Bienal de Luleå, autodeterminação dos povos originários dos países nórdicos europeus
A Bienal de Luleå, com a sua primeira edição em 1991, é uma das mais antigas exposições escandinavas. Inicialmente liderada pelo grupo artístico KILEN, foi assumida pelo Folkrörelsernas Konstfrämjande (The Peoples Movement for Art Promotion) em 2018, com o objetivo de criar um evento artístico recorrente que se espalhasse por toda Norrbotten – a região mais ao norte da Suécia. Desde 2021, Konstfrämjandet Norrbotten, o núcleo distrital de Norrbotten assumiu a coordenação valorizando o trabalho de atores e iniciativas culturais ativos na região e definindo os principais locais de exposição em Luleå (Konsthall, Norrbottens Museum, Galleri Syster e a piscina Pontusbadet) e em Boden (Havremagasinet Länskonsthall) mas também desenhando uma difusão rizomática que se estende a todo o território.
Inaugurada em outubro com uma série de apresentações e visitas durante dois dias de festival, A Luleå 2022 Craft & Art Biennale, encerra esta semana (15 de janeiro 2023) e tem curadoria de Onkar Kular e Christina Zetterlund. Os curadores fazem questão de remarcar como “a Bienal inclui artesanato e arte. E não o artesanato em relação à arte, relação que confirmaria uma longa hierarquia histórica na biografia da arte ocidental”. Em vez disso, decidem “situar o artesanato numa paisagem mais ampla de fabricação que inclui tudo, desde a preparação de alimentos e tecelagem, modificações de carros e escultura em madeira, artesanato em palha e jóias. Ofícios que existem no cotidiano, independentemente da origem, classe e formação do sujeito criador”. Neste sentido a Bienal estende-se à definição do duoji. “A palavra duodji está enraizada na vida Sámi e é difícil de traduzir, mas pode ser explicada como o jeito artístico Sámi de ser. Duodji é divertido e maravilhoso, já que o conceito varia com a variação de suas práticas foi incluído e excluído por sua vez da discussão da arte, tanto em geral, no mundo da arte quanto no contexto Sámi” (Gunvor, 2022a:255). Como uma ‘atividade Sámi’ é entendida sobretudo como trabalho manual ou artesanato, ligada ao dia a dia mas, ao mesmo tempo, pode ser usado por cerimoniais e rituais. Além de representar uma forma de subsistência, também assume um papel central na definição da identidade Sámi, especialmente no começo do século XX quando o processo de Norwegianisation tinha o objetivo de erradicar os elementos culturais e linguísticos dos povos originários Sámi e na época do ČSV. Com esta sigla define-se o período em que o povo Sámi ergueu a voz contra o colonialismo. O movimento foi particularmente forte durante os anos 1970 e 1980, o marco temporal foi o Altá protest, protestos massivos na Noruega no final dos anos 1970 e início dos anos 1980 em relação à construção de uma fábrica hidroelétrica no rio Altá em Finnmark, norte da Noruega.
O artista Iver Jåks (150:2022b) indica como “duodji e daiddaduodji têm que cobrir necessidades práticas e, nesse uso, nos trazem alegria […] Se a forma é prática, geralmente também é bonita”. Gaski e Gunvor (128:2022 b) afirmam que “a estética do duodji pode às vezes ser vista como njávva – meticulosamente lento – embora em Sámi, njávval seja usado como o oposto de doaimmalas – empreendedorismo”. É justamente a combinação desses dois elementos, lentidão e empreendedorismo, um dos muitos elementos que compõem o duodji focando-se não apenas no resultado mas no processo colaborativo.
Em vez de definir um tema abrangente para a Bienal, os curadores decidem guiar o próprio trabalho num processo de escuta e de aprendizagem do contexto local – com o qual ambos não são familiares, vindos do sul do país – e formulando quatro princípios para desenvolver a bienal: Pensamento Além da Fronteira (Beyond Border Thinking); Descentralização (Decentering); Imaginação da Terra (Earthed Imagination); Custódia (Custodianship).
Para além do deslocamento entre arte e artesanato, a Bienal transfigura as fronteiras territoriais que querem artificialmente dividir pessoas e tradições estabelecendo um diálogo que responde a uma escuta horizontal de uma imaginação coletiva. Uma escuta presta atenção aos recursos, pois o próprio formato Bienal pode ser um processo extrativista. A produção trabalha com a ecologia geral da Bienal, e com consciência de como manejar os seus recursos tanto na produção quanto no descarte pós-produção. Este é um elemento eticamente poderoso tendo em conta a situação não só de abuso dos recursos consequentes aos nossos hábitos de consumo excessivo, de que o mundo da indústria cultural é grande promotor, mas também a escassez devida à situação da guerra na Ucrânia. Nos remete para os orçamentos milionários dos pavilhões nacionais da Bienal de Veneza, para a insustentabilidade ecológica da produção de mega evento num território particularmente frágil como a cidade de Veneza, não só no que diz respeito à sua duração mas, precisamente, quanto ao rasto após o desmantelamento do espetáculo.
Estes elementos de escuta do território e de descentralização concretizam-se através de colaborações com espaços culturais espalhados no território, ampliando as oportunidades de visitas, num território caracterizado por dificuldades de deslocamento, especialmente no período invernal. Entre as parcerias, a Igreja de Jukkasjärvi, a Biblioteca da cidade de Kiruna, a associação artística Korpilombolo - responsável desde 2006 pelo Festival Europeu da Noite - o Sameslöjdsstiftelsen Sámi Doudji em Jokkmokk e o Centro Sámi de Arte Contemporânea, em Karasjok na Noruega. A intuição é permitir que as práticas artesanais e artísticas in situ contem as suas histórias a partir dos próprios lugares e que a população local possa beneficiar disso. Os enredos tomam formas diferentes: desde exposições descentralizadas – como a exposição Gulahallan Ja Birgen em Karasjok, resultado da colaboração entre o AIDA Archive e a Sámi University College de Kautokeino, ou a exposição na Biblioteca Municipal de Kiruna – até a presença de algumas obras proveniente de remotos lugares visíveis nas sedes principais da monstra em Luleå. É o caso de uma despensa para guardar leite, parte da coleção de Aunesgården, o museu de história local de Övertorneå, ou da coleção de tapetes – ranas – da associação cultural Korpilombolo. O espaço Galleri Syster – cujo tema este ano é “trabalho e amizade” – transforma-se num receptáculo de projetos descentralizados. Como dizem os galeristas: “Esta exposição retrata uma nova geografia da amizade que esperamos que continue além da Bienal”.
Além do formato rizomático, e dos três dias do Festival de abertura, a Bienal oferece uma série de palestras, filmes e workshops presenciais e online reunidos no programa Learning Room organizado em colaborações com Aine Art Museum, Garland Magazine, Haparanda Municipality’s Cultural Department, Kubn (organização cultural para jovens e crianças em Norrbotten), Norrbotten’s Crafts Advisor e Resurscentrum för konst. Concebido como um campo de testes para gerar novos insights e conhecimentos com e entre artesãos, artistas e organizações regionais, a Learning Room oferece um espaço para trabalhar com práticas e organizações que nem sempre encontram espaço no formato expositivo. Entre elas, o workshop Weaving Kiosk - um quiosque de tecelagem, realizado por Rosa Tolnov Clausen e seus colaboradores.
Os quiosques nórdicos situados na rua, assim transformados, permitem a quem não é familiar neste oficio, experimentar a tecelagem, ao mesmo tempo que oferecem aos tecelões avançados a oportunidade de estar num ambiente de troca e de aprendizagem com outros tecelões.
A Bienal revisita as suas origens como uma bienal de arte de inverno para gelo e neve há mais de trinta anos. Assim, na histórica piscina municipal Pontusbadet - uma das sedes em Lulea - exibe-se o vídeo Bothnian Sea Continues, gravação de uma performance que o artista Georg Tiller realizou na mesma piscina na 2004 Luleå Winter Biennial. A performance original centrou-se num grande pedaço de gelo extraído localmente que foi colocado na piscina enquanto o artista se sentava no gelo derretido cercado por nadadores. Testemunhas da performance original lembram que levou menos de uma hora para o pedaço de gelo de 1,5m de diâmetro em Pontusbadet derreter. Dezoito anos depois, devido ao aumento das temperaturas globais, a forma como interpretamos e pensamos sobre o gelo também vem mudando rapidamente, à medida que ele derrete lenta mas violentamente ao nosso redor, com consequências imprevisíveis para a vida de todos.
Três eixos guiam a exposição. O primeiro - “gelo e neve” - concentra-se nas condições materiais do gelo e da neve, tornando o derretimento do gelo uma das imagens emblemáticas das mudanças climáticas, e a produção de frio artificial como elemento fundamental para nosso modo de vida, economia global e política.
O segundo eixo - “extrativismo” - acompanha a tortuosa lógica pela qual a exploração de energias renováveis está atacando violentamente este território convenientemente definido como ‘terra de ninguém’ (wasteland). Segundo a académica Sámi Lisa-Rávna Finborg (2022:7), o princípio de propriedade de Locke argumenta que a natureza nômade das sociedades - por ele consideradas primitivas – retiraria delas qualquer direito de propriedade sobre a terra em que viveram e usaram desde tempos imemoriais. O conceito de Terra Nullius ( wasteland), um espaço que pode ser habitado, mas que não pertence a um estado, ou seja, a terra não é propriedade de ninguém, permite a Locke, e ao Iluminismo, de remover qualquer obstáculo moral à anexação e expropriação de terras povoadas da parte dos colonizadores. Tanto a Sul, como a Norte.
Como as lógicas extrativistas se estendem às artes e à cultura, o último eixo “tecer além dos baldios” (crafting beyond the wasteland) reivindica como “Norrbotten nunca esteve vazia”, mas ocupada por diferentes pessoas e práticas culturais. Aqui, o princípio da custódia torna-se particularmente importante dando espaço a artistas, artesãos e organizações que expressaram frustração com a marginalização do conhecimento, histórias e histórias que existem na região. Essas falam revelam como as categorizações violentas de pessoas e materiais operadas pelo Estado-nação se refletem em como a própria história foi escrita, e sobre como os recursos e o poder foram distribuídos. Torna-se explícito como as realidades complexas deste território, no passado e no presente, são determinadas não apenas para duras condições climáticas e ambientais mas, especialmente pela ganância dos governos nacionais através de dinâmicas que remetem as conquistas coloniais fora do território do império. Aqui a colónia e o império coincidem no mesmo território aonde as feridas do território são profundas, e continuam a se desenrolar nos planos da região para um futuro de energia verde, onde vemos a construção de iniciativas de energia livre de fósseis, silvicultura em larga escala, parques eólicos e mineração por meio da busca contínua de crescimento. O dia de debates realizados por ocasião da exibição do vídeo Bitcoin Mining and Field Recordings of Ethnic Minorities de Liu Chuang, desmente a imagem verde e progressista dos países nórdicos. Pelo contrário, monstra como a combinação de generosos subsídios governamentais, recursos naturais, clima frio e eletricidade renovável barata fazem do norte da Suécia um local ideal para a mineração da cripto-moeda digital bitcoin, assim como a implementação do armazenamento e transporte com temperatura controlada tornando-a um dos centros mundiais da indústria de superfood.
Embora em 2022 muitos foram os debates suscitados pela retoma pós COVID de eventos artísticos internacionais como a Bienal de Veneza, da qual seria interessante ter obrigação de divulgação pública dos custos, ou a própria Documenta, cujo escrutínio asfixiante a que o coletivo curatorial Ruangrupa foi submetido por meses, ofereceu um freak show contemporâneo do mundo da arte no seio de um dos países europeus mais ativos (especialmente economicamente) na soft promoção da indústria cultural no continente africano, e do movimento de(s)colonial no europeu - o mundo da arte continua dando pouca atenção a eventos menores, mas não para isso menos valiosos, como esta Bienal periférica. Concordando que o formato Bienal se tornou “por vezes insustentável para organizar, mostrar e pensar a arte”, os curadores defendem então que, “imaginada de outra forma, a Bienal pode ser também um recurso para o artesanato, um lugar para partilhar histórias, saberes e criar ligações que abrir novas perspectivas”. Assim, a exposição é concebida “como um lugar não só para mostrar o trabalho, mas também como um recurso para colaborar artistas, artesãos, lugares e organizações para desenvolver suas pesquisas e práticas em curso”.
Neste sentido, uma observação. A comunicação do evento continua a alimentar predominantemente um diálogo interno no território escandinavo. Pouquíssimas são as traduções de conteúdos, para além de línguas Sámi e do sueco, um exemplo entre outros, o filme realizado por Karl-Oskar Gustafsson sobre Gullahallan ja birger - uma exibição de Berit Kristine Anderson Guvsám, Gunvor Guttorm e Laila Susanna Kuhmunen, resultado de uma colaboração de dois anos com AIDA, ou Arctic Indigenous Arts and Design Archives – um arquivo que consiste em materiais retirados das práticas de diferentes artesãos. Trata-se de um material extremamente valioso onde as artistas e curadoras dialogam com os materiais compilados no arquivo, mas cujo acesso é bastante limitado. O mesmo acontece com as informações presentes nas salas expositivas. Questionada sobre as vontade de se abrir ao ‘outro’- esta vez definido através do deslocamento do centro que universalmente o define - Gunvor Guttorm responde: “começamos com o trabalho da Universidade Sámi – porque precisávamos de encontrar a nossa autodeterminação, mas agora conhecemos o nosso lugar, retomamos o nosso conhecimento, e estamos prontos para fazer colaborações externas também”. Há uma longa história de autodeterminação dos povos originários dos países nórdicos europeus que, muitas vezes, escapa aos olhos mesmo daqueles que concentram o seu pensamento crítico em países longínquos.
No fim de semana do encerramento da Bienal (15 de janeiro 2023) o seminário Earthed Imagination – disponível online nas paginas web da Bienal - fará uma retrospectiva da Luleå Biennial 2022, Craft & Art. Organizado em colaboração com IASPIS, o Programa Internacional de Artes Visuais e Aplicadas do Comitê Sueco de Bolsas de Artes, e dentro da plataforma Urgent Pedagogies, o encontro analisa as diferentes formas pelas quais a exposição envolveu e facilitou o aprendizado e a imaginação coletiva.
Referências
Let the River Flow, , An Indigenous Uprising and its Legacy in Art, Ecology and Politics (2002a), edited by Katya Garcia-Anton, Harald Gaski and Gunvor Guttorm, OCA;
Duodji Readers, (2022b), edited by Harald Gaski & Gunvor Guttorm, Sámi allaskuvla & Norvegian Crafts Davvi Girji (2022b)
Čatnosat. The Sámi Pavilion, Indigenous Art, Knowledge and Sovereignty, (2022c), edited by Lisa-Rávna Finborg, Katya Gracía- Anton, Beaska Niilas, OCA.