. A preservação das línguas na Índia envolve a marginalização, a crise de identidade, a privação de liberdade e capacidade, o insucesso de educação e a pobreza.
“Large-scale social neglect and discrimination have led to loss of linguistic diversity and impoverishment of languages in the world. Exclusion of languages from domains of power, official recognition, legal and statutory use, trade, commerce and education, severely restricts the chances of their development and survival. (Mohanty 2009:278-291)”
Sendo o inglês a língua dominante na Índia pós-colonial, como na Ásia do Sul e noutras partes do mundo, ele reforçou a hierarquia linguística entre os falantes e os não falantes, tendo-se tornado um forte indicador de estatuto. Dados desta natureza terão seguramente consequências para o futuro do multilinguismo da Índia, determinando o processo da mudança das línguas, a marginalização, a preservação e a relação entre as línguas e os seus falantes.
Índia e globalização
A Índia depois da sua independência, durante 40 anos tentou ser um país auto-suficiente e não abriu o seu mercado aos estrangeiros mas, no ano de 1990, a Índia sofreu uma grave crise financeira e o então Primeiro-ministro, P V Narsimharao, abriu as portas para que os países estrangeiros e as empresas privadas pudessem investir na Índia. Abriram-se muitos centros de atendimentos (call center) e a Índia começou a ter o reconhecimento de ser um super-poder na área de software de computadores, e muitos peritos informáticos indianos começaram a trabalhar nos EUA e noutros países estrangeiros.
Este fenómeno repentino trouxe mudanças notáveis e significativas ao país. Os jovens indianos em busca de bom emprego e boa educação deslocam-se da sua cidade para uma outra cidade com uma cultura, uma língua e às vezes um clima bastante diferente da sua, mas as necessidades do emprego e da educação obrigam os jovens a adaptarem-se a novas culturas mesmo dentro da Índia. Por exemplo, há milhares estudantes e empregados norte-indianos que estão a trabalhar e a estudar em Tamil Nadu, o extremo sul da Índia, adaptam-se bem ao clima e à alimentação e, pouco a pouco, conseguem a aprender a língua local, o Tamil, embora esta aprendizagem não seja fácil, por ser uma língua de família dravidiana.
“(…) National anthem, national currency, national teams – still, we won’t marry our children outside our state. How can this intolerance be good for our country?”
Bhagat Chetan, 2009:102
Devido ao crescimento económico, os empregados, seja de uma empresa privada seja de uma instituição pública recebem o salário 6-7 vezes mais do que recebiam há cerca de 15 anos. Isto levou a sociedade indiana a ser uma sociedade de consumo. Este crescimento e desenvolvimento económico está a levar as classes baixas a uma classe média com mais de 250 milhões de indivíduos, ou seja, maior do que a população dos EUA, que tenta, por sua vez, mimetizar os padrões de comportamento das elites, com os respectivos impactos na estrutura social global.
Conclusão
A Índia é uma unidade feita das suas diversidades internas, mas a Índia actual não tem – como, aliás, nunca teve - uma clara identidade regional. Assim, a sua prática social e religiosa dominante, o hinduísmo, coexiste com outras, razão pela qual não pode ser definida apenas pela matriz hindu, tanto mais que o hinduísmo não tem características uniformes nas diferentes regiões ou nos diferentes grupos sociais.
Além disso, o Islão tem uma forte presença no território, sendo ele distinto de outros contextos da Ásia do Sul e do mundo, como é igualmente considerável a presença de outras filiações religiosas – sikhismo, budismo, jainismo, filosofia parsi, cristianismo, judaísmo, não negligenciando as religiões animistas ou adivasi.
A Índia dos últimos séculos foi impregnando, além disso, a cultura europeia, trazida ao território pelo colonialismo e hoje nele difundida por modernos meios de comunicação e de informação que permitem a um indivíduo partilhar realidades culturais distintas num mesmo tempo.
Este trabalho não poderá ficar concluido sem falar duma citação de Mahatma Gandhi: “Não desejo que as minhas portas estejam trancadas nem que as minhas janelas tenham barras, quero que os ventos de todos os quadrantes possam entrar tão livremente quanto possível. Mas recuso-me a ser arrebatado por eles.”. Eu vejo que isso mesmo tem acontecido ao longo dos séculos na Índia e não vejo nenhuma razão que leve este processo a parar.
No futuro gostaria de desenvolver mais este tema, na comparação com a sociedade multiétnica e multilingue do Canadá, focando-me essencialmente na relação entre o poder e a (s) língua (s). Gostaria também de analisar em maior profundidade o fenómeno de Bollywood,a maior indústria indiana de filmes em Hindi que tem afectado bastante todo o país como uma nação.
Bibliografia
- Guha, Ramchandra, 2007, India after Gandhi, The History of the world’s largest democracy, New York, Harper Collins Publishers.
- Robb, Peter, 2002, A History of India, New York, PALGRAVE
- Bhagat, Chetan, 2009, Two States, New Delhi, Rupa. Co.
- Pattanayak, D.P., 1984, Language Policies in Multilingual states.
- Journal of Multilingual & Multicultural Development, November 2009
- Jaffery G. Reitz, Raymond Breton, Karen Kisiel Dion, Kenneth L. Dion, 2009, Multiculturalism and Social Cohesion, Potentials and Challenges of Diversity, Springer
- Mohanty Ajit K, 2009, Multilingual education for social justice: Globalising the local, New Delhi, Orient Longman
- Embree, Ainslie T., 1989, Imagining India, Essays on Indian History, Delhi, Oxford University Press
Ensaio elaborado no âmbito do seminário Multiculturalismo e Dinâmicas Interculturais, orientado pela Professora Doutora Inocência Mata, no Curso de Estudos Pós-Graduados em Língua e Cultura Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.