Terra Prometida
Nas sociedades coloniais da época moderna era comum ser colocada ao escravo uma máscara confeccionada em folha-de-flandres ou em ferro, que lhe tapava o rosto ou, em especial, a boca. Funcionava como objecto de castigo e de humilhação mas também como forma de impedir que o escravo ingerisse terra em grandes quantidades, o que levava, muitas vezes, à morte. O escravo, desenraizado da sua terra, gentes e costumes, no desespero do trabalho compulsivo, acreditava que desta forma lhe seria possível retornar à terra de origem. Perante a sua condição de Homem destituído de liberdade e individualidade o escravo recorreu a este mito com toda a força de seu espírito.
A ausência de liberdade e de individualidade não foi exclusiva da sociedade esclavagista da época moderna. No decorrer do séc. XX, na Europa, foram muitos os países que se encontraram sob realidades políticas e sociais que comprometeram dramaticamente a sua liberdade. Foram muitos os cidadãos que, na sua pátria, ficaram condicionados e impedidos de exercer a sua individualidade. Podemos, de certo modo, considerar que todos aqueles que viveram nestas circunstâncias se encontraram aprisionados e, por isso, escravizados. Assim, metaforicamente, é possível visualizar uma máscara em cada um destes indivíduos que proíbe “o usufruto” da sua liberdade e, consequentemente, da sua pátria.
No entanto, a terra com que o escravo da sociedade esclavagista moderna sonhava era um mito, uma idealização construída muitas vezes sem real conhecimento dela por já ter nascido longe. Um foco de esperança; ou seja, a utopia que o movia e impelia a procurar fugas para a sua condição. Como este escravo, também o Homem do séc. XX criou as suas próprias idealizações abstratas, fossem elas baseadas numa pátria, liberdade ou utopia a que não tinha acesso mas que almejava. Deste modo, esta terra prometida não foi, muitas vezes, uma “terra” concreta mas a ideia de uma condição desejada. Mais ainda, essa utopia (pilar ideológico de muitos desses sistemas) chegava a ser, inclusivamente, propagandeada por outrem; muitas vezes por aquele que o aprisionava. Neste caso o Homem “escravizado” do séc. XX era condicionado a acreditar nesse mito ao qual estava permanentemente impossibilitado de chegar.
Este condicionamento não era exclusivo de uma única pessoa mas partilhado por todos os indivíduos. Podemos conceber relações entre eles com o mesmo foco comum: a utopia. Apesar de existir dentro da sua prisão individual e não partilhável, pois cada um vivenciava a sua prisão pessoal, este Homem estava, ainda assim, permanentemente interrelacionado com os restantes indivíduos através desse ponto comum de contacto.
Se o mito era frequentemente instigado por outrem, não raras vezes brotava do próprio indivíduo ou, quando o condicionamento era realmente eficiente, este chegava a tomar o mito como seu. Neste caso a máscara deixava de ser uma realidade concreta e tornava-se o próprio indivíduo. Este passa a julgar-se, erroneamente, detentor da terra prometida quando, na verdade, metamorfoseou-se na sua própria jaula.
Todos estes Homens, conscientes ou não da sua condição de “escravos”, relacionavam-se entre si como membros da mesma comunidade. Fossem essas relações de entreajuda, dependência ou poder; fossem violentas ou pacíficas; fossem práticas voluntárias ou involuntárias, existiam e tinham lugar dentro de uma prisão colectiva. Dado que não se estava perante a terra prometida (caso contrário não haveria lugar a “escravos”), a possibilidade desse mito ser alcançado só podia ter lugar fora dessa jaula; um pouco como o escravo de outrora só poderia alcançar a verdadeira terra de origem deslocando-se para fora da comunidade em que estava enjaulado.
Individualmente cada homem poderia ter consciência da sua realidade de aprisionado, tal como o escravo se consciencializou da sua condição de escravo e da realidade sociocultural que o rodeava. No entanto, essa consciencialização, chave de qualquer possível fuga individual, implicava sempre a queda do mito. Ainda assim, este Homem, fruto de circunstâncias que o vincaram nas suas mais profundas convicções, estava agora consciente, e era confrontado com a cruel realidade de que sozinho não conseguiria desmantelar a sua prisão. Pior: dada a ausência de uma fechadura, nem mesmo quando a consciencialização era feita por muitos ela permitia a libertação. Os indivíduos descobriam que a sua prisão colectiva estava longe de ser controlada por eles próprios.
Se o escravo de outrora podia manter dentro de si o sonho de voltar à pátria acaso atingisse a liberdade, o Homem do séc. XX, enjaulado na sua “terra prometida” e submerso em circunstâncias das quais dependia profundamente, nunca teria essa oportunidade. E mesmo aqueles que iam conseguindo fugir, o que conquistaram foi somente o exílio e a expatriação. Para estes escravos a fuga tornou-se, então, uma impossibilidade a cada nova tomada de consciência, um eco de chaves a tilintar e a recordar que cada Homem é a sua pátria.
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