A Morte do Meu Pai
– Informo-te que o nosso pai acaba de perder a vida – disse o meu irmão logo depois de ter atendido a sua chamada. Os raios marcavam os primeiros passos do dia. Antes da chamada, a minha mão esquerda tinha uma chávena de café, a mão direita um mouse e os olhos estavam estendidos ao ecrã – lia os e-mails que tinha recebido na última noite.
Queria ajustar a minha agenda diária, antes de falar com os meus irmãos que acompanhavam o tratamento do meu pai. Sabia que a cirurgia, à qual tinha sido submetido há dias, havia corrido bem, mas ele continuava encravado, como um navio, na cama do hospital.
Quando o telefone tocou, atendi-o. Depois senti uma explosão e tremor no corpo todo. A minha temperatura alterou-se bruscamente, como se estivesse aos solavancos. Senti frio e calor. Um nó de sentimentos a comer-me as células do sossego.
Quando o meu irmão desligou o telefone virei a cadeira à esquerda, abri as persianas da janela do escritório e olhei para o movimento de fora que continuava o mesmo. Todo o mundo indiferente ao que se passava em mim. Dois fios de lágrimas baloiçavam. Tinhamos acabado de fazer as pazes, depois de tanto tempo de costas voltadas.
Tudo começou quando fiz o nível básico. Queria ir para um instituto técnico profissional para me formar como dactilógrafo. Queria ter logo uma profissão e começar a trabalhar. Fui ter com o meu pai e pedi-lhe que pagasse o curso – o meu pedido foi recusado. Eu sabia que o meu pai podia financiar os meus estudos, mas não o fez, porque andava zangado com a minha mãe.
Estava inconformado, porque a minha vida corria ao ritmo da alegria ou não do meu pai. Uma simples zanga reflectia-se na minha vida. E eu via os meus dias sem rumo. A última vez que conversei com o meu pai foi numa ocasião tensa, quando parti uma cadeira em sua casa. Na verdade, não foi uma conversa, por isso no pico do bate-boca disse-me: Sai da minha casa!
Um senhor para quem eu funcionava como explicador do filho nas disciplinas de língua portuguesa, inglesa, matemática e filosofia assumiu a responsabilidade de me dar um subsídio que me permitiu pagar o arrendamento de um quarto em Nampula. Tempos depois levou-me a Maputo e pagou-me o Curso de Dactilografia. Nessa altura, passei a ler tudo o que o filho estudava na universidade para lhe poder explicar, mesmo sem ser estudante universitário. Como o meu curso era de curta duração, terminei antes e consegui um emprego num escritório de advogados como redactor de alegações.
Desci ao primeiro andar para comunicar ao meu chefe.
– Doutor, acabo de perder o meu pai.
– Ò pá, meus sentimentos. Quando foi isso?
– Acabo de saber, agora.
– Terás de ir a Nampula?
– Sim…
A necessidade de cuidar das questões logísticas ligadas ao funeral consumiu-me a ponto de não ter tempo suficiente para chorar a morte do meu pai.
Fiz várias chamadas e movimentos bancários, recebi o apoio do meu escritório, e tive, no seguinte, um bilhete de avião para viajar de Maputo à Nampula. Voltava a Nampula, cinco anos depois, com a minha alma a dactilografar as memórias passadas.
Lembrei-me dos momentos que passei com o meu pai, de cada segundo que fui seu filho. Considerei-os insuficientes. Culpei-me por não ter feito tudo que estava ao meu alcance, culpei-o por não ter feito o seu papel de pai, um turbilhão de pensamentos atormentadores. Algumas das minhas habilidades estavam adormecidas como um cadáver na gaveta de uma morgue. Não conseguia ouvir quase nada, além de mim mesmo. E quando senti que finalmente apanhei sono, escutei o azan da mesquita da Malhangalene. Allahu Akbar (Deus é grande), gritava, através de um funil para despertar os crentes para a primeira oração do dia.
Naquele dia, o azan despertou-me para seguir ao Aeroporto Internacional de Maputo. Preparei-me, peguei no telemóvel que estava na cabeceira, acendi a luz do ecrã, desbloqueei o código, vasculhei a lista telefónica e liguei ao táxi que me veio buscar após dez minutos.
Quando entrei no táxi, pedi ao motorista que ligasse o rádio. A música suave, a voz agradável do locutor, a cacimba que começava desaparecer e as ruas que ensaiavam a claridade, ensinaram-me, naqueles minutos, que é preciso aproveitar para sorrir, porque, como se diz, a vida é um sopro.
Cheguei ao aeroporto, fiz o check-in, dirigi-me à sala de embarque e entrei no avião. Acondicionei a bagagem, sentei-me e comecei a apreciar, da janela do avião, os movimentos de homens e máquinas que se deslocavam na pista como objectos desenhados.
Minutos depois, escutei um homem de uma voz grave, possante e agradável:
– Bom dia, senhores passageiros. Aqui vos fala Ernesto Carrilho, comandante do voo, quero desejar-lhes boas-vindas a bordo deste avião que parte de Maputo com destino a Nampula e apresentar-lhes a minha equipa constituída por… e estamos aqui para tornar o seu voo agradável, e é um prazer tê-los a voar na nossa companhia.
Claro que já não me recordo dos outros membros da tripulação, pois tinha uma outra tripulação de angústia e incerteza comandando a minha alma. Seguiu-se a voz de uma senhora que falava com um sotaque que me era totalmente estranho, o que perturbava a minha percepção. Apresentou uma série de regras em inglês e português. Não percebi nada.
Quando o avião decolou, falei com o homem ao meu lado e disse-lhe que o comandante se comunicava de forma mais audível. Ao que me respondeu, “de facto, quando estamos no avião, morremos só porque não percebemos a forma afinada como essa gente fala, mas hoje só de ouvir o comandante falar da forma como falou, é porque a viagem será agradável, ou seja, não é uma viagem de morte”.
Acenei a cabeça como quem aceita o que ouve. Ele, em seguida, perguntou-me o que ia fazer em Nampula.
– Enterrar o meu pai! – respondi imediatamente. Nessa altura, o avião começou a tremer porque já estava a furar o tecido das nuvens.
Minutos depois baixei as costas da cadeira, encostei a cabeça e dormi. Quando acordei, endireitei a cadeira e lancei o olhar para fora do avião que sobrevoava a cidade de Nampula. Deu para reconhecer as montanhas, os edifícios, o cheiro do chão, a estação central, as ruas em forma de linhas e a residência do bispo.
A casa do meu pai, que caía aos pedaços, não tinha sequer o brilho do apartamento em que morava. O escritório de advogados havia-me arrendado um apartamento T1 num prédio que me dava fácil acesso aos cafés, livrarias e jornais. Queriam que eu estivesse actualizado o suficiente para lhes escrever alegações à altura do nome que ostentavam.
Quando o meu pai morreu, como eu disse, estávamos, finalmente, a encerrar o longo silêncio que atravessou as nossas vidas. Deve ser daí que, mesmo antes do funeral, todos me atiraram um olhar acusador, espetando-me uma seta de culpa. Eu não era rico. Vivia numa casa alugada e com o salário comprava comida e, de quando em vez, mandava o pouco que conseguia.
Quando decidiram que eu seria o responsável por levantar o corpo do meu pai que repousava na morgue do Hospital Central de Nampula, houve uma reunião familiar em que me declararam persona non grata. Os meus irmãos tentaram defender-me, mas sem sucesso.
O meu pai havia segredado aos seus que iria morrer e que se tinha apercebido da ferida da minha mágoa. Ficava cada vez mais triste quando recebia os meus presentes. Primeiro recebeu uma dúzia de cadeiras, porque eu queria pagar a que tinha partido; e não parei por aí, fui enviando outros bens, mas sem nunca ter estado presente.
– O teu pai queria-te apenas a ti e não os teus presentes – disse um dos meus tios.
No fim da reunião, o meu amigo Fred levou-me ao seu apartamento que me recordou tudo que havia deixado para trás quando saí de Nampula há mais de cinco anos.
(In Kwashala Blues de Jessemusse Cacinda)