No bairro: associativismo jovem na periferia de Lisboa

Alta de Lisboa, Miratejo, Arrentela, Cova da Moura. Nas duas margens do Tejo multiplicam-se bairros, fortemente marcados por difíceis condições de vida, em que os jovens ensaiam formas de organização colectiva que reforçam as comunidades em que se inserem. O associativismo, nomeadamente ligado ao hip-hop e ao rap, enfrenta também o desafio do relacionamento com projectos de instituições exteriores aos bairros.

«Não se faz nada, está-se aqui encostado à parede», diz Dabanda, um dos jovens residentes na Zona 7, da Alta de Lisboa, projecto urbanístico no Lumiar que combina habitações de venda livre, condomínios privados e habitação social de realojamento, gerido por um consórcio imobiliário actualmente presidido por Stanley Ho. Dabanda, Prila, Santo e Mendez, com idades compreendidas entre os 18 e os 26 anos, foram deslocados há já 5 anos, no âmbito do Plano Especial de Realojamento (PER), provenientes do extinto Bairro da Quinta Grande, cujos habitantes, conjuntamente com outros da Musgueira e da Quinta da Pailepa (todos de génese ilegal) foram aqui realojados. Em vez de PER 7 é ainda a sigla BQG, do antigo bairro (que pronunciam Beekigee), que dá nome à nova morada.

São duas fileiras de blocos de apartamentos, contornadas por uma movimentada via, algo improvisada, e outra ainda em construção de que as terras removidas deixam já adivinhar o traçado. Não muito longe, a pista do aeroporto. Nas imediações, a compor o descampado, as instalações da escola secundária e o moderno estádio de futebol, que acolhe agora os jogos do União Desportiva da Alta de Lisboa (UDAL) e do Águias da Musgueira – o primeiro criado, também ele, no âmbito da intervenção urbanística no local e resultante da fusão dos antigos Desportivo da Charneca e Sporting da Torre. No seu PER, porém, não existe qualquer equipamento desportivo público. Para ocupar o tempo, às escondidas, «joga-se à bola, no campo da escola», diz um deles, que também alinha pelas camadas jovens do UDAL. Para além de dois cafés, existe no bairro a Associação de Defesa dos Angolanos, que transitou para novas instalações, mas em cujas actividades não se revêem. Dão por isso actualmente os primeiros passos para a formalização de uma associação (a TDK), «para termos um espaço próprio», diz um deles1.

À partida, foi o contacto com o programa de desenvolvimento local Kcidade que começou a dar expressão a esta sua ambição, através de algum apoio logístico2. Contam já, entre si, com a organização de umas poucas iniciativas, com outros parceiros, nomeadamente um torneio de futebol (em instalações cedidas pela escola), mas sobretudo algumas iniciativas de âmbito cultural, como a promoção, no bairro, de sessões de freestyle (rap improvisado na rua), a gravação de uma disco-maqueta de rap (No Bairro), posteriormente lançado na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, numa iniciativa conjunta da TDK e de uma outra associação, a Freestylaz, num evento chamado «Os Bairros da Alta no Bairro Alto». Agora, a sua definitiva consolidação como associação, mas sobretudo a angariação de espaço próprio, dependem de contactos com instituições, assentes por seu turno num programa de actividades que contempla, entre outras iniciativas, a dinamização de ateliês de hip-hop, a criação de um estúdio de rap, mas também um café comunitário, um ginásio e oficinas de dança.

 

Uma plataforma de comunicação

Sabe-se como é frequentemente em torno do hip-hop que muitos jovens de zonas da periferia de Lisboa constroem traços importantes das suas identidades3. Assumem por vezes nomes de grupo, mais ou menos informais, os chamados colectivos, onde cruzam essa vertente cultural com dimensões locais, da zona específica onde vivem, e cuja face mais visível, para o exterior, talvez seja o grafitti, em que evidentemente não se esgotam4. O freestyle, cantado entre amigos, constitui a sua principal manifestação, embora se alimentem também muitas vezes de uma certa rivalidade entre bairros. O colectivo Mirasquad, um dos mais antigos, constitui um dos melhores exemplos; Miratejo, na margem Sul (onde aquele se formou) foi aliás um dos primeiros locais a absorver esta cultura, ainda na década de 1990, facto que lhe valeu a denominação de Bronx português.

Mas essas comunidades parecem poder ser também, por um lado, a base de um associativismo ainda emergente, de base local, e, por outro, uma possível plataforma de comunicação entre vários desses bairros e de relacionamento com meios mais alargados. É isso que pretende Jorginho (também conhecido por Primero G entre o seu colectivo, Húngaros Ghetto G), membro de um conhecido grupo do hip-hop alternativo (os TWA) e fundador da associação Freestylaz. Entre os seus objectivos contam-se especificamente a promoção e a divulgação desta cultura dos bairros da periferia de Lisboa, procurando do mesmo passo «estimular a autogestão e a solidariedade» entre aqueles que se encontram de alguma forma envolvidos nestas actividades. Foi com base nesses pressupostos que foi levado a cabo a primeira actividade dessa associação, a realização de um pequeno documentário (Freestylaz 01) sobre o rap em diversos bairros, com base no encontro de diversos colectivos[vi]. Outras iniciativas se seguiram.

 

«A CNN do gueto»

Já mais antiga e de sólida implantação é a associação Khapaz, com sede na Arrentela, no concelho do Seixal. Essa localidade e a margem Sul em geral são aliás uma das zonas de mais forte implantação do movimento hip-hop, embora muitas outras existam de implantação igualmente forte, em locais como Porto Salvo, Cova da Moura, Talaíde, Zona J de Chelas ou Monte da Caparica. A Arrentela é uma zona periférica do Seixal, embora mais próxima de Lisboa, a apenas 15 minutos de barco. De passado industrial, nomeadamente ligado aos lanifícios, mas também de tráfego mercantil, a localidade, em processo de descaracterização e de crescente afastamento do rio, parece ficar marcada pela progressiva decadência desses sectores, cujos sinais são ainda bem patentes no seu quotidiano. É hoje habitada, em larga percentagem, por imigrantes africanos e por ciganos, em blocos de apartamentos de 5 a 10 andares.

É pois também num contexto de pronunciada depressão urbana, e ainda antes do estabelecimento das recentes estratégias de intervenção local, a vários níveis, que a associação Khapaz se constitui, em 2003. Também ela com base num colectivo, (Red Eyes G), um grupo de amigos sediado na rua e unido sobretudo em torno do hip-hop e em particular do freestyle. A jornada até à constituição formal como associação é de dois anos, ainda antes de conseguirem garantir um espaço próprio, o que conseguem em 2003, com o apoio do programa Escolhas e actualmente da Câmara Municipal do Seixal. É por intermédio desse espaço que estabelecem a principal via de ligação ao bairro, particularmente através das diversas actividades que dinamizam, em que o estúdio de gravação e os cursos de formação relacionados com o rap ocupam um lugar central.

Aí muitos dos jovens do bairro têm a oportunidade não só de gravar as suas maquetas, mas também de se familiarizar com uma série de ofícios, ao computador, relacionados com a edição de música e, entre elas, a composição e o tratamento de imagem; alguns deles, inclusivamente, de se responsabilizarem pelo próprio processo de formação. Mas é também aí que há espaço para actividades como a capoeira ou os jantares comunitários, entre outras, e os debates sobre vários problemas mais directamente relacionados com a vida da comunidade e dos jovens em particular. A este respeito, a sua relação com as forças policiais, quase nunca pacífica, constitui tema reincidente. São muitas as queixas relativamente ao tratamento de que são alvo e é também em resposta a essas queixas que a associação editou aquilo a que chamaram um «manual de sobrevivência», para divulgação aqui e noutros bairros, com legislação e orientações que consideram importantes para ultrapassar essas fricções.

Mas esta está longe de constituir a sua principal inquietação. Muitos outros temas, mais estritamente relacionados com a condição urbana ou com o racismo, por exemplo, são também objecto de atenção. Aliás, e não apenas aqui, são os próprios envolvidos a lamentarem o facto de ser quase sempre por más razões (distúrbios, violência) que estes bairros são objecto de atenção mediática; do seu quotidiano, das suas condições de vida, muitas vezes pouco ou nada se sabe. E é particularmente aí, dizem, que parece residir parte da força do hip-hop, e do rap em particular (sobretudo nestes meios), o facto de frequentemente ser «a única voz do bairro» ou, como alguém disse, a «CNN do gueto». «Porque fala dos problemas», porque é «directo», porque é «real»: porque pode ser «o gatilho que desenvolve o resto», diz Chullage, membro da Khapaz.

Mas a força das palavras encontra-se ela própria ligada às especificidades do rap. Por um lado, a dinâmica de improvisação; por outro, o facto de se poder fazer na rua, ou com poucos meios, colocando-o virtualmente ao alcance de todos. Na realidade, poder-se-ia dizer, é toda uma filosofia, de «auto-gestão», como diz Chullage, filosofia que expressa a natureza colectiva em que assenta o movimento e que se manifesta bem para lá da criação, também ao nível da distribuição, quer pelo estabelecimento de circuitos comerciais alternativos quer pela constituição de editoras independentes, ambos apoiados nas possibilidades abertas pela propagação de muitas das novas tecnologias5.

 

«Aqui é mais bairro»

Tarde de sábado. Há festa no Clube Desportivo Alto da Cova da Moura. O bairro em peso parece estar presente. O pequeno pavilhão, mais ou menos improvisado, situado numa zona de moradias do bairro, de malha urbana mais ortodoxa, enche-se para assistir às dezenas de actuações previstas de colectividades e artistas do bairro e de outras vindas de fora. Entre vários desfiles de moda com trajes tradicionais africanos e exibições de danças africanas ou capoeira, é o rap que domina o cartaz, com actuações marcadas mais para o final da tarde. O sol que se abate sobre o telheiro e a curiosidade geral tornam a atmosfera asfixiante. E no entanto, à porta, parece ser maior o número daqueles que esperam ainda pelo rap para entrar.

Dois dias mais tarde, à conversa com um dos intervenientes dessa tarde, desta vez no centro do bairro, depois de atravessada a densa rede de ruelas e becos, no meio de um grupo alargado, Kromo di Gueto diz-nos em conversa que «em comparação com a Arrentela, aqui não faz tanta falta uma associação, isto aqui é mais bairro». A cada 15 minutos a carrinha da Polícia de Segurança Pública patrulha o local, abrandando, prosseguindo depois a ronda pelo bairro. Kromo di Gueto, recuperando o fio à meada, reconhece também a importância da Associação Moinho da Juventude que, entre muitas outras actividades, acolhe e apoia o movimento hip-hop do bairro. Mantém nas suas instalações, no interior do bairro, um estúdio de gravação e promove também aulas de formação, dinamizadas por Chullage.

O colectivo a que pertence (Kova M) foi aliás criado recentemente, no âmbito da implantação do estúdio, encontrando-se actualmente envolvido na candidatura a um projecto de gravação6. Entre si organizam-se por temas, seleccionando alguns dos problemas que consideram mais graves, no quadro do seu bairro mas também mais além. Kromo di Gueto sublinha também ele a dinâmica de intervenção do rap, afirmando que o papel do MC (Mestre-de-Cerimónias) é «passar a mensagem, da comunidade à sociedade». Até porque, afirma, o interesse de jornalistas e fotógrafos pelos seu bairro se limita muitas vezes a cobrir situações de violência: «só cá vêm quando há merda», diz.

Mas a tónica do seu discurso é o tema da união porque «todos os bairros têm os mesmos problemas». Refere-se em particular ao estatuto dos imigrantes e das segundas gerações. Porque, diz, «há people que é só stage», que «só se preocupa em fazer-se “representar” melhor que os outros». É esta a crítica que faz não só àqueles que, nos bairros, dão curso às rivalidades, mas também a outros, integrados no que chama o mainstream, o circuito comercial das grandes editoras. Diz, no entanto (e o seu discurso é comum a outros), que, ao contrário destes últimos, cujo sucesso poderá não passar de uma moda, o movimento hip-hop resistirá porque fala «da realidade». Pelo menos enquanto essa realidade subsistir…

Inclusão e abertura

E no entanto, é também o seu sucesso nalguns meios mais desfavorecidos, a sua dinâmica colectiva, que paradoxalmente se pode constituir como ameaça ao seu desenvolvimento. Se a sua força reside no envolvimento partilhado, a sua cooptação por algumas instituições, nomeadamente para estratégias de desenvolvimento local, até agora com bons resultados, pode, a termo, redundar na sua institucionalização, eventualmente conduzindo à desmobilização. Um abraço demasiado apertado. Pior, por estas mesmas características pode ser veículo de estratégias de intervenção meramente ocupacionais justamente em bairros, como na Alta de Lisboa, onde «não há nada para fazer». A autonomização prévia destes grupos, na forma da associação, constitui uma possível estratégia de prevenção.

É nesta ideia que assenta um inovador projecto, a criação da Akademia Europeia de Hip-Hop, no Seixal, de iniciativa da Khapaz, com o posterior impulso e envolvimento de outros parceiros, entre os quais, o ACIME (Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas) e a Câmara Municipal do Seixal, e a mobilização de outras associações7. O projecto contempla três dimensões, ligadas à educação, à cultura e ao envolvimento na comunidade. A primeira destinada sobretudo a jovens de contextos desfavorecidos em situação de abandono escolar, contemplando ainda áreas de formação orientada para o público em geral. Todas elas assentes nas diversas manifestações do hip-hop. Que afere, também aqui, como movimento, o seu potencial de inclusão; mas também a força para se abrir a outros meios sem que isso signifique, necessariamente, o que lhe seria fatal, a sua domesticação.

 

[Versão revista do texto originalmente publicado em Le Monde Diplomatique – edição portuguesa, n.º 8, II Série, Junho de 2007]

participação de Chullage

  • 1. Acrónimo do nome Trabalho Direitos e Kapacidade.
  • 2. O programa de desenvolvimento comunitário urbano Kcidade é uma iniciativa da Fundação Aga Khan.
  • 3. Ver José Alberto Simões, «A globalização do hip-hop: homogeneização e diferenciação cultural», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Abril de 2007.
  • 4. Ver Ricardo Campos, «Pintores de cidades», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Abril de 2007.
  • 5. Ver José Alberto Simões, op. cit.
  • 6. Promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) e pelo programa Escolhas, do ACIME.
  • 7. Entre os parceiros, para além dos referidos, contam-se também a FCG, a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, a Promontório Arquitectos, o Instituto Português da Juventude e a EMI Valentim de Carvalho. As associações desde já envolvidas são: Freestylaz, Laços de Rua, Encontros e Associação dos Artistas de Cabo-Verde.

por António Brito Guterres e Frederico Ágoas
Vou lá visitar | 18 Agosto 2011 | Alta de Lisboa, Arrentela, associação, bairros, Cova da Moura, hip hop, Miratejo