A Índia não estava coberta: descobrir a presença portuguesa em Cochim
“Foi a pimenta que fez Vasco da Gama atravessar os mares, da torre de Belém em Lisboa até à costa de Malabar”, explica o escritor indiano Salman Rushdie no romance O último suspiro do mouro, a crónica de uma família indiana com ascendência portuguesa na cidade de Cochim, no sul da Índia. Rushdie descreve como os portugueses foram os pioneiros do período conhecido como “Descobrimento da Índia”, mas questiona: “como pudemos ser descobertos se não estávamos cobertos antes?”
Cochim, a maior cidade do estado de Querala, foi a primeira cidade indiana onde os portugueses se estabeleceram, e o centro do comércio português no oceano Índico antes de a capital ser mudada para Goa. Hoje uma das cidades mais visitadas por turistas em Querala, a influência portuguesa ainda está muito presente no centro histórico da cidade. Edifícios coloniais e igrejas portuguesas fazem parte dos monumentos mais visitados por turistas, e o nome de Vasco da Gama encontra-se um pouco por toda a cidade, desde uma praça junto ao mar, até ao nome de restaurantes e hotéis.
Na igreja de S. Francisco, construída em 1503 por portugueses e considerada a mais antiga igreja europeia da Índia, o túmulo de Vasco da Gama atrai um grande número de turistas. Vasco da Gama desembarcou na costa indiana pela primeira vez em 1498. O navegador morreu e foi sepultado em Cochim em 1524. Os seus restos mortais foram transladados para o Mosteiro dos Jerónimos décadas mais tarde, mas o túmulo vazio foi preservado na igreja de S. Francisco e permanece uma das atrações turísticas de Cochim.
Os portugueses foram os primeiros a estabelecer presença europeia na Índia. Após estabelecerem uma aliança com o rei de Cochim, receberam permissão para construir uma fortaleza, armazéns e igrejas numa cidade portuguesa exclusivamente habitada por cristãos, hoje situada no bairro conhecido como Fortaleza de Cochim, o centro histórico da cidade, mais tarde ocupado por holandeses e ingleses.
“Os missionários portugueses foram aceites aqui porque abriram escolas e hospitais”, explica o padre Angel Alexander na basílica de Santa Cruz, inicialmente construída por portugueses. A basílica foi destruída durante o período colonial britânico, mas reconstruída em 1887 por um missionário português. Uma estátua de Nossa Senhora de Fátima, trazida de Portugal para Cochim em 1949, é o centro de um santuário construído junto à basílica. O bispo de Cochim Joseph Kariyil escreve que a sua diocese “transporta no coração um feliz ónus de gratidão para com os portugueses pela sua imensa contribuição de cultura e de fé”.
No entanto, nem todos em Cochim falam da herança portuguesa na cidade de forma tão grata e positiva. K. J. Sohan, presidente da câmara de Cochim durante os anos 90, sublinha a violência e a intolerância trazida pelos portugueses, que foram também os primeiros europeus a transportar e vender escravos no oceano Índico. “Acho que beneficiámos muito com a presença portuguesa. Os portugueses trouxeram produtos que se tornaram a base da nossa economia, como o caju e a tapioca. Trouxeram as redes de pesca chinesas, instituíram escolas, hospitais e bibliotecas. Mas também eram fanáticos religiosos e violentos.” Sohan ressalva que qualquer invasão envolve crueldade e violência, mas considera que na guerra pelo controlo do comércio no mar Índico os portugueses foram particularmente brutais. “Todos os conquistadores são cruéis, mas os portugueses retaliaram ataques de formas horrendas”, diz.
Num dos mais infames episódios de violência, Vasco da Gama retaliou ataques à feitoria portuguesa em Calicute, a norte de Cochim, bombardeando a cidade. Segundo historiadores indianos como K. M. Panikkar e Sanjay Subrahmanyam, embarcações indianas foram atacadas, e Vasco da Gama ordenou que as orelhas, mãos e narizes dos tripulantes fossem cortados, e os corpos enviados num barco até à costa para aterrorizar a população. Os ataques a navios muçulmanos que controlavam o comércio na costa de Malabar antes dos portugueses também estão repletos de relatos atrozes. Para assegurar o monopólio do comércio em Malabar os portugueses esmagaram a concorrência e impuseram as suas condições ao rei de Cochim, que se tornou um aliado submisso do rei de Portugal. Nas suas várias viagens à Índia, Vasco da Gama ordenou o massacre de centenas de mercadores muçulmanos. Um navio que carregava peregrinos vindo de Meca em 1502, por exemplo, foi tomado de assalto, pilhado das suas riquezas e as centenas de passageiros, que segundo historiadores incluíam mulheres e crianças, foram queimados vivos. O massacre foi representado no filme indiano ‘Urumi’, produzido em Querala em 2011, que retrata Vasco da Gama como um homem cruel e ganancioso, responsável por massacres brutais.
Num livro sobre Vasco da Gama, o reputado historiador indiano Sanjay Subrahmanyam revê a figura histórica, descrevendo o navegador como um homem cruel, irascível e arrogante que não merece o estatuto de herói que lhe é atribuído. Subrahmanyam sublinha os episódios de violência perpetuados pelos portugueses no oceano Índico. Outros historiadores indianos, como K. M. Panikkar, desvalorizam o mérito da viagem de Vasco da Gama, defendendo que foi o conhecimento de astrónomos, navegadores e viajantes judeus, árabes e indianos que tornou a viagem até à Índia possível.
Apesar da violência e crueldade de Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral terem sido extensivamente documentadas por historiadores indianos, o nome dos exploradores portugueses continua a fazer parte dos roteiros turísticos da cidade. No bairro da Fortaleza de Cochim, os vestígios da presença portuguesa, holandesa e britânica são explorados para fins turísticos. Desde os anos 90, o governo de Querala tem vindo a investir nos edifícios coloniais que começaram a ser protegidos como património cultural da cidade.
Para além da brutalidade da guerra pelo controlo do comércio e da pirataria portuguesa, a intolerância religiosa trazida pelos portugueses e a pilhagem e destruição de templos também é recordada em Cochim. No bairro Mattancherry, onde uma comunidade judaica se instalou com a proteção do rei de Cochim no século XVI, relatos do fanatismo dos portugueses e da pilhagem de templos estão inseridos em alguns dos monumentos históricos.
O palácio de Mattancherry, oferecido pelos portugueses ao rei de Cochim para o compensar pela pilhagem de um templo, não esconde o facto de que os portugueses foram responsáveis pelo saque e a destruição de lugares sagrados na região. Perto do palácio, hoje uma das principais atrações turísticas na cidade, encontra-se o pequeno bairro judeu, onde a comunidade judaica está reduzida a menos de uma dezena de pessoas, maioritariamente idosos. Resta uma sinagoga, construída em 1568, mas parcialmente destruída pelos portugueses em 1661, quando a comunidade judaica se aliou aos holandeses, inimigos dos portugueses. Os holandeses conquistaram Cochim em 1665, e reconstruíram a sinagoga queimada pelos portugueses por vingança. Na sinagoga, a ocupação portuguesa é descrita como o “período mais negro da história dos judeus de Malabar”, e as histórias de perseguição e intolerância religiosa não foram esquecidas. Como exemplo, um livro distribuído na sinagoga destaca uma carta que Afonso de Albuquerque escreveu ao rei D. Manuel I a pedir permissão para “exterminar” os judeus de Cochim.
Com 95 anos, Sarah Cohen é a mais velha residente do bairro judaico de Cochim. Taha Ibrahim, um comerciante muçulmano, cuida de Cohen há vários anos. Numa pequena loja adjacente à casa de Cohen, a apenas alguns metros de distância da sinagoga, Ibrahim vende lenços com motivos judaicos bordados por Cohen. “Os portugueses trouxeram muitos problemas, destruíram a sinagoga e mesquitas. Cometeram muitos massacres em Querala, especialmente contra os muçulmanos que controlavam o comércio,” diz Ibrahim.
As histórias de violência, fanatismo e crueldade, lembradas sobretudo pelas comunidades judaicas e muçulmanas, estão ausentes no Museu Indo-Português, situado na Fortaleza de Cochim. Financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, o museu comemora a presença portuguesa na cidade, representando a aliança entre os portugueses e o rei de Cochim como uma relação de amizade e cooperação que resultou em “grandes benefícios para toda a gente”. O museu menciona a destruição causada pelos holandeses quando tomaram a cidade em 1663, particularmente a destruição de igrejas católicas, mas a destruição e intolerância dos portugueses está completamente ausente no museu que documenta exclusivamente o património religioso.
“Devíamos olhar para todos os lados da história” diz Joseph Varghese, funcionário do Museu Indo-português. Varghese considera que os lados negativos da presença portuguesa em Querala deveriam ser estudados, mas defende que o museu não é o lugar onde se deve discutir estas questões. “A maioria dos visitantes está de férias e vem para ver e desfrutar o museu, e não para questionar a história e estudar estas questões complexas”, defende Varghese.
A ideia que os visitantes não querem ser confrontados com as histórias de violência, repressão e subjugação do colonialismo europeu está presente na forma como o bairro da Fortaleza de Cochim é apresentado aos turistas. Os séculos de presença portuguesa, holandesa e britânica são representados como períodos de troca cultural, benéfica para o desenvolvimento da cidade, silenciando as histórias de subjugação e coerção que fazem parte do imperialismo europeu na Índia.
Num artigo sobre espaços coloniais e narrativas pós-coloniais em Cochim, a académica indiana Neelima Jeychandran analisa a representação de um passado colonial romantizado para o consumo de turistas, e a ausência de discursos que questionam as narrativas coloniais dominantes. É por isso necessário revisitar a história colonial portuguesa, questionar a glorificação dos “heróis do mar” e dar voz às histórias de repressão e violência que fazem parte da história de Portugal.