No Padrão dos Descobrimentos, a história da diáspora africana conta-se através de Álbuns de Família
No dia 27 de abril inaugurou, no Padrão dos Descobrimentos, a exposição temporária “Álbuns de Família. Fotografias da diáspora africana na Grande Lisboa”. Com curadoria científica de Filipa Lowndes Vicente e de Inocência Mata, a mostra reúne fotografias da autorrepresentação da diáspora africana em Portugal. São “álbuns de família” com as imagens que os portugueses afrodescendentes e os africanos registaram de si próprios e das suas comunidades desde 1975, data das independências dos países africanos de colonização portuguesa. A exposição estará patente até ao dia 30 de novembro.
“É uma exposição que quer tornar visíveis os rostos de pessoas, que são sempre vistas como não fazendo parte do corpo da nação”, começa por explicar a professora e investigadora Inocência Mata. “É uma exposição que, através da fotografia, dá uma voz a essas pessoas”.
A mostra reúne um conjunto das fotografias tiradas pela comunidade da diáspora africana ou que foram herdadas das suas famílias. Nos vários núcleos, encontram-se retratos de mulheres, homens e crianças afrodescendentes ou africanas, feitos por si próprios ou por quem lhes está próximo, e que se cruzam com histórias e memórias pessoais.
“Álbuns de Família” contrasta a narrativa da exposição “Visões do Império”, que esteve patente em 2021 no Padrão dos Descobrimentos. Esta última contava as histórias em torno da fotografia imposta e em ambiente colonial. Por sua vez, “Álbuns de família” é uma exposição de autorrepresentação, valorização e de empoderamento da comunidade africana e afrodescendente.
“Foi em Lisboa e nas zonas limítrofes da capital que se instalou a grande maioria dos africanos vindos para Portugal nas últimas décadas e, portanto, onde reside hoje a maioria da diáspora africana”, pode ler-se em comunicado. “Continua, por isso, a ser uma das cidades mais africanas da Europa e com muitas portuguesas e portugueses negros, sobretudo desde há 50 anos”.
Inocência Mata reforça esta ideia, explicando que, para a sala que consideram ser a principal da exposição, foram selecionadas fotografias de “pessoas que não têm uma projeção social, mas sim, um dia-a-dia igual ao de muitos de nós. São pessoas que trazem para a cena da fotografia a sua vida, os seus afetos, os seus desamores. A sua vida difícil”.
Deste modo, no terceiro núcleo da exposição - intitulado ‘Álbuns de Família: Autobiografias Fotográficas’ - algumas mulheres e homens, que não usam a fotografia como elemento do seu trabalho criativo, contam as suas histórias e memórias a partir dos registos fotográficos que selecionaram dos seus próprios álbuns de família.
Filipa Vicente, historiadora, inicia o seu discurso abordando a importância de ter sido criado um dicionário para esta exposição. “Nós pegámos neste título longo – ‘Álbuns de Família’; ‘Fotografias’; ‘Diáspora Africana’; ‘Grande Lisboa’; ‘1975’ e ‘Hoje’ - e partimo-lo em seis bocados, de forma a conseguirmos criar o nosso próprio dicionário”, afirma a historiadora. Além disso, para a construção deste projeto, as curadoras refletiram sobre três aspetos importantes: o lugar onde decidiram exibir esta exposição, as pessoas que nela participaram e ainda o cruzamento entre a história da fotografia e a história da diáspora africana.
O lugar escolhido foi o Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa. “Estamos a assumir, e queremos dizê-lo aos visitantes, que este é um lugar muito simbólico, mas também problemático. Existem muitas posições diferentes relativamente aos modos como hoje devemos lidar com os monumentos do passado colonial”, explica Filipa Vicente. “Mas tanto eu como a Inocência partilhamos da ideia de que Lisboa é uma ex-metrópole colonial. Os legados desse passado estão por todo lado, e, portanto, o que nós queremos fazer é desconstruí-los, criticá-los - historicamente falando - refletir sobre eles, sem fingir que eles não existem. E consideramos que hoje é possível termos um discurso sobre estes lugares. Um discurso histórico e crítico”.
Toda a exposição resulta de um processo colaborativo. “Grande parte do que está exposto foi feito com a participação das pessoas que generosamente retiraram as fotografias das suas casas para as partilharem connosco”, prossegue. “São pessoas não usam a criatividade no sentido de não terem resultados materiais no seu trabalho, como têm os escritores e os artistas no espaço público, mas que também aqui fizeram, de alguma forma, um trabalho criativo falando sobre as fotografias”.
Relativamente ao último aspeto, Filipa Vicente explica de que forma é possível cruzar a história desta comunidade com a fotografia. “Como é que a fotografia, que é imagem, é também um objeto, e como é que se podem contar histórias através dessa fotografia”? Para as curadoras, foi também fundamental que a ideia de “fotografia íntima, privada e pessoal” se pronunciasse em toda a exposição artística. “São pessoas que têm nome e apelido. Só isso, para nós, já é uma crítica e um diálogo ativo”.
Por fim, a historiadora resume cada área da exposição. São seis núcleos visitáveis que viajam desde a pré independência dos povos colonizados até à atualidade.
Em exibição estão fotografias analógicas, fotografias impressas em papel, outras que foram coladas em álbuns, emolduradas ou guardadas dentro de caixas e gavetas, e ainda fotografias que, após a invenção do digital, podem ser encontradas em telemóveis e computadores.
Para a criação do primeiro núcleo, intitulado ‘Retratos fotográficos da diáspora africana antes de 1975’, as curadoras consideraram importante “mostrar que antes de 1975 também já havia africanos e afrodescendentes a viver em Portugal”. A verdade é que “as fotografias tiradas ao longos dos séculos XIX e XX em Portugal, já têm muitas representações de pessoas negras que não estão no seu estatuto de colonizado”.
Deste modo, as fotografias do primeiro núcleo recuperam a memória da Área Metropolitana de Lisboa, em que a presença negra fazia parte do quotidiano dos espaços urbanos, mesmo antes do aumento da emigração após 1975. Os registos fotográficos mostram pessoas negras - homens na sua maioria, mas também mulheres – a desempenhar diversas profissões e a participar em atividades políticas, culturais, religiosas, desportivas e estudantis.
Para a segunda parte da exposição, Filipa Vicente e Inocência Mata desafiaram alguns escritores a escolherem uma fotografia do seu álbum de família e a compor um texto a partir da mesma. É a sala ‘Imagens escritas, ditas e cantadas’.
“No quarto núcleo quisemos mostrar o que é a fotografia profissional, a fotografia negra”, remata Filipa Vicente. Tal como se pode ler em comunicado, nele podem encontrar-se “três exemplos da prática fotográfica negra em Portugal. Dois fotógrafos negros de duas gerações diferentes: o mais velho, nascido em Angola, Adão Marcelino; o mais novo, nascido em Lisboa, Roque G. E um fotógrafo branco que tem porventura o estúdio fotográfico mais africano de Portugal: António Pedro Alves é dono do Estúdio Damarte na Damaia, onde a maior parte da sua clientela é africana e afrodescendente”.
No núcleo número 5, ‘Artistas e Arquivos de Fotografia’, exibe-se o trabalho de nove artistas afrodescendentes e africanos, com relações familiares e profissionais com Portugal. Estes foram desafiados a trabalharem a ideia de “Álbuns de Família”. Alguns olharam para as suas próprias famílias, outros centraram-se nas fotografias de pessoas próximas ou em fotografias de arquivo. Desta forma, tal como afirma a historiadora Filipa Vicente, reforça-se a “ideia de um arquivo pessoal e não de um arquivo mundial”.
Finalmente, o sexto núcleo é uma afirmação do presente. “Os jovens não sabem o que é a materialidade da fotografia, não sabem o que é a fotografia analógica, pois já cresceram com telemóveis, têm uma máquina fotográfica no bolso todos os dias”, remata Vicente. ‘Ecrãs de família: o presente partilhado’ pretende responder à questão “como é que os milhares de jovens portugueses negros, que nasceram cá e que são segunda ou terceira geração, se relacionam com a fotografia e como é que ela também serve de autorrepresentação?”.
A exposição “Álbuns de Família. Fotografias da diáspora africana na Grande Lisboa (1975-hoje)”, inaugurada no dia 27 de abril, surge também como uma atividade de celebração da Década Internacional dos Afrodescendentes, que termina este ano. Para a professora Inocência Mata, esta celebração teve “pouca visibilidade em Portugal”.
Posto isto, ainda que esta seja uma exposição temporária, as curadoras evidenciam o desejo de que “Álbuns de Família” seja o ponto de partida para a criação de um arquivo permanente que acolha os legados históricos e documentais da comunidade portuguesa de origem africana.