Comemoração verde e prática não-invasiva - o caso de “O Salgueiro da Ester”
Há um ano, falámos do projecto de Erinnerungskultur (cultura de lembrança), “O Salgueiro da Ester”, um acto de plantar um jovem salgueiro visto como erguer um monumento vivo e lápide de uma mãe judia assassinada em Auschwitz.
Este ano, a convite do FestivALT da cultura e juventude judaica polaca, a co-autora do projecto e a minha colaboradora artística, Marta Stanisława Sala falou do projecto numa discussão sobre a comemoração verde e a prática artística não-invasiva da tragédia judaica, no início de Julho de 2023, na cidade de Cracóvia.
A conversa, moderada por Magda Rubenfeld-Koralewska, co-directora do festival e antropóloga, contou com a participação do co-fundador do festival, artista e professor de cinema, americano de origem judaica, Jason Francisco, da artista também americana e de origem judaica, Daniela Naomi Molnar, e Marta Stanisława Sala, a quem tive a tentação de classificar como artista polaca, católica e eslava.
A Marta discorda de tal classificação e reitera a sua identidade europeia. Fizemos algumas discussões para completar o seu artist talk proferido em inglês.
Ninguém, entre as pessoas que fizeram intervenções no mencionado evento, abordou directamente o tema mas concentraram-se na apresentação das suas próprias práticas. Jason Francisco falou da sua experiência de percorrer os sítios com memórias judaicas em toda a Europa onde faz recolha de plantas.
Por sua vez, Daniela Naomi Molnar reiterou o que Francisco dissera e evocou também a recolha de plantas dos sítios com passado pesado como materiais para usar com as cores nas suas pinturas.
A apresentação da Marta parece-me o mais pertinente da conversa, pois o seu caso pode provocar a contradição de “práticas não-invasivas”. Trata-se da plantação de uma árvore, ou seja intervenção física, que é, ao mesmo tempo, verde.
Visto a relevância do tema, transcrevi e traduzi a apresentação da Marta para o chinês mandarim e publiquei-a com um curto comentário no “The News Lens”, uma plataforma asiática de notícias sediada em Formosa. O comentário é inspirado pelas próprias palavras da Marta que concordou posteriormente.
As duas notas julgadas úteis no contexto de língua portuguesa são inseridas na seguinte transcrição:
Vila semi-judaica antes da guerra
Olá, sou a Marta Sala. Fico contente por poder estar aqui. Gostaria de partilhar o projecto, não de Cracóvia, mas de Chrzanów. É uma pequena cidade a 40 quilómetros de Cracóvia em direcção ao oeste. Esta cidade era uma cidade semi-judaica antes da Segunda Guerra Mundial. Cresci na cidade e não aprendemos muito sobre a história local.
Claro, quando andávamos na escola primária, aprendi sobre Auschwitz e vimos as fotos da deportação, mas em Chrzanów em si há poucos traços que permitam reconhecer que tipo de cidade era.
Sou uma artista. Trabalho com as pessoas e foi um projecto público.
Sinagoga demolida na Polónia comunista
Mas diria também que foi um projecto particular e muito pessoal. O nosso pai nasceu em Chrzanów e viu a demolição da Grande Sinagoga nos anos 70, porque se via a Sinagoga da janela do apartamento onde crescemos. (Nota do autor: o Senhor Eng.º Wojciech Sala foi o primeiro burgomestre depois de a democracia ter sido restaurada no país.)
Era um apartamento pós-judaico. Podiam ver o antigo Largo da Ester mas o nome já lá não está. Ele podia ver que era uma grande sinagoga na praça, mas foi demolida nos anos 70. (Nota do autor: a Marta adiciona posteriormente que as propriedades judaicas foram nacionalizadas pelo regime comunista e os descendentes das pessoas que sobreviveram só puderam recuperar as casas no tempo da democracia. Houve apenas duas casas reclamadas. O apartamento onde a família Sala viveu fica numa destas duas casas pós-judaicas.)
Não conheci a sinagoga, mas o meu pai contava-nos a história e, sim, há tantos anos que eu não sabia o que fazer com esse conhecimento. Como artista, senti-me sobrecarregada com toda a trágica história da população judaica em Chrzanów até conhecer Robert Yerachmiel Sniderman em Berlim, no Cemitério Judeu do Lago Branco, quando ele criou o seu projeto “Lost in Jüdische Friedhof”.
Partilhei a sensação de estar perdida e começámos a conversar sobre como lidar com a história e as memórias. Assim por diante e no mesmo ano de 2018, vi no Facebook que o salgueiro-chorão que crescia no (antigo) local da grande sinagoga foi cortado. Então começámos a falar sobre isso e a pensar o que isso poderia significar.
Símbola da coexistência eslavo-judaica
Salgueiro-chorão, em polaco, wierzba płacząca, também é salgueiro e chorão. Só o nome tem um poder tão grande, mas simboliza também a tristeza. Lembro-me desta árvore que era tão bonita. Costumávamos brincar debaixo da árvore e sentir algum poder mágico nela. Depois de ser cortada, fiquei muito triste e começámos a conversar e a investigar que, na verdade, o salgueiro tem muitos significados simbólicos e propriedades curativas.
Por exemplo, a casca do salgueiro é a aspirina natural. Podem usá-la contra a dor. Havia também muitas outras receitas que foram partilhadas pela população eslava e judaica. O salgueiro poderia ser usado contra a infertilidade, a insónia ou as doenças da pele e assim por diante.
Entretanto, decidimos plantar uma nova árvore, mas tratá-la como um memorial vivo da população viva, porque, no lugar da sinagoga, há uma placa com as informações sobre a demolição da sinagoga, a deportação da população judaica de Chrzanów. Esta placa é como uma lápide. É tudo sobre a morte.
Queríamos muito criar algo sobre a vida, algo que também pudesse ligar às pessoas de diferentes lados. Encontrámos o FestivALT. Houve uma convocatória aberta. Quando propusemos esse projecto, eu não percebia nada de plantas e nunca tive um jardim.
Então também foi muito útil encontrar as pessoas ao redor (do assunto) e podem ajudar a organizar e tentar reunir mais pessoas para conseguir isso. Assim, tivemos apoio do FestivALT e também do museu em Chrzanów, que se preocupava com a história judaica.
Com o Centro Cultural (de Chrzanów) organizámos uma série de encontros acerca deste projecto, do significado de um memorial vivo e do salgueiro-chorão. Convidámos o Dr. Marek Tuschewicki - que é um óptimo investigador e escreveu o grande livro sobre práticas medicinais eslavas e judaicas - para que também pudesse partilhar em detalhe essas propriedades do salgueiro.
Participação de um sobrevivente
Publicámos uma carta aberta em polaco e inglês. tentei entrar em contacto com qualquer pessoa que pudesse partilhar as histórias de Chrzanów ou quaisquer memórias relacionadas com a árvore.
Ninguém sabe como aconteceu essa primeira árvore crescer ali. Provavelmente era algo natural. Há duas histórias diferentes de como foi cortada. Algumas pessoas dizem que estava doente, mas outras disseram que a árvore estava bem e na altura cortaram massivamente as árvores por toda a Polônia. Ninguém sabe exactamente o que passou e sobretudo sobre essa árvore.
Graças a esta carta aberta, tivemos uma bela experiência porque recebemos um e-mail de Sharon Wasserteil de Israel, que nos escreveu que o seu pai Abraham - que ainda está vivo e agora com 95 anos - foi o último judeu que sobreviveu no gueto de Chrzanów.
Estava escondido entre as paredes quando era criança e com a sua mãe. O seu nome era Ester e foi assassinada em Auschwitz. Quando Sharon ouviu falar sobre o projecto “O Salgueiro da Ester”, eles contactaram-nos e decidiram vir plantar esta árvore connosco.
É difícil para mim pensar nisso como um projecto artístico porque era mais como uma experiência real e algo de especial.
“Sem grande espectáculo”
Então, após um ano (e mais) de investigação e encontros com as pessoas juntando as histórias e as entrevistas, apresentámos uma exposição no FestivALT em Cracóvia com vídeos, fotos, colagens. Fizemos este projecto junto com a minha irmã Katarzyna Sala, que também está aqui, e Robert Yerechmiel Sniderman, que é um poeta que mora nos Estados Unidos - a sua bisavó e o seu bisavô mudaram-se da Galícia (polaca) para os Estados Unidos. Preparámos também potes de vidro que continham as receitas do salgueiro e estivemos com o jovem salgueiro que levámos de comboio a Chrzanów para o plantar.
Tentámos fazer este projeto da forma mais simples possível e que todas as pessoas pudessem fazê-lo, sem grande espectáculo.
A ideia também foi que, antes de plantar a árvore, se ia recolher água. Era performance (happening) que se baseava no ritual tradicional - água de silêncio. Quando uma criança estivesse doente, ia-se recolher a água à noite, mas a água viva do rio em completo silêncio, e depois lavava-se a criança nessa água. Depois disso colocava-se essa água no salgueiro e o salgueiro devia retirar a doença da criança.
Então, usámos esta tradição para recolher a água para a nova árvore, que poderia retirar os nossos problemas e as tristezas, mas também um pouco da nossa força.
Durante a viagem com o jovem salgueiro para Chrzanów, parámos em Trzebinia. Foi também a cidade onde a população judaica era muito forte antes da Segunda Guerra Mundial.
Fomos ter com o senhor Morawiecki (estudioso da história local), que partilhou conosco a história de Trzebinia e nos mostrou também o túmulo ao lado da estação de comboios, onde as pessoas judias e não-judias ainda estão enterradas sem sinal disso. Também nos mostrou o maior contexto das pequenas cidades de lá.
Há também uma sinagoga em Trzebinia e agora é uma grande coisa porque a sinagoga está a cair aos pedaços. Muitas pessoas tentam salvá-la e solicitam ao Estado que se preocupe com isso. Há uma petição também publicada no Facebook do FestivALT. (É) um sinal de que as pessoas se preocupam com a memória.
Mas para ser sincera, durante o processo de investigação, também houve pessoas que não quiseram partilhar os seus nomes porque ainda há tensão a respeito das propriedades e tensão na cidade. Nem toda a gente se sente aberta para esse tipo de projectos. Assim, com a árvore, tentamos evitar, ou não evitar, mas colocar o acento nalgum outro lugar nessas práticas comuns, práticas de cura.
Foi muito útil porque não falámos muito da política, mas tentámos encontrar algo que juntasse as pessoas.
Viemos a Chrzanów para plantar a jovem árvore. Encontrámo-nos ao lado da estação de comboios de Chrzanów, onde a população judaica foi deportada para Auschwitz e fizemos uma rota de volta com a árvore e as pessoas que vieram de todo o mundo para plantar esta árvore.
Plantámos a árvore e ela ainda está a crescer.
O autor expressa o seu sincero agradecimento a Carmen Frias e Gouveia pelas suas preciosas sugestões a fim de melhorar a redação em língua portuguesa deste artigo. No entanto, o autor assume a total responsabilidade pelo conteúdo.