Faces ocultas do trauma português contemporâneo, sobre “Despojos de Guerra” de Leonel de Castro

fotografias de Leonel de Castrofotografias de Leonel de Castro

 

Despojo | nome masculino

1. O que se desprende ou cai (depois de ter servido de revestimento ou adorno).

2. Espólio.

3. Presa feita ao inimigo.

A exposição Despojos de Guerra, de Leonel de Castro, pode ser vista no Centro Português de Fotografia, no Porto, entre 20 de abril e 20 de outubro de 2024. Apresentado como um ensaio de fotografia documental, resulta do trabalho que o fotojornalista desenvolveu com a Associação dos Deficientes das Forças Armadas e com militares portugueses e africanos que combateram nos três teatros da guerra colonial/de libertação, entre 1961 e 1974: Angola, Guiné-Bissau e Moçambique.

Cinquenta anos volvidos do fim da guerra colonial/de libertação, várias são as feridas que continuam abertas. Estima-se que cerca de 1 milhão de soldados metropolitanos foram mobilizados e desses terão morrido cerca de 10 mil. A esse número acrescem os combatentes africanos e a população civil, ascendendo a 50 mil mortos no total. O número ‘oficial’ de deficientes portugueses ronda os 16 mil soldados, mas não há um estudo que quantifique o número de ex-combatentes com stress pós-traumático ou outros distúrbios psico-traumáticos vividos por grande parte dos soldados que combateram em África.

“Para Angola, rapidamente e em força”1

Cinco meses após o massacre de 15 de março de 1961, perpetrado por forças de Holden Roberto que dirigia a União dos Povos de Angola (UPA) e que espoletou a guerra, através do Secretariado Nacional de Informação (SNI) o governo organizou a exposição fotográfica “Por que nos batemos em Angola”, inaugurada em agosto em Lisboa e em novembro no Porto, de forma a ‘explicar’ e a justificar à população metropolitana a ação militar portuguesa através de imagens. Ainda no campo da propaganda em imagens, a 8 de agosto de 1961 no Palácio Foz em Lisboa, estreou o filme “Angola – Decisão de continuar” e posteriormente foi exibido pela Rádio e Televisão de Portugal (RTP) em 27 de dezembro de 1961, uma iniciativa entre tantas outras do esforço de guerra convertido em reportagens e documentários de propaganda. Num país sob censura, onde os meios de comunicação eram controlados, o governo cedo percebeu o papel que o poder das imagens desempenharia a sensibilizar a opinião pública e a mobilizar a sociedade civil para a necessidade de defender os territórios colonizados em África.

Entre abril e dezembro de 1961 foram mobilizados cerca de 33 mil soldados para Angola. O conflito acabou por se estender à Guiné-Bissau (1963) e Moçambique (1964) ao longo de 13 anos, tornando-se a última e mais longa guerra colonial levada a cabo por um país europeu. Para tal envergadura, só foi possível graças a um serviço militar obrigatório para todos os cidadãos portugueses do sexo masculino. Os jovens, entre os 18 e os 21 anos, eram destacados em comissões por um período de 24 meses. Com o decorrer dos anos, o apoio coletivo a esta causa ‘nacional’ decresceu. A consciencialização que a realidade era diferente daquela que era convenientemente contada provocou um decréscimo no número de mobilizados e um aumento de desertores (cerca de 8 mil), assistindo-se à chamada ‘africanização’ da guerra a partir de 1966, que contou com a incorporação no exército português de homens provenientes dos locais em conflito. 

Os soldados foram relegados a uma dupla invisibilidade: durante a guerra, os feridos eram escondidos pelo regime para que não fossem revelados os horrores da guerra; durante o processo democrático, foram remetidos ao esquecimento, não obstante os esforços da Associação dos Deficientes das Forças Armadas na luta de direitos e apoios aos ex-combatentes. Estes são hoje recordados pela objetiva de Leonel de Castro.

“Faces ocultas do trauma português contemporâneo”2

A exposição resulta de um projeto pessoal de Leonel de Castro que desejava retratar deficientes militares ao longo de três anos (2020-2023). O fotojornalista quis homenagear os jovens soldados de então que, ao serviço da pátria, ficaram com marcas indeléveis. 

O visitante é recebido por um vídeo em contínuo (6’09’’) onde pode ver uma sessão fotográfica com recurso a uma das técnicas fotográficas mais antigas: o colódio húmido, técnica que remonta a 1851 e que nos remete assim aos primórdios da fotografia. Leonel de Castro não estava muito familiarizado com esta técnica, mas considerou que daria a dignidade aos retratados que a fotografia digital não consegue. Segundo o próprio, o colódio húmido cria alguns defeitos do ponto de vista técnico, “mas eu encontrava naquela estética uma forma de remeter para a guerra.”3 Não deixa de ser curioso que uma das técnicas mais antigas da fotografia tenha sido escolhida para retratar os ex-soldados. A fotografia é contemporânea do colonialismo oitocentista e foi um poderoso aliado do projeto colonial. O recurso a uma das técnicas fotográficas primordiais como que encerra, de certa forma, o ciclo da história do colonialismo em África, com o retrato de soldados envolvidos na guerra colonial/de libertação que ditou o seu fim. Por questões de logística, o artista recorreu à fotografia digital médio formato, película de grande formato 9x12, película panorâmica 35mm e médio formato. O vídeo revela também a cumplicidade entre o fotógrafo e o fotografado, quer no processo de captação, quer no momento de revelação da imagem.

Dividida geograficamente – correspondendo aos três teatros de guerra, Angola, Guiné-Bissau e Moçambique –, a exposição apresenta diferentes suportes, equivalente a diferentes camadas e/ou leituras da guerra: os retratos em colódio húmido de ex-soldados portugueses emoldurados em caixas de luz; as imagens de paisagens da guerra, edifícios abandonados, cemitérios em África – onde o silêncio impera – e imagens de ex-combatentes africanos, a cores e a preto e branco; e, as imagens de arquivo que revelam uma parafernália de objetos e fotografias na posse dos soldados. Ao longo da guerra, em paralelo à narrativa oficial, emergiu uma narrativa visual vernacular. Foi prática comum os soldados tirarem fotografias, enviarem para os seus familiares e amigos e receberem fotografias em troca, a par da correspondência escrita em formato de cartas e aerogramas. Uma das fotografias de arquivo reproduzida na exposição é talvez uma das imagens mais recriadas pelos soldados: um soldado branco abraçado a uma mulher negra seminua, numa espécie de ato performativo de masculinidade face à ‘disponibilidade’ da mulher africana. É-nos dado a ver o verso da fotografia, pois a mensagem escrita é tão importante como a imagem:

29/1/71

Esta foto foi tirada quando passeava na bolanha. 

É oferecida ao meu irmão como prova de amizade e para que o recordes sempre.

“Chico”

Guiné Portuguesa

Da fotografia apenas sabemos que foi tirada em 1971 na Guiné e que o soldado na imagem se chama Chico. Da mulher nada sabemos.

Revelando-se um trabalho inédito em Portugal, esta exposição e o livro com o mesmo título dão visibilidade a soldados que combateram em diferentes frentes. Em comum, jovens soldados feridos durante a guerra. Refutando um pendor memorialístico, mas também uma “estética do horror”, a exposição evidencia o que se relegou ao invisível, não expondo o sofrimento humano, mas dando dignidade aos ex-combatentes.

A guerra encerrou um tempo histórico e marcou várias gerações, em especial os jovens soldados que esta exposição dá protagonismo, remetendo-nos para uma memória individual e coletiva da sociedade portuguesa. No ano em que se comemoram os 50 anos do 25 de Abril de 1974, revolução impulsionada por militares que combateram em África, a guerra continua votada a um certo esquecimento. Muito embora todos nós tenhamos familiares ou histórias de pessoas próximas que estiveram envolvidas na guerra colonial, esta continua a representar um campo memorial de traumas e silêncios. O sacrifício de homens e mulheres que direta ou indiretamente estiveram envolvidos neste fatídico conflito deve continuar a ser (re)lembrado.

fotografias de Leonel de Castro: 


 

  • 1. Discurso proferido por António de Oliveira Salazar em 13 de abril de 1961 e transmitido pela RTP, uma semana antes do primeiro contingente, constituído por mais de 2000 soldados, seguir para Angola.
  • 2. Excerto do texto de apresentação da exposição de autoria de Pedro Olavo Simões.
  • 3. “Leonel de Castro fotografou o trauma da Guerra Colonial ‘de aquém e além-mar’”, Público, 23 de abril de 2024.

por Inês Vieira Gomes
Vou lá visitar | 10 Agosto 2024 | África, Fotografia, guerra colonial, Leonel de Castro, memória, mutilados, soldados, ultramar