Pela Branca, Máscaras Negras: sobre o “Decolonial Desire” de Vasco Araújo
Fui à inauguração da exposição Decolonial Desire, de Vasco Araújo, a sua primeira mostra individual no Reino Unido, no Autograph ABP, no mês passado, com poucas expectativas. Sinto-me um pouco cansada de homens brancos que recebem volumosos financiamentos e muito espaço para me falarem sobre a minha Negritude, a história do meu país e de como a descolonialidade os está a afetar. Contudo, tenho confiança na curadoria de Autograph e por isso mantive a mente aberta.
A exposição é constituída por cinco obras instaladas no andar de baixo e uma série de curtas-metragens no andar de cima. O trabalho ocupou toda a galeria e prosseguiu até 3 de dezembro.
A inauguração está agitada; impressionantemente um público mulato e negro enche o espaço. O som estala como uma bolha nos tetos de pé direito alto, o confortável chão de cimento polido alivia um pouco as longas paredes brancas. A minha frequência cardíaca diminui naquela sensação de calma que reservo para as exposições, espetáculos de teatro e maratonas de Netflix, antecipando uma hora na qual o meu corpo não será convocado a representar género, raça ou sexualidade.
O texto introdutório no vinil da parede à entrada da Autograph explica:
Quero que as pessoas reajam com emoção. Espero que não fiquem apenas apaixonadas, mas que sintam também como se tivessem levado um murro no estômago. Desconforto, é isso que quero, porque o desconforto provoca questionamentos internos. - Vasco Araújo
Isto não me preparou para o confronto com catorze autoretratos do próprio Araújo, com a cara pintada de preto, algumas vezes em drag também, e sempre disfarçado dos vários tipos de “negros” permitidos por uma psicologia colonial: o negro educado, o negro pirata, o negro empregado, o negro advogado, o negro pregador, o negro subserviente, o negro piedoso, etc., etc., etc. Movendo-me pela exposição sou atraída pelas grandes esculturas de mesas de sala de jantar imbuídas de fotografias contemporâneas da enorme árvore genealógica que representa a vegetação que foi transplantada de várias partes da Índia e do continente africano para os exóticos “jardins aclimatizados” das cidades europeias, como as palmeiras de Lisboa. Ali aninhadas e entre estes silenciosamente violentos arranjos estão emolduradas fotografias de arquivo de africanos escravizados de diferentes partes do continente, que foram visitados em zoológicos humanos ao longo dos séculos XVIII e XIX. A imagem abaixo retrata Ota Benga que, em 1906, foi forçado a viver com macacos na Casa dos Primatas no Bronx Zoo, em Nova Iorque.
À medida que um silêncio amortecido vindo do público negro começa a ecoar um entusiasmo do público branco vem surgindo e o espaço vai ficando segregado, uma jovem branca exclama: “É tão bonito - quero na minha casa!”. Gostaria de saber se ela sequer percebeu a fotografia dos homens negros no zoológico parisiense, forçados a nadar em círculos numa piscina claramente construída para animais aquáticos. Gostaria de saber se ela não se consegue ver - apontando para a escultura - refletida nas mulheres brancas no retrato a apontar para os homens “exóticos” que são anunciados como anfíbios. Estou consciente de que a raça é uma construção e que a herança é enlameada com coágulos de sangue e histórias de fogo sobre “nós” e “eles”; e que as nossas adaptações genéticas e culturais estão muito mais hibridizadas do que a sociedade nos fez crer. No entanto, é difícil não me sentir “de cor quando me lançam contra um acentuado fundo branco”1 (Zora Neale Hurston, How it Feels to be Colored Me.), é difícil não sentir a separação.
Vejo tudo isto a acontecer à minha frente e começo a entender o título desta exposição - desejo descolonial. Mesmo num espaço de “descolonialidade”, a insaciável fome dos brancos para a exotização, objetivação e predação do corpo negro persiste, impregna, penetra. As mulheres de cor que estão no espaço começam a recuperar do choque e cercam o artista que está a rir, confortável, animado; outros abanam a cabeça silenciosa e tristemente antes de se recolherem e partirem. Os públicos brancos exclamam quão bonito, interessante e estimulante é o trabalho, ou então manifestam um horror performativo. Pergunto-me se, na sua autoconfiança, Araújo está consciente de que, nesta sala, recriou os zoológicos humanos que está a tentar criticar. Pergunto-me se ele se importa.
Como pode Mark Sealy, o curador desta exposição, estar confortável com esta instalação que permanece atrás de mim. Como poder estar na abertura ao lado de Araújo com orgulho e fazer-nos sentir a todos como se estivéssemos a exagerar e que devíamos responder com uma crítica mais “intelectual” ou não-tendenciosa?
Segundo a nota do curador, Capita “levanta uma série de questões desconfortáveis sobre o direito [do artista] de performar o corpo cultural racializado e sexualizado (no sentido de género) e as implicações da reconstituição histórica como estratégia contemporânea de articulação artística”. No entanto, diria que Araújo não tem o direito de fazer esta experiência de “reconstituição histórica” quando a história que está a re-promulgar pertence aos povos oprimidos que o seu país tem humilhado e escravizado. Esta apresentação simples e simplista de raça e género, sem qualquer referência à própria subjetividade e ao próprio olhar do artista, não problematiza nem critica de forma alguma a colonialidade. Há pouca diferença entre este trabalho e os escravocratas coloniais a assistir a artistas brancos pintados com a cara de negra que reforçavam a dita ordem natural de inferioridade e submissão.
Sou forçada a perguntar o que significou para ele colocar aquela peruca, se ele tinha noção de quantas cabeças foram rapadas como marca de subjugação, de quantas mulheres com afros foram detidas ou presas ou ameaçadas com arma por terem sido confundidas com a então fugitiva Angela Davis.
Outra seção da nota do curador afirma: “Capita como uma série de imagens pretende, portanto, incentivar o público a considerar a ‘raça’ como um processo político e ideológico instável.”
Qualquer negro que viva na diáspora ou em territórios coloniais de colonos já está bem consciente da criação da “raça”. Muito poucas pessoas de cor que vivem neste país ignoram o facto de que estão a viver entre as relíquias do império colonial que inventou a “evidência” científica e literária de que a cor da sua pele, as suas feições, os seus tipos de cabelo os marcou como uma espécie inferior. Será que algum rapaz negro que tenha sido parado e procurado pela polícia britânica, ou alguma mulher negra que tenha sido chamada de “puta negra”, “puta p****” ou até mesmo de “escrava” ao se recusar responder ao assédio de rua, ignora a política da raça?
No andar de cima da galeria está uma projeção de duas horas constituída por cinco curtas. Quase todas as peças são altamente problemáticas, para não mencionar que não têm brilho criativo; a sua curadoria, em conjunto, homogeneíza as várias explorações do “Outro” de Araújo. Um dos filmes, O Escravo, mostra a ópera Aida, de Verdi, imitada no filme pela atriz negra Jenny Larrue, transgénero, intercalando com citações de Pela Negra, Máscaras Brancas, de Franz Fanon, e Cultura e Imperialismo, de Edward Said.
A peça começa com a voz de um narrador masculino que entoa em cima de uma espécie de footage vulgar de adereços de palco e arquivos de bastidores: “Há histórias que não poderias contar a um estranho? Como as histórias do bisavô que vendeu escravos? Como a história de um grande tio, que era médico e mediu seres humanos? Como a história de um segundo primo que trabalhou numa plantação de café até cair de morto?…”
Por que essas “histórias” são colocadas para nós lado a lado, como se compartilhassem algo além do facto de que alguns desses antepassados oprimiam e outros tinham de sobreviver? E por que Araújo é quem conta estas “histórias”? Por que construiu o “caixão” subterrâneo que contém álbuns de fotografias de trabalhadores da borracha congoleses mutilados? Por que esses corpos, já recetores de tanta violência, estão à disposição da sua carreira?
O narrador do filme continua: “Eu sou branco e preto e sei que não há diferença entre os dois, cada um lança uma sombra e são apenas cores da noite”
O discurso supostamente pós-racial das obras de Araújo aparece uma e outra vez ao longo dos vários filmes, pois os corpos negros são apresentados nus, como uma figura silenciosa a segurar uma lança ou como um ídolo animado de fertilidade sem rosto com as palavras de Araújo ao lado de corpos brancos solitários ou deslocados, como se as suas lutas fossem comparáveis. A re-primitivização dos corpos africanos como objetos inanimados naquilo que o artista imagina que o “outro colonizado” possa pensar torna esta exposição ainda mais ofensiva, fetichista e auto-indulgente do projeto colonial. E não é a quantidade de colaborações com mulheres trans-experiência negras, ou citações de Franz Fanon ou de Edward Said que tornará este trabalho descolonial. Não se pode enganar o árduo trabalho que todos devemos fazer para desafiar o nosso próprio condicionamento, as posições de privilégio e cumplicidade na violência racializada que continua a ser decretada através do capitalismo e da economia global. Não estou a argumentar que os artistas brancos não devem trabalhar sobre o colonialismo. Pelo contrário, como Bell Hooks escreveu em 1989, “uma viragem realmente interessante seria a produção de um discurso sobre a raça que interrogasse a brancura”.
Assim, esta é uma exposição que conseguiu fazer desfilar os corpos de negros semi-nus que já foram penetrados por todos os possíveis olhares coloniais e instrumentos exploratórios; conseguiu apresentar a Negritude como uma iguaria simplista de delicadeza deslumbrante para ser exaltada; conseguiu produzir uma reflexão estimulante e desafiadora do colonialismo para os membros da audiência branca; e conseguiu dar murros no estômago dos negros como se fossem novamente obrigados a enfrentar os horrores do projeto colonial promulgado por um homem branco a quem claramente não lhe interessa o seu próprio “questionamento interno”.
Como em Exhibit B, o problemático zoológico humano que Brett Baily tentou mostrar no Barbican em 2014, Araújo volta a fazer um espetáculo do corpo negro na sua tentativa de lembrar o que aparentemente foi “esquecido”, sem considerar quem se está a esquecer.
Não escrevi este artigo para encorajar um boicote ao Autograph ABP, que continua a ser uma das únicas instituições de arte comprometidas em destacar questões de identidade e críticas coloniais para e por artistas de cor. Mas antes para salientar a problemática em curso na sua decisão curatorial. E pedir-lhes que sejam responsabilizados por alimentarem um setor criativo narrado e orquestrado por corpos brancos que ainda não parecem considerar a negritude além da escravidão, o crime de gangues e a violência sexual. Porque há algo particularmente doloroso em passar por essa experiência no Autograph ABP, um edifício que sempre lamentou “por mim” de modo que a National Portrait Gallery ou o V & A não fizeram, o que só aumenta a sensação de que esta é uma traição pessoal.
Este artigo tem um tom emocional em vez de académico, porque a escravidão será sempre um tema emocional para os negros, nunca devemos ser inebriados por números e livros de História, ou ser capazes de olhar de forma não-enviesada. Encorajo-vos a ir, a olhar, a sentir e a escrever para a Autograph ABP, e a lembrá-los que a descolonidade é um diálogo que todos nós somos responsáveis por promulgar. Não podemos dar-nos ao luxo de assimilar, de não criticar e de não falar por nós próprios quando, especialmente neste clima social racista e sexista cada vez mais intenso, onde violadores acusados apoiados por supremacistas brancos podem sentar-se na mesa mais poderosa do mundo, a descolonização permanece. Um processo que exigimos para sobreviver.
[Este artigo foi originalmente publicado em Media Diversified: White Skin, Black Masks: On the “Decolonial Desire” of Vasco Araújo]