“Não visitem a sala colonial”, ou como confrontar o passado e os legados coloniais

Catarina Simão é uma artista e investigadora cujo percurso tem sido marcado pela análise de narrativas coloniais através de parcerias colaborativas, projetos de longa duração e exposições que partem da noção de arquivo e que cruzam diferentes meios como documentação escrita, fotografia, vídeo e desenho.

“Não visitem a sala colonial” resulta de uma longa pesquisa que Catarina Simão desenvolveu desde 2021 em parceria com o Museu de Lamego e com a Escola Secundária de Latino Coelho em torno de um arquivo colonial escolar. Desse projeto resultaram um filme e uma exposição patente ao público no Museu de Lamego entre 14 de dezembro de 2024 e 27 de abril de 2025. A exposição propõe uma reflexão crítica sobre a memória colonial e o modo como esta continua a ser preservada – ou naturalizada – no presente.

A Sala

A Sala Colonial do Liceu de Lamego foi inaugurada em 1938 e resistiu ao regime democrático até 1980, ano em que foi encerrada. Da sala apenas se conhece uma fotografia onde se destaca ao centro a réplica de um padrão dos descobrimentos. Esse objeto sobreviveu até aos dias de hoje, sendo possível vê-lo, no filme, num canto de uma sala de aulas perante a indiferença dos estudantes.

Aspeto da Sala Colonial no Liceu de LamegoAspeto da Sala Colonial no Liceu de Lamego A sala era composta por 292 peças provenientes das ex-colónias africanas – Angola, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe – trazidas por militares e familiares da região de Lamego, tais como publicações coloniais, artefactos africanos, espécies vegetais, fotografias, peles e crânios de animais. Esta panóplia de objetos contribuía para dar uma ideia de grandeza das colónias e a sua importância para Portugal. Após o 25 de Abril de 1974, a sala foi transformada em sala de geografia, como se o passado colonial impulsionasse o ensino de outras latitudes. Alguns materiais permaneceram no Liceu, no designado Museu de Ciências Naturais, outros transitaram para o Museu de Lamego.

A sala apresentava-se como um espaço de cultura visual a partir de um discurso expositivo, assemelhando-se a tantas salas em feiras ou exposições como a Grande Exposição Industrial Portuguesa (Lisboa, 1932), a I Exposição Colonial Portuguesa (Porto, 1934), a Exposição Histórica de Ocupação (Lisboa, 1937), a Exposição-Feira de Angola (Luanda, 1938), ou a Exposição do Mundo Português (Lisboa, 1940), para citar apenas alguns exemplos contemporâneos da data de criação da sala colonial.

O Ato Colonial, consagrado na Constituição de 1933 definia que era “da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que neles se compreendam”. Para além de se pretender construir e fortalecer a ideia de um império uno e indivisível em torno de uma nação única – Portugal – defendia-se também, através da “ação civilizadora”, o “legítimo” controlo dos territórios coloniais e a exploração dos recursos naturais em prol da metrópole.

Deve entender-se a conceção da sala – existente em outros liceus da época – como resultado de um vasto programa de construção iconográfica do projeto colonial português. A questão colonial e o seu império são pontos cruciais no Estado Novo desde os anos 30 do século XX. No ensino, Portugal afirmava-se como uma nação do Minho a Timor, onde eram apresentados os feitos “gloriosos” de conquista de territórios bem como a relação “harmoniosa” entre colonos e colonizados, onde se enfatizava o excepcionalismo da miscigenação portuguesa, condição essa teorizada no luso-tropicalismo do sociólogo Gilberto Freyre.

Noutras vertentes de divulgação das colónias na metrópole, organismos como a Agência Geral das Colónias / Agência Geral do Ultramar e o Secretariado de Propaganda Nacional / Secretariado Nacional de Informação organizavam diversas manifestações culturais que dessem a conhecer ao público em geral as colónias, como exposições, feiras de amostras, divulgação de objetos e produtos coloniais, campanhas cinematográficas e publicação de monografias, jornais e relatórios, que contribuíam para um objetivo comum em torno de um projeto imperial. A propaganda do Estado Novo aliava a cultura visual e textual de uma forma abrangente com capacidade de difusão e influência ideológica na opinião pública e chegando a todos os estratos da sociedade portuguesa.

O Filme

No âmbito de um projeto artístico e educativo, a primeira apresentação do filme “Sala Colonial” teve lugar em junho de 2022 na Escola Secundária de Latino Coelho, em Lamego, uma versão mais longa da que é apresentada atualmente em exposição (28’27’’).

 Com a participação de estudantes de uma turma do 10.º ano, da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, bem como professores, um antigo diretor da escola, e um sobrinho bisneto de um doador de uma das peças, o filme apresenta-se com uma narração aberta possibilitando várias leituras do arquivo junto não só da comunidade escolar, mas também da comunidade lamecense.

O filme tem início no Museu de Lamego, que alberga alguns dos objetos em depósito provenientes da referida sala. O contacto de jovens estudantes com a coleção de artefactos de origem africana suscita vários debates e autoquestionamentos do passado histórico, inscrevendo-se nos debates atuais sobre restituição, descolonização do saber e reparação histórica, temas igualmente em destaque, a título de exemplo, no mais recente documentário Dahomey de Mati Diop (2024).

Os encontros que são estabelecidos junto da coleção africana evocam não só vestígios do passado colonial de Lamego, mas também, transversalmente, ecos de uma memória coletiva do país.

A Exposição

Inaugurada no Museu de Lamego a 14 de dezembro de 2024, a exposição “Não visitem a sala colonial” é o culminar de um projeto colaborativo coordenado por Catarina Simão. A exposição contou com a colaboração participativa de vários investigadores, artistas, escritores e mediadores culturais que integraram uma programação paralela de visitas guiadas, oficinas, mesas-redondas e debates.

Partindo de algumas questões-chave: 1) Os arquivos podem mentir? 2) O museu reflete quem somos ou quem não somos? 3) Lembrar o passado: aprender ou desaprender? e, 4) O racismo vem da História?, a exposição propõe não apenas uma visita, mas um confronto. Através de material proveniente do arquivo da Escola Secundária de Latino Coelho (antigo Liceu de Lamego), Catarina Simão apresenta na exposição livros didáticos, mapas, objetos e coleções etnográficas, objetos utilizados em contexto pedagógico durante o Estado Novo. 

No ato de expor, a artista desmonta o passado colonial e interroga o presente. Os materiais expostos são apresentados como vestígios de uma ideologia colonial que subsiste em tantas instituições portuguesas, geralmente de uma forma anacrónica. A presença de objetos africanos em depósitos museológicos, não raras vezes sem mediação crítica, é enfatizada na exposição, sendo talvez um dos aspetos mais contundentes do projeto de Catarina Simão. Questiona-se a própria noção de arquivo, como espaço de conhecimento, saber e devoção e repositório de memória. A exposição é composta por diferentes núcleos, onde o visitante é confrontado com a complexidade dos materiais e é convidado a pensar sobre os mecanismos de exotização e racismo.

Quando se comemoram os 50 anos do 25 de Abril (2024) e as independências das ex-colónias africanas (2025), esta exposição – ao tornar visível o que muitas vezes é ocultado – é urgente e necessária.

por Inês Vieira Gomes
Vou lá visitar | 25 Abril 2025 | Catarina Simão, coleções, descolonizar o museu, Museu de Lamego