Pandemia e arte: pensar (de novo) num “isolamento coletivo” - um diálogo com a artista de Berlim, Marta Stanisława Sala
Precisamente há um ano, Marta Stanisława Sala, artista polaca radicada em Berlim, juntamente com a artista alemã Johanna Reichhart e colegas, do outrora, do mestrado em arte em contexto da Universidade de Artes de Berlim, empreendeu uma iniciativa colaborativa para fazer uma “pausa” de “trabalho” num contexto artístico, “Arbeitspause im Görli - Künstlerische Beziehungssysteme im Öffentlichen Raum” (“Pausa de Trabalho no Görli - Sistemas de Relacionamento Artístico no Espaço Público”, também traduzido em português “Intervalo no Trabalho”).
Disponibilizamos agora a versão portuguesa actualizada de um diálogo que fizemos há um ano com Sala por duas razões. Primeiramente, estamos a organizar a primeira exposição individual, em Novembro, em Berlim, da iniciativa cujos membros principais têm formado uma colectiva de artistas com a mesma denominação “Arbeitspause”. Em segundo lugar, com os tempos já frios e enfrentando os elevados preços de energia, ficamos a pensar, de novo, num isolamento possível, no contexto de uma Berlim que tem sido afectada pela invasão russa contra a Ucrânia.
O objetivo da colectiva foi claro: “trabalhar” em algo juntamente com participantes e visitantes do Parque de Görlitz (alcunhado com a sua forma diminutiva alemã “Görli”) em Berlim, para que uma “pausa” fosse possível. O trabalho deve preceder o repouso, pois como demonstra o termo “Arbeitspause”: tal repouso é somente possível no quadro de trabalho.
Inspiradas pela ideia e conceito académico do “commoning”, Sala e Reichhart iniciaram, no outono passado, a primeira ronda de eventos no Görli com a abordagem de diversas temáticas para cada uma das cinco “acções”: “Common Ground” (2 de Setembro de 2021), “Common Skills” (23 de Setembro), “Common Surviving” (25 de Setembro), “Common Nap” (30 de Setembro), e “Artists’ Commons Parade - Feierabend” (9 de Outubro. “Feierabend”, significando, literalmente, a “tarde da festa”, indica o fim de um dia de trabalho em alemão).
Patrocinado pelo Município de Friedrichshain-Kreuzberg e pela Comissão do Estado de Berlim “Berlim contra a Violência”, o projecto “Pausa de Trabalho” teve também outro objectivo pretendido pelas entidades patrocinadoras: diversificar o uso do Parque de Görlitz, conhecido em Berlim pela sua tolerada venda de drogas e aumentar a participação social de berlinenses neste espaço público, pois, o Görli é um dos poucos parques em Berlim onde coexistem pessoas vendedoras de drogas tolerados e policiais em patrulha.
Nesse contexto específico, uma complexa constelação de artistas participantes “fazendo algo com a malta”, foi concretizada com várias teorias académicas ao realizar tarefas “administrativas” - como mobilizar artistas a interagir com pessoas que estavam no parque ou transeuntes de acaso, sem deixar, ao mesmo tempo, de ter constantemente em consideração a inclusão social e intelectual. Tudo isso estava constantemente em questão.
O diálogo a seguir apresentado foi conduzido após a primeira acção da iniciativa em Setembro de 2021, “Common Ground #01”. Foi uma sessão de leitura aleatória em que artistas que asseguraram a organização e participantes de diversas origens culturais e com diferentes línguas maternas enfrentaram o problema da tradução e a complicada questão da hierarquia linguística na academia (e, portanto, da hierarquia de ideias). Nesse diálogo, parcialmente escrito e costurado nas várias peças de tecido, e agora reproduzido em forma escrita de entrevista, Sala expressou-se como foi atingido o seu desejo genuíno de romper o “isolamento colectivo” que muitas pessoas – inclusive artistas – foram enfrentando até aos tempos menos frios deste ano.
Uma versão taiwanesa (em mandarim) do mesmo diálogo foi publicada na revista de artes “Insular City Zine”, com o título em inglês: “‘Break’ and ‘work’: a short discussion on ‘Arbeitspause’ with Berlin-based artist Marta Sala”. Após a publicação da mesma, Sala convidou-me a participar activamente no projecto enquanto “artista” e “antropólogo visual” - etiquetas que, embora necessárias, ainda questiono. Com este convite foi-me concedido o estatuto de “artista independente” e “antropólogo visual independente” pela Autoridade de Estrangeiros de Berlim.
À medida que o inverno volta a aproximar-se, o “isolamento colectivo” acima mencionado, mesmo sendo menos claro se isso será de novo imposto, é ainda um tema muito presente para muitas pessoas – tanto para quem está “dentro” ou “fora” nas diversas “áreas” da sociedade.
Esperamos que este diálogo, ou entrevista, que foi generosamente revisto pelo amigo e fotógrafo Jorge Veiga Alves, possa dar a conhecer esta parte da cena artística de Berlim e juntar-se às vozes berlinenses dedicadas à acção coletiva e global, independentemente da sua forma ou das nossas muito diversas origens.
O projeto parece uma resposta directa à crise da pandemia, aos confinamentos e às subsequentes questões existenciais levantadas para todas as pessoas, incluindo artistas. “Arbeitspause”, literalmente “pausa de trabalho”, parece ambíguo em alemão. Para muitas pessoas, pode significar uma espécie de lazer. Ao mesmo tempo, poderia também implicar o desemprego. O que é que te trouxe a este projecto e como trabalhas esta pausa como trabalho para, simultaneamente, aumentar a tua produtividade criativa e artística e chamar atenção para a importância da ideia da pausa no trabalho em geral?
Em primeiro lugar, não diria que fosse uma resposta a uma “crise”. É uma tentativa de fazer algo de bom para a comunidade, para o comum, ou para o seu “commoning”. Tive a sorte e o privilégio de ultrapassar os primeiros tempos da pandemia não tanto como uma crise no seu sentido literal. Muita gente concordaria comigo, uma vez que vivemos em Berlim, uma cidade relativamente rica onde tivemos a regalia, ou mesmo o luxo, de permanecermos com segurança e calma.
Além disso, é preciso definir ou mesmo redefinir o que significa uma pausa neste contexto particular da prática artística. Enfim, esta expressão alemã é “Arbeitspause”. “Uma pausa no trabalho”, quer isto dizer que a pausa está sujeita ao trabalho. A pausa é temporal, espacial e emocionalmente condicionada pelo trabalho. Assim, coloca-se a questão se este projecto artístico ou trabalho artístico em geral é um trabalho, sobretudo muitas vezes o trabalho artístico não é visto algo de “sério”.
Em alemão, trabalho como paixão, amor ou profissão dá um grande espaço para interpretação. O termo “Reproduktionsarbeit” (literalmente “trabalho reprodutivo”, significando nomeadamente a parentalidade) pode ilustrar muito bem a tal ambiguidade. Além disso, dada a intercambialidade de “trabalho” num contexto artístico com, por exemplo, “trabalho” de “trabalho doméstico” ou mesmo “amor”, tal comparação com a produtividade, mesmo que a conotação venha com a palavra “trabalho”, parece-me perigosa. Por exemplo, quando observamos o amor como trabalho, quanto custaria o abraço de uma mãe ou a intimidade com alguém que se ama?
A outra questão é como as pessoas conseguiram assumir tal pausa durante a pandemia. Como o seu significado varia em cada contexto pessoal específico, a pausa no trabalho pode ser uma catástrofe pessoal ou, usando a tua palavra, o “lazer”. Com o estatuto oficial e burocrático de “artista”, tive apoio financeiro do governo federal alemão durante o “lockdown”, o confinamento. Mas o “breakdown” emocional, o colapso provocado e sustentado pelo isolamento social - devo repetir que temos o privilégio de não nos preocuparmos muito com isso, propôs a necessidade de repensar não só o que é trabalho ou repouso num contexto artístico, mas também o que “Freizeit” (“tempo livre” ou “lazer” em alemão) é. A arte não é criar-se e depois consumir-se isoladamente. É uma actividade social: trata-se das acções sociais entre a pessoa criadora e a pessoa consumidora.
Assim, estamos aqui a trabalhar com a comunidade a fim de criar um intervalo que por sua vez gera um tal círculo de “pausa de trabalho”.
No contexto linguístico europeu, as palavras “Arbeit” em alemão, “praca” em polaco ou “trabalho” em português parecem-me tanto ambíguas como o cantonense, no qual “工夫” não se refere somente a um trabalho por troca de remunerações. De volta ao contexto linguístico europeu, parece-me que o “trabalho”, envolvendo dinheiro ou não, é uma troca de trabalho por uma certa compensação. Quando se fala de amor - tanto relações exclusivas quanto polígamas - a palavra “trabalho” no sentido de “trabalho doméstico” ou “amor” pode ser usada para descrever trocas não monetárias. Nesse sentido particular de “trabalho” com toda a sua ambiguidade, qual é o significado de pausa? Essa questão tem me incomodado desde que pensei na pausa como parte do trabalho e como as pausas podem aumentar a produtividade.
Acho que, no certo sentido, a palavra inglesa “break” ou a polaca “przerwa” deixa claro que pausar também é quebrar (algo). Se falarmos sobre isso etimologicamente, posso continuar a romantizar o vínculo com “breakdown”, como os colapsos emocionais que tive, como muitas outras pessoas, durante vários confinamentos difíceis. Como dito, fazer arte é uma actividade social, composta de interações sociais que precisamos recuperar urgentemente antes mesmo do fim completo da pandemia - se isso for possível neste momento.
Este projeto está, portanto, a possibilitar o encontro e a troca de diversos pensamentos, ao considerar o que pode ser uma pausa, bem como catalisar uma criação artística ou uma reação aos significados relacionados com o prazer ou o descanso. Falando de forma egoísta, todas as medidas contra a pandemia têm praticamente impossibilitado as apresentações de arte em locais fechados e, portanto, o projecto também é impulsionado por uma preocupação existencial para nós artistas que precisamos de contactos humanos não apenas ao nível emocional, mas também a um nível muito prático. Mas de alguma forma o “Arbeitspause” apresenta uma oportunidade muito boa para que repensemos as teorias de como utilizar os espaços públicos ou semipúblicos existentes para um propósito artístico - ou, para dizer mais diretamente, profissional.
Nesse sentido, o “Gemeinschaffen” em alemão, ou, em inglês, o “commoning”, deve ser praticado no seu sentido mais literal: fazer algo juntamente. Com Costanza Rossi do Chile, Johanna Reichhart, da Alemanha, Marcos García Pérez da Espanha, e outros participantes locais e internacionais como minha irmã Katarzyna e tu de Macau. Estamos a organizar-nos para que esta pausa aconteça, principalmente nesse sentido de pausa que está sujeita ao trabalho. Sem trabalho, a pausa não faria sentido. Temos preocupações artísticas diferentes em termos teóricos e habilidades práticas se falarmos da nossa arte, como os têxteis no meu caso. Mas o principal é ter tempo, trabalhar e refletir no processo com as pessoas.
- Pausa -
A discussão destes temas está longe de estar encerrada e ultrapassada. Daí surgem mais questões: Num futuro próximo, os diversos países irão ou não voltar a estar sujeitos a restrições às suas actividades sociais em virtude de, por exemplo, escassez de fontes energéticas? De bloqueios à circulação de dados? Será que as sociedades aprenderam alguma coisa sobre essas restrições às actividades sociais durante a pandemia e agora estarão melhor preparadas para minorar ou ultrapassar futuras restrições?
Resta-nos confiar no engenho humano.
Fotos: Cheong Kin Man