A legítima desconfiança em relação aos intelectuais
Moçambique vive uma crise pós-eleitoral que já se arrasta há dois meses. As redes sociais, agora transformadas numa nova ágora, e provavelmente mais democráticas por estarem desprovidas de requisitos de classe para que alguém participe, tornam-se um campo de batalha narrativa.
E porque é oportuno que assim aconteça, os intelectuais (entendidos aqui como aqueles que se dedicam ao labor das ideias) têm produzido uma série de comentários e reflexões sobre os acontecimentos no país. Alguns fazem um levantamento das causas, outros explicam o fenómeno a partir das consequências. Há quem importe disputas ideológicas de outros contextos e as aplique, e outros que fazem leituras históricas, comparando os factos e as personagens, e por aí em diante. Ou seja, os intelectuais estão a desempenhar o seu papel: produzir ideias sobre o que está a acontecer neste país que foi outrora considerado a “pérola do Índico”, por um dos seus antigos presidentes.
Entretanto, os intelectuais não estão apenas a produzir ideias, mas também têm o seu trabalho fiscalizado por um público que, apesar de não se dedicar ao labor das ideias, sente, opina e questiona tudo à sua volta. Um dos questionamentos que se coloca é o aparente distanciamento entre os intelectuais e as massas, sendo que estas chegam, inclusive, a desconfiar das reais intenções destes profissionais de ideias. Contudo, esta desconfiança não é nova, tendo sido explorada inclusive sob o ponto de vista literário.
No romance L’Aventure Ambiguë, da autoria do escritor senegalês Cheikh Hamidou Kane, publicado pela primeira vez em 1961, a questão das interações entre as culturas ocidental e africana está no centro do enredo, proporcionando reflexões interessantes sobre o encontro entre culturas e saberes. Este encontro pode gerar aquilo a que Hélder Macedo chamou de “equívocos do olhar” e que Souleymane Bachir Diagne pontuou como sendo capazes de produzir “traduções hospitaleiras”, quando o bom senso e a vontade de abrir a tribo ao conhecimento assim o permitem.
A história de Hamidou Kane tem como protagonista um jovem de nome Samba Diallo, que, depois de receber uma forte educação religiosa marcadamente islâmica na região de Diallobé, no Senegal, parte para estudar em Paris — aquela cidade para onde, como dizia Balandier, era preciso ir para se ser etnólogo, pois tinha a particularidade de produzir eruditos literários.
Em Paris, Samba Diallo começa a afastar-se das suas raízes africanas, sem nunca chegar a ser totalmente francês. O protagonista deste livro vai para França porque a irmã do rei (Grande Royale), que é simultaneamente sua parente, o convence a estudar lá para “aprender a ganhar sem ter razão”. No romance, há recorrentes intervenções das personagens da região de Diallobé sobre a desconfiança em relação às instituições ocidentais, que, no entanto, são apresentadas pelo narrador como uma sina. Aliás, a própria Grande Royale confessa que não gosta da escola estrangeira, que a despreza, mas, ainda assim, considera que os membros da comunidade devem enviar os seus filhos para lá.
L’Aventure Ambiguë é um texto de muita sabedoria, mas também de celebração da palavra: “A Palavra tece o que é, mais intimamente do que a luz tece o dia. A Palavra transborda o vosso destino, do lado do projecto, do lado do acto, sendo os três desde toda a eternidade. Eu adoro-a.” (p. 131, editora Julliard, 1961, livro pertencente à coleção pessoal do meu tio Calquim, também formado em França nos anos 90).
Nesse sentido, enquanto assistimos a um desfilar de conceitos, vocabulários e interpretações protagonizadas pelos intelectuais, algo ressalta à vista: o facto de os mesmos reivindicarem para si a prerrogativa de produzir as melhores ideias e acusarem as massas de falta de competência para questionarem as suas propostas.
Estas tensões entre formas de vida e saberes diferentes foram também teorizadas pelo historiador francês Michel de Certeau, que considerou que os diversos campos de construção do conhecimento tendem a entrar em conflito não pela validade das suas ideias, mas pela necessidade de as verem priorizadas nos processos de transformação do quotidiano.
Assim, a tensão entre intelectuais e massas no contexto dos debates que permeiam os conflitos pós-eleitorais em Moçambique remete-nos para a desconfiança em relação àqueles que frequentam a universidade. Os universitários, em vez de aprenderem novas coisas, desaprendem muitas outras, conforme descrito no romance de Hamidou Kane. E, ao esquecerem as últimas, pretendem continuar a “ganhar sem ter razão”.
Qual será o papel do intelectual? Eis a pergunta que continua no ar. Será o de ir à escola para aprender a vencer argumentos? E podemos ainda questionar: qual será o papel de um intelectual que venha de comunidades excluídas? Será o de, através do reconhecimento das suas capacidades cognitivas e criativas, mudar de classe? Ou será aquele que submete as “práticas e experiências quotidianas” (Certeau) ao julgamento do tribunal da razão (Kant)?
Muitos jovens africanos foram educados com o apoio das suas comunidades, em função do valor que estas atribuem ao conhecimento. Por isso, reconhecendo a leitura de Joseph Ki-Zerbo, de que os modelos educacionais coloniais estavam focados em alienar os africanos da sua cultura e tradições, criando um distanciamento entre as elites educadas e o resto da população, as massas têm legitimidade para desconfiar dos intelectuais.
Concluo referindo que, para além da escola ou da universidade, o intelectual africano precisa de outro espaço de legitimação: a comunidade que o construiu. Seria uma traição estudar graças ao esforço de uma comunidade para, no final, pensar apenas no próprio estômago.
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