As palestinianas e a luta das despossuídas
Há uma luta a desenrolar-se na Palestina — a luta das despossuídas para guardar as suas casas, terras, o seu lugar no mundo. A luta das que têm sido sujeitas às práticas sionistas e israelitas de despopulação e limpeza étnica desde a Nakba de 1948. Esta é a luta das que sobreviveram à guerra da conquista de 1948 e à guerra de ocupação de 1967.
Esta luta também pertence àquelas que se tornaram refugiadas dentro da sua própria terra, mas a quem não foi permitido voltar às suas casas e vilas porque foram excluídas por políticas que facilitaram a apropriação israelita das suas terras. E esta é agora a luta de mais uma geração que herdou a despossessão colectiva do seu povo, como em Haifa e em Gaza, e que a ela é de novo sujeita em lugares como Naqba ou o bairro de Sheikh Jarrah em Jerusalém.
E é a luta de todas aquelas que foram despossuídas e que continuam a ser despossuídas, não só pela guerra, mas também pelos meios legais e burocráticos mundanos que procuram converter políticas de ocupação colonial em tecnicalidades de leis de propriedade.
Despossessão sem fim
A luta contínua das despossuídas revela a repetitividade da despossessão — a impossibilidade de um fim. Mas também revela o que significa viver em luta, recusar a derrota, persistir.
O custo é elevado. Mas a alternativa é render-se à injustiça — capitulação.
Ainda assim, a questão não é só persistência, determinação e perseverança enquanto actividade e atitudes; há uma razão pela qual estas sensibilidades políticas são cultivadas. E esta razão tem a ver com a temporalidade do projecto de colonização por povoamento, que recusa limitar a sua despossessão das palestinianas a um tempo passado, a deixá-la tornar-se história.
E de facto como pode esta despossessão tornar-se história se desde o início a sua lógica assume da Palestina uma capacidade infinita para a colonização sionista?
Dada a resistência da Palestina à ocupação sionista, esta tinha forçosamente de ser constituída como estando sempre e desde logo disponível para povoação colonial uma e outra vez. Daí a infinita e repetida despossessão das palestinianas.
As despossuídas estão familiarizadas com esta repetitividade temporal sem fim; está inscrita nas suas memórias e na sua carne. A sua luta tem de se resguardar contra ela. A sua luta está à alerta, ansiosa em relação a mais uma invasão, a mais uma expulsão das suas casas. É sempre apreensiva, sempre preparada para confrontar a interminável despossessão israelita das palestinianas.
E se a Nakba, a palavra que elucida a despossessão catastrófica por excelência, não é um evento do ano de 1948, mas uma condição constantemente reconstituída da vida palestiniana, então resguardar-se contra ainda outra Nakba passou a ser estrutural nesta história e entrelaçado com a própria vida palestiniana.
O estar-junto palestiniano
Preparação, alerta e disposição constantes para se erguerem são o alfabeto da luta das despossuídas. O objectivo é domesticar, obstruir e travar a maquinaria do colonialismo por povoamento. Mas enquanto isso, as despossuídas renovam aspirações colectivas mais radicais: quebra a maquinaria da despossessão, desconectá-la da sua fonte de energia, desfazer o este itinerário de injustiça.
Não estão cansadas, mas estão fartas. Já não querem orquestrar a sua resistência dentro desta temporalidade repetitiva, contínua, uma resposta infinita a uma despossessão infinita; querem libertar-se do tempo e do espaço da ocupação colonial que não tem limites ou fronteiras. Não porque estejam cansadas, mas porque se atrevem a sonhar com outros futuros nos quais deixam de ser colonizadas e nos quais podem começar a envolver-se noutras lutas.
Dos dois lados da Linha Verde, de Nazaré a Haifa, a Jafa, a Jerusalém, a Nablus e Ramala, palestinianas carregam a memórias da despossessão das suas terras e das práticas de limpeza étnica às quais foram sujeitas.
No 73º aniversário da Nakba, comemorado a 15 de Maio, estão preparadas para confrontar esta ronda de expulsão, e desta forma também prefiguram um futuro que desfaria a despossessão que as separou em vários grupos: as palestinianas de ’48 (também como conhecidas como cidadãs palestinianas de Israel), sujeitas ocupadas da Cisjordânia, habitantes de Gaza cercadas, e as refugiadas a viver na Palestina e na diáspora.
Cada grupo insiste no estar-junto e na colectividade face à partição e ao desmembramento. Também há as de Jerusalém. Nem cidadãs nem sujeitas, as palestinianas de Jerusalém foram forçadas a tornar-se residentes de Israel. Este estatuto é um instrumento de governo colonial. Não inclui direitos políticos, mas é suficiente para distinguir as de Jerusalém das sujeitas ocupadas da Cisjordânia, facilitando assim a anexação de Jerusalém Oriental a Israel. Um intermediário legal entre cidadã e sujeita na Cisjordânia, o estatuto de residente não oferece nem a segurança provisória da cidadania, nem as garantias de protecção sobre as leis internacionais de ocupação, por mais teóricas que estas possam ser.
É um estatuto de fragilidade legal. No entanto, é este mesmo estatuto que permite a quem vive em Jerusalém pôr em causa a divisão da população palestiniana entre cidadãs e sujeitos. E porque as residentes de Sheikh Jarrah também são refugiadas na sua própria terra, articulam, no sentido em que concentram em si os diferentes destinos palestinianos: cidadãs, sujeitas e refugiadas. Iluminam uma condição palestiniana partilhada assim como os possíveis caminhos de luta que podem quebrar a temporalidade viciosa e cíclica da despossessão.
Um caminho próprio
A luta das despossuídas toma forma dentro desta interminável despossessão, responde-lhe e tenta contrariar as suas consequências catastróficas. Entretanto, também mapeia caminhos para acabar com a maquinaria da despossessão.
E desta luta de contra-ataque e de pôr termo a tal maquinaria, a colectividade palestiniana é reagrupada e articulada. Abandonadas pelos estados árabes e deixadas a sofrer dos caprichos da maquinaria de ocupação colonial, as despossuídas têm de encontrar o seu próprio caminho.
Confrontadas com um dos mais poderosos estados da sociedade internacional, a sua luta não é sem medo, mas corajosa. No 73º aniversário do início da Nakba, e num tempo histórico que se tornou pós-colonial e numa ordem internacional que já não apoia movimentos anti-coloniais, resta-nos a nós, comunidades desta terra, tomar em mãos as condições extremas sob as quais as palestinianas continuam a sua luta sem recuos, e reactivar, em articulação com elas, um impulso anti-colonial para parar a maquinaria de despossessão da ocupação colonial.
Publicado originalmente em openDemocracy e a tradução para português em Teratotopia.