Lee-Ann Olwage: “Se procuramos melhorar, globalmente, a vida das pessoas com demência, então não podemos ignorar a parte que diz respeito às diferentes perceções culturais”
Lee-Ann Olwage tem 37 anos, nasceu na África do Sul e considera-se uma contadora de histórias visual. Ao longo do seu percurso profissional enquanto fotógrafa, tem vindo a captar imagens que refletem a forma como as diferentes culturas e as diferentes comunidades interpretam a saúde mental. Tem também explorado outras questões pelas quais luta diariamente, tais como as que se relacionam com a comunidade LGBTQIA+.
Recentemente, documentou num projeto fotográfico, a vida das mulheres idosas afetadas pela demência no continente africano. Intitulado “The Big Forget”, o projeto – que ainda se encontra em desenvolvimento – teve uma fotografia distinguida pelo concurso World Press Photo 2023. A imagem galardoada foi tirada por Olwage em 2022, durante uma das suas visitas ao Gana, mais concretamente aos “campos de bruxas” que existem na região de Gambaga há mais de cem anos.
Lee-Ann Olwage, que admite lutar contra os seus próprios problemas de saúde mental, tem também familiares que sofreram ou sofrem com Alzheimer. Por essa razão, afirma que, com o seu trabalho, pretende criar um espaço no qual as pessoas que fotografa possam desempenhar um papel ativo na criação das imagens e que, acima de tudo, as faça sentir como as verdadeiras “heroínas” das suas próprias histórias.
Nasceste na África do Sul. Quais são as tuas principais memórias de infância?
Oh! Gosto dessa tua abordagem, porque acredito que aquilo que faz parte de nós, é o que nos distingue enquanto contadores de histórias.
Estou muito orgulhosa da África do Sul. Eu amo o meu país. Acho que somos um dos países mais incríveis do mundo e adoro que sejamos tão diversos. Existe uma mistura maravilhosa de pessoas aqui. Uma grande mistura de culturas. Somos [um país] colorido, somos amigáveis e isso é algo que nos diferencia. Se o visitares, verás que existe muita magia aqui. Em grande parte, é assim que me sinto relativamente às minhas interações, mas também relativamente à forma como conto as histórias, não só sobre a África do Sul, mas também sobre o próprio continente africano. Acho que, durante muito tempo, foram contadas histórias acerca dos mesmos que, na verdade, não mostravam o quão bonitos nós somos enquanto nação.
Sobre a minha infância… nasci em Durban, mas cresci em Eastern Cape. Também morei durante algum tempo no Lesoto - que é um país cercado de terra no centro da África do Sul. Tive muita sorte em ter uns pais que sempre me incentivaram a explorar e que apoiaram a minha imaginação e a minha autodescoberta. Além disso, penso muito no meu avô como o primeiro contador de histórias a quem fui apresentada. Acho que é daí que vem o meu amor por storytelling. Já no que diz respeito ao meu percurso enquanto fotógrafa… bem, eu sempre soube que queria ser uma contadora de histórias, mas acho que isso acabou por ser quase um “acidente” no meu caminho - embora acredite que nunca nos devemos desviar do nosso percurso. Após ter terminado a escola, estudei Direção e Escrita de Argumento de Cinema. Depois disso, trabalhei em filmes enquanto decoradora de cenários durante cerca de nove anos. Creio que isso realmente influenciou a maneira como hoje exploro o visual ou as narrativas. Percebi que não queria apenas documentar o que via, mas também mostrar as texturas e como é que as poderia incorporar nas histórias.
Quando tinha cerca de 28 anos, fui passar férias à Indonésia com o meu parceiro anterior e ele comprou uma câmara. Apesar de, na altura, ter achado que ia ser um desperdício de dinheiro, a verdade é que, enquanto lá estávamos, acabei por me apaixonar pela fotografia. Apaixonei-me por esse modo de contar histórias, mas ainda demorei algum tempo até me considerar uma fotógrafa. Ao completar 30 anos, quis mudar de carreira, mas não pude estudar fotografia. Estava a atravessar um momento na minha vida com muitos encargos financeiros. Por esse motivo, decidi juntar-me a outros fotógrafos para os ajudar com o seu trabalho e para poder aprender mais sobre fotografia. Assim, também conseguia ganhar algum dinheiro, enquanto contava histórias que me interessavam. Esse período de tempo também me ajudou bastante a pensar a narrativa visual de forma diferente, porque estava sempre rodeada de fotógrafos comerciais, ou seja, pessoas que fotografavam produtos ou trabalhavam com modelos. Esses profissionais, normalmente, usam muita iluminação que vem de um estúdio e eu sempre soube que não era isso que queria fazer. Por outro lado, percebi que, posteriormente, poderia vir a aplicar o que estava a aprender com eles no meu próprio trabalho. Por exemplo, eu observava o quão cuidadosamente eles fotografavam, fosse um pedaço de queijo, fosse uma pessoa! Eles pensavam, ao pormenor, na forma como queriam apresentar aquela imagem e o que pretendiam transmitir com ela. Isso fez-me questionar como é que eu poderia agarrar em histórias documentais que, por norma, já têm uma determinada estética, e fugir um pouco disso, dando-lhes outra qualidade visual. Ou seja, como é que eu conseguiria unir o trabalho documental ao trabalho comercial, mas também trazer um pouco do lado cinematográfico para as minhas imagens. E eu adoro isso! Adoro poder colocar essas histórias de uma maneira diferente e simplesmente dar-lhes uma qualidade visual que as diferencie, ao invés de apenas fotografar o que vejo quando entro num cenário.
Se tivesses de apontar algum momento que definisse o início da tua carreira profissional enquanto fotógrafa, qual seria?
Eu adoro trabalhar com filmes, mas sempre senti que havia algo mais que precisava de fazer. Quando um amigo meu muito próximo faleceu, decidi comprar uma câmara de filmar antiga. Não fazia ideia de como a usar [risos]. Pois bem, eu tinha ouvido falar de um grupo intitulado “The Black Mambas”. Trata-se de uma unidade feminina de guardas florestais que protegem a vida selvagem da caça furtiva [na África do Sul]. Elas são, simplesmente, o grupo mais fenomenal de mulheres. Como senti que precisava de redirecionar a minha vida de alguma forma, pensei que, talvez, se eu passasse algum tempo com elas, teria alguma clareza acerca do caminho que queria percorrer. Posto isto, entrei no meu carro e conduzi até ao lado oposto do país, onde passei duas semanas com elas no mato. Foi uma experiência realmente incrível e documentei tudo. Depois, alguém viu esse trabalho, eu disse que poderia ser publicado e foi assim que as coisas começaram para mim.
Mas não te consideras uma fotojornalista, correto?
Essa é uma ótima pergunta e a resposta está em constante evolução! Definitivamente, considero-me mais uma contadora de histórias visual. Acho que demorei muito para me considerar uma fotógrafa, porque não me sentia confiante. Demorei muito para descobrir que era detentora desse título. Mas não, não me considero um fotojornalista tradicional. Acho que existe um lugar onde o trabalho documental se une ao storytelling. Encontro-me algures no meio.
E qual foi o primeiro grande projeto que publicaste?
O primeiro projeto que publiquei foi sobre yoga na prisão de Pollsmoor, uma das prisões mais conhecidas do mundo (localizada na Cidade do Cabo, na África do Sul). Basicamente, tive conhecimento de uma organização que ensinava yoga a prisioneiros e achei que isso era absolutamente extraordinário. Na minha opinião, o yoga é uma excelente forma de acalmar a mente, é algo que se pode fazer dentro de um espaço minúsculo e pode realmente mudar a nossa vida. Demorei muito para conseguir autorização para entrar em Pollsmoor. Durante seis meses, conduzi até lá e fiquei do lado de fora, na esperança de conseguir um contacto. Quando finalmente consegui autorização para entrar, conheci a pessoa certa e deram-me permissão para fotografar.
Consideras-te uma pessoa persistente?
Sim, acho que sou bastante motivada. Muitas pessoas não estariam disponíveis para investir tanto do seu tempo até conseguirem autorização para entrar nestes lugares. Já eu, por outro lado, adoro isso. Adoro a maneira como as pessoas te vão conhecendo e te vão vendo a regressar vezes sem conta. Acho que é importante mostrares às pessoas que tu estás a levar o teu trabalho a sério, porque é um grande privilégio sermos convidados para o mundo de alguém. Tu não podes simplesmente exigir isso. Não funciona assim.
As tuas experiências pessoais tiveram algo que ver com a tua decisão de explorar temas relacionados com o género e com a identidade?
Absolutamente! Sendo uma mulher fotógrafa, sempre gostei de direcionar o meu trabalho para as questões de género e de identidade. Trabalho com a comunidade género fluído, com Drag Queens, com mulheres e com raparigas. Para mim, é realmente importante contar as histórias dessas pessoas em África, porque elas realmente se tornam as heroínas das suas próprias vidas. Muitas vezes, [essas mulheres] são apresentadas como vítimas. Contudo, se olhares para o trabalho que fiz acerca do casamento infantil ou da mutilação genital feminina, reparas que tomei a decisão - muito consciente - de não fotografar mulheres jovens que tenham passado por essas experiências, mas sim de fotografar mulheres que já se estavam a empoderar e a evidenciar essa realidade. Para mim, isso é o mais importante. Já existem demasiadas imagens nas quais se veem tais pessoas enquanto vítimas destas circunstâncias. Precisamos que elas sejam apresentadas ao mundo enquanto heroínas das suas próprias histórias, porque o são. E esse lado nem sempre é visível, porque às vezes é mais fácil mostrar algo que é horrível.
Por que achas que isso acontece?
Não sei se terá que ver com a forma como os media se alinham e procuram o que publicar, ou se as pessoas simplesmente não passam tempo suficiente junto das comunidades. Muitas vezes, quando inicio um projeto, parece que aquilo é a história, ou seja, parece que o que estou a ver é algo óbvio. Contudo, se estou a começar um projeto pela primeira vez, como posso saber que aquela é a verdadeira história? Primeiro, preciso de dedicar tempo, preciso de fazer perguntas, de sentir… e só depois, aos poucos, é que conseguirei mostrar as minhas ideias. A história não é tua, ou seja, tu não sabes nada sobre as pessoas que estás a conhecer e que estás a fotografar. Tens de realmente ouvir e estar disponível. Aí é que a história se irá revelar. Acho que, em muitas situações, as pessoas continuam a olhar apenas para o que está à superfície.
A saúde mental também é um dos temas centrais nos teus projetos. Por que sentes tanta necessidade de falar sobre isso?
Sempre lutei contra os meus próprios problemas de saúde mental, ou seja, é algo que me é bastante familiar. É um tema que também traz muitos estigmas associados. Por esse motivo, acho importante falar sobre o assunto, visualizá-lo e partilhar as várias experiências das pessoas.
Por outro lado, também acho bastante interessante a forma como as diferentes culturas e as diferentes comunidades no mundo percebem a saúde mental. Por um lado, há países onde a doença é mais aceite, mas onde ainda se sentem alguns preconceitos dentro dos locais de trabalho, por exemplo. Por outro lado, existem países nos quais persistem as crenças espirituais e onde se acredita que a bruxaria possa estar, de alguma forma, relacionada com este tipo de problema.
A saúde mental é um tema universal, por isso, [seja em que contexto for], podemos afirmar que muitas pessoas acabam por se sentir isoladas [da sua própria comunidade]. Penso que todos aqueles já se tenham deparado com problemas de saúde mental, mesmo que por breves momentos, se conseguem identificar com isto.
Tal como mencionaste há pouco, também exploras e captas imagens que se relacionem com a comunidade LGBTQIA+. O que te leva a expor a realidade das pessoas negras que se inserem nessa comunidade?
A lei sul-africana é uma das mais progressistas de África no que diz respeito aos direitos da comunidade Queer. Ou seja, supostamente, é mais aceitável que estas pessoas se casem ou que os casais gay adotem bebés [na África do Sul]. Quando te apercebes que essa realidade é possível no continente africano, parece que descobres ali um refúgio maravilhoso. Contudo, pelas conversas que fui tendo, percebi que as experiências dessa comunidade e o seu dia a dia estavam muito longe disso. Quis então perceber onde e como é que essas pessoas se casavam, onde é que elas se sentiam, não apenas seguras, mas também celebradas, onde é que podiam ser elas próprias e sentir-se abraçadas pela comunidade ao seu redor.
Nessa altura, fui apresentada aos concursos de beleza de Drag Queens que decorrem na África do Sul. Durante cerca de dois anos, documentei essas performances e foi simplesmente maravilhoso. Foi incrível ver as pessoas brilharem e a serem verdadeiramente celebradas por quem são. Por outro lado, partiu-me o coração quando as vi remover a maquilhagem toda antes de irem para casa, porque podiam ser mortas pelo caminho.
Ao estar junto dessa comunidade, fui percebendo de que forma ela queria ser representada ou exposta. A minha ideia inicial para o projeto #BLACKDRAGMAGIC, era brincar com o género e, por isso, comecei por fotografar as Drag Queens usando uma luz muito forte, de forma a acentuar os traços do rosto e a replicar o contraste que existia entre o masculino e o feminino. Logo a seguir às primeiras sessões, uma delas viu o meu trabalho e disse-me, com toda a honestidade, que não gostava da sua imagem nas fotografias. As suas palavras foram: «essa iluminação não me deixa bonita. Faz-me parecer grosseira». E foi aí que eu percebi que estava a fazer tudo mal! Elas queriam sentir-se bonitas e eu não estava a conseguir expô-las dessa forma. Decidi mudar completamente a maneira como estava a trabalhar com a iluminação e foi muito bom receber esse feedback da parte delas. É importante saber ouvir, entender e aprender. O seu feedback fez-me adaptar o meu trabalho a cada pessoa e tornou-me mais atenta.
É disto que falo. Até podes ter boas ideias quando planeias um projeto. Mas se perceberes que não vão ao encontro da realidade daquela comunidade, então o melhor é deitá-las fora. Se não fazes parte da mesma, serás sempre a pessoa que menos sabe acerca da história que tencionas contar. Porque não é a tua história. Acho que devemos sempre ter um plano inicial como base, mas depois devemos ouvir, aprender, adaptar-nos e alterar tudo o que temos a alterar, até que a pessoa chegue ao pé de ti e diga: “é isto. Esta sou eu”.
As primeiras fotografias que tiraste para a coleção do “The Big Forget” foram tiradas na Namíbia. O que te levou a criar este projeto com o qual foste distinguida no World Press Photo?
Bem, o meu atual parceiro tinha lido um artigo que abordava a história de uma mulher chamada Ndjinaa Ngombe, que pertencia a uma tribo Himba, na Namíbia. No artigo, podia ler-se que ela tinha sido acorrentada pelas pessoas da comunidade ao longo de 20 anos, porque tinham medo dela. Entretanto, pelo que percebi, houve alguém de uma organização de Alzheimer que a encontrou, detetou os sintomas [da demência] e explicou à comunidade o que estava a acontecer verdadeiramente com Ndjinaa. Eventualmente, ela acabou por ser transferida para um lar e foi aí que resolvemos ir procurá-la. Por sorte, o período de confinamento resultante da COVID-19 estava mesmo a terminar quando decidimos viajar para a Namíbia. Ainda tivemos de esperar alguns dias, mas conseguimos ser os primeiros sul-africanos a atravessar a fronteira. Encontrámo-nos com Ndjinaa e com o seu irmão, mas também com alguns membros da sua comunidade para entendermos o lado deles. Ou seja, queríamos perceber como é que eles tinham interpretado os sintomas de Ndjinaa na altura, que comportamentos é que ela teve para serem vistos como algo assustador e, claro, o porquê de terem decidido acorrentá-la durante 20 anos.
Estava prestes a começar o projeto, quando pensei: “bem, eu não quero fotografar pessoas que estejam acorrentadas”. Ndjinaa já não se encontrava presa, mas havia muitos outros que eu poderia fotografar, se quisesse. Mas não era isso que eu pretendia mostrar. Também acho que já vimos disso o suficiente. Eu queria – e quero – apresentar esta realidade de forma diferente. E foi assim que tudo começou. Ia tirando algumas fotografias, passando algum tempo dentro da comunidade. Um ano depois, tive a oportunidade de regressar à Namíbia com a National Geographic e comecei a dar corpo ao trabalho.
Enquanto fotógrafa, como se explora ou destaca algo tão abstrato e/ou invisível, como as questões de saúde mental, em imagens ou retratos?
Há três anos que estou a trabalhar no The Big Forget e só agora é que sinto que estou a conseguir encontrar uma linguagem visual para o projeto. Mas essa é a grande questão: como é que mostro algo que não é visível?
Quando regressei da minha primeira viagem ao Gana, lembro-me de chegar a casa e sentir que tinha falhado completamente. As fotografias não estavam como eu queria… Quando fui ao Gana pela segunda vez, ainda estive uns dias sem conseguir captar as imagens da forma que tinha idealizado. No final do último dia dessa segunda viagem, já tinha entrado no carro para ir embora, quando peço ao motorista para parar. Continuava com a sensação de que algo estava a faltar. Voltei para junto das mulheres e pedi-lhes que caminhassem. A minha ideia era conseguir captar momentos que refletissem a verdadeira imagem mental das crenças espirituais daquela região. Foi apenas dessa vez que senti realmente que estava a conseguir tirar uma fotografia que mostrasse isso. Ainda assim, considero que existe muito trabalho a ser feito.
Para este projeto, também quiseste retratar a realidade dos “campos de bruxas” que existem no Gana. Como é que os descobriste?
O meu trabalho é sempre feito a longo prazo, ou seja, penso nele como um livro com vários capítulos. Não quero focar-me apenas num único tema. Posto isto, iniciei várias pesquisas, entrei em contacto com diferentes organizações de Alzheimer e conversei com imensas pessoas do Uganda e do Quénia. Algum tempo depois, recebi uma bolsa do Fundo Bob and Diane - eles apoiam a narração visual de histórias sobre Alzheimer e demência – e, como tinha ouvido falar dos tais acampamentos de bruxas no Gana, decidi visitá-los. Percebi que, potencialmente, poderia adicionar mais um capítulo ao meu projeto.
Como te disse há pouco, a primeira viagem foi muito difícil. Além de não ter conseguido as fotografias que queria, o próprio acesso ao acampamento foi complicado. O senhor que estava encarregue do acampamento fazia todas as traduções e seguia-me para todo o lado. Nunca me deixava observar as mulheres sem que estivesse presente. Senti que estava a ver as coisas através dos olhos dele, da sua perspetiva. E o próprio lugar já era angustiante. Estas mulheres vivem em circunstâncias muito más. No final do dia, regressei a casa e comecei a pensar na forma como haveria de contar essa parte da história.
Mais tarde, tive a sorte de conseguir outra parceria, desta vez com um jornal alemão - o Der Spiegel. Quando regressei ao Gana pela segunda vez, levei algumas das fotografias que tinha tirado e mostrei-as às mulheres. Foi bastante interessante, porque elas não se conseguiam lembrar de mim, mas conseguiam reconhecer-se nas imagens!
Durante essa segunda viagem, descobri ainda que uma das mulheres, que antes se encontrava no acampamento, tinha voltado para casa e sido reintegrada na sua comunidade. Foi mesmo maravilhoso saber isso. Do ponto de vista médico, houve uma grande preocupação em educar todas as pessoas acerca do que se passava com ela. Além disso, a comunidade também levou um líder religioso local para trabalhar junto dela – e eu considerei isso um grande sinal de respeito, porque, imagina, se se tratar de uma família cristã, eles contratam um pastor, mas se for uma família muçulmana, já levam um imã – e foi incrível. Vivi momentos maravilhosos junto dessa mulher. Lembro-me de que ela estava a usar uma camisola dos Beatles e, quando pedi para a fotografar, ela foi trocar de roupa e colocou um vestido lindíssimo. Ou seja, ela tinha consciência da maneira como queria aparecer na sua fotografia. Lá está, as pessoas sabem como querem ser apresentadas ao mundo. Foi realmente um momento profundo para mim. E foi ainda mais maravilhoso vê-la de regresso a casa.
Foi nessa mesma viagem ao Gana que tirei a fotografia à Sugri Zenabu [fotografia premiada no concurso World Press Photo 2023]. No final, senti que já estava mais conectada com o projeto. É tudo uma questão de tempo e de o saber investir.
E qual foi a reação dessas mulheres quando te receberam?
Claro que, quando existe uma barreira linguística, é muito mais difícil comunicarmos e conectarmo-nos com as pessoas. Houve alturas em que ficava apenas horas junto delas enquanto cozinhavam, por exemplo. Mas aquelas mulheres mostraram-se muito disponíveis, definitivamente. Foi incrível. Senti-me mesmo livre dentro daquele ambiente. E acho que o facto de ser mulher foi uma das minhas vantagens. Penso que, ao ser uma contadora de histórias do género feminino, consegui ter acesso a determinados espaços a que, se calhar, um homem não conseguiria aceder, mesmo que estivesse a fazer exatamente o mesmo projeto.
Explicaste nalgumas entrevistas que esses “campos de bruxas” são, na verdade, bastante controversos, porque, apesar de todas as dificuldades que essas mulheres enfrentam, também se encontram mais seguras do que se estivessem inseridas na sua comunidade. Como é que expuseste esse contraste nas tuas fotografias?
Existe realmente um estranho contraste entre estar-se protegido das ameaças provenientes da sua própria comunidade e viver-se completamente isolado. Isso foi o que captou mais a minha atenção: como é que estas mulheres conseguem estar tão longe de casa e das pessoas que amam? Acho que, durante a velhice, deveríamos estar perto da nossa família.
Foi muito triste perceber que aquelas mulheres já viviam por sua conta há 20 anos ou mais. A sensação de isolamento estava bastante presente e eu relaciono muito esse sentimento com o tema da saúde mental. Seja em que situação for, em qualquer lugar do mundo, as pessoas que vivem com um problema de saúde mental sentem-se isoladas. Claro que, se observares as circunstâncias daqueles acampamentos, percebes que as pessoas vivem em péssimas condições, sem comida suficiente… é mesmo complicado. Como é que se encontra um equilíbrio entre a segurança e este tipo de condições? O projeto “Go Home” – que reintegra algumas destas mulheres na sua comunidade - acaba por ser uma ajuda, mas é sempre um processo bastante demorado e dispendioso. Eles concentram-se numa pessoa de cada vez, sendo que existe, pelo menos, uma centena de mulheres a viver nos campos. Muitas delas simplesmente nunca voltarão para casa.
Porquê o título “The Big Forget”?
Ótima pergunta. Quando iniciei o projeto, descobri que, na maioria das línguas indígenas africanas, não existe uma palavra para “demência”. Na Namíbia, algumas pessoas referem-se a “confusão”. Nos países onde se fala francês, usa-se muito a palavra “loucura” para descrever a doença. Ou seja, os termos que se utilizam já têm uma conotação muito negativa. Decidi então contactar a Muriel, uma colega do Madagáscar com quem tenho estado a trabalhar este ano, e que pertence a uma incrível organização de Alzheimer. Nesse telefonema, perguntei-lhe de que forma ela descreveria a demência, ao que ela me responde: «é como se tratasse de um grande esquecimento (tradução para “big forget”), de uma grande perda». Eu pensei: “é isso! Essa é a melhor forma de descrever a doença”. E foi assim que adotei esse título para o projeto.
Tal como referiste, este é um trabalho que tencionas dividir em vários capítulos. O que distingue o primeiro que realizaste na Namíbia deste que fizeste agora no Gana?
Acho que na Namíbia tive a sorte de conhecer famílias muito diferentes. Foi a minha primeira introdução ao projeto. Assisti, de perto, à forma como as pessoas estavam a ser tratadas. Encontrei a Ndjinaa Ngombe, por exemplo, que vivia num lar de idosos – algo que é muito raro em África. Conheci pessoas que estavam ao encargo de algum membro da família, porque mais ninguém se quis envolver no seu tratamento devido ao estigma. Mas acima de tudo, foi incrível perceber que, a partir do momento em que existe mais informação acerca do que se passa com as pessoas, e se ajudarmos os membros das suas famílias a entender melhor a demência, eles aprendem mesmo a cuidar uns dos outros. É o exemplo maravilhoso de como toda uma comunidade pode tornar-se parte de um determinado modelo de cuidado.
Por outro lado, temos de aceitar que, em várias comunidades, a superstição e as crenças espirituais são a base de todas as áreas da sua vida. Não só em África, mas um pouco por todo o mundo. É a maneira como elas interpretam as coisas. E quando se trata de saúde mental – algo que manifesta sintomas difíceis de explicar – vai sempre haver alguém que agirá de forma assustadora. Então, as pessoas dessas comunidades vão guiar-se pelas suas crenças espirituais, pela sua crença na bruxaria ou nos fenómenos sobrenaturais para explicarem esses comportamentos. E isso faz todo o sentido. Aliás, a forma como estas comunidades percebem a saúde de um modo geral é muito complexa, não tem apenas que ver com a saúde mental. A partir do momento em que trabalhas com enfermeiros locais, por exemplo, passas a compreender muito melhor a sua cultura. Na minha opinião, é possível equilibrar as crenças culturais com o conhecimento e com as informações médicas.
Na tua opinião, uma vez que não existe um termo concreto para descrever a demência nestes países, qual é a melhor forma de abordar o tema nos mesmos?
Pelo que vi, penso que a melhor solução seja trabalhar junto dos profissionais de saúde locais. A questão é: se tentarmos apresentar uma ONG [Organização Não Governamental] ou qualquer outra instituição a uma determinada cultura sem a conhecermos, nunca vamos saber como abordar o problema. Portanto, se queremos ajudar essas comunidades e ser bem-sucedidos, devemos apostar mais na formação dos enfermeiros e dos médicos locais. Já existem alguns profissionais de saúde que estão a fazer isso, mas é algo que merece ser apoiado numa escala muito maior.
Como é que conseguimos respeitar as suas tradições ancestrais, mas, ao mesmo tempo, melhorar a sua qualidade de vida e aumentar a sua literacia acerca da saúde mental? Como é que se encontra o tal equilíbrio de que falavas há pouco?
Uma das coisas mais interessantes que aprendi, foi que as pessoas visitam curandeiros tradicionais, mas também vão ao médico. Ou seja, existe essa interseção do conhecimento espiritual com o conhecimento médico. São coisas que coexistem. E acho importante compreendermos que não se trata de tentar separá-las, mas sim de analisarmos como é que elas podem trabalhar em conjunto. Isto é, quer sejam médicos de um hospital local, curandeiros tradicionais, fisioterapeutas, enfermeiros locais… se houver harmonia entre todos eles e se todos apoiarem a educação e os vários componentes dos serviços médicos, penso que a informação será bem-recebida pelas comunidades. Contudo, mesmo que os profissionais de saúde locais já estejam a fazer o seu trabalho, ainda precisam de muito apoio por parte do Governo e da Organização Mundial de Saúde (OMS). Se procuramos melhorar, globalmente, a vida das pessoas com demência, então não podemos ignorar a parte que diz respeito às diferentes percepções culturais.
Até agora, com este projeto - “The Big Forget” - o que dirias que aprendeste acerca do impacto da demência no contexto sociocultural dos países subsarianos?
Existem diferenças no que toca ao género, definitivamente. Por exemplo, as mulheres são acusadas de bruxaria com mais frequência do que os homens. Também reparei que, quando é necessária uma pessoa para cuidar de algum familiar, pedem sempre ajuda a raparigas jovens. Aliás, chegam mesmo a tirá-las da escola para que possam cuidar dos seus familiares. Ou seja, acaba por existir um impacto, a longo prazo, na vida dessas raparigas.
Aprendi que não importa o lugar do mundo onde te encontras. Podes ser excluída da tua comunidade, seja porque foste colocada num lar nos Estados Unidos, seja porque os teus comportamentos estão a assustar as pessoas [em África]. Há, definitivamente, um grande preconceito em torno da saúde mental. E para mim, foi realmente importante destacar a forma como outras pessoas estão a experienciá-la.
Existem pessoas que sofrem com demência na tua família. Essa realidade também foi algo que te motivou a criar este projeto?
Absolutamente. A minha avó tinha Alzheimer e o meu pai foi diagnosticado este ano. O que sempre me fascinou foi perceber como diferentes culturas e diferentes comunidades interpretavam a mesma questão. Ou seja, esse sempre foi o meu objetivo principal ao criar este trabalho. Mas depois pus-me a pensar na sorte que tivemos com o meu pai, por exemplo. Nós conseguimos levá-lo a fazer uma tomografia cerebral (TAC) e receber um diagnóstico rapidamente. Ao realizar este projeto, percebi que muitas das pessoas que conheci nas comunidades rurais, nunca irão conseguir consultar um neurologista. Elas nunca conseguirão obter um diagnóstico formal. E isso deve-se à falta de profissionais de saúde especializados dentro dessas comunidades. Se não houver sequer um médico que faça um diagnóstico, como é que alguma vez conseguirão tratar do problema ou mesmo entendê-lo?
O que se segue para o projeto “The Big Forget”? Qual será o seu próximo capítulo?
Nos próximos capítulos gostava de me focar nas crenças espirituais que existem no Benin (país da África Ocidental) relativamente à saúde mental. Também estou a pensar em elaborar um capítulo que se dedique a um enfermeiro incrível que conheci na Namíbia. Ele imprimiu e plastificou uma infografia elaborada pela Organização Internacional do Alzheimer – na qual constam os 10 sinais de alerta para a demência – e agora leva-a consigo para todas as comunidades rurais que visita, de forma a conseguir examinar pessoas que provavelmente nunca seriam vistas por um médico. Desta forma, ele consegue dar um possível diagnóstico à família, mas também educá-la e transmitir-lhe mais informação sobre a doença.
Além disso, também estou a realizar um trabalho de longo prazo que se dedica à educação das raparigas. Para tal, tenho ido a países como o Quénia e a África do Sul, e espero conseguir ir à Nigéria e ao Malawi.
Enquanto fotógrafa, mas também enquanto pessoa, o que destacas na tua personalidade que possa ser importante para que consigas trabalhar junto dessas comunidades mais vulneráveis?
Acho que a gentileza é das coisas mais importantes para mim. E não é preciso muito para se ser gentil. Antes de seres jornalista, és humana, ou seja, possuis um certo nível de sensibilidade. O mesmo acontece com a fotografia. Houve tantas fotos que não tirei, porque simplesmente não me parecia correto. Temos de saber quando devemos dar um passo atrás e pousar a câmara. Acho que isso é muito importante. Já para não falar na forma como as pessoas se vão sentir à nossa volta, porque isso transparece nas imagens.
Costumamos dizer que a fotografia é um meio muito desonesto, porque podemos fazer com que ela pareça qualquer coisa. Mas não é possível mentirmos sobre a forma como a pessoa que está a ser fotografada se sente relativamente ao fotógrafo. Para mim, isso está sempre evidente no seu olhar e é algo que consigo perceber rapidamente. Posto isto, na minha opinião, a qualidade mais importante que devemos ter é a de conseguirmos trabalhar com gentileza, com respeito, e lembrarmo-nos de que somos humanos antes de qualquer outra coisa.