Textos de Viagem. Casablanca, Eid al-Adha 1443 AH
Uma viagem, sobre outra viagem, sobre outra viagem, três viagens, um caminho aberto.
Seriam nove ou dez, os dias em que Ahmad esteve morto? Foi tudo muito rápido e intenso, entre o marché Medina que os taxistas insistem em chamar marché Sénégal, e a rotunda da Boulevard Tantan.
Já morri, eu! Dizia Ahmad na esquina do cruzamento perto da bomba da Shell onde, na mesma manhã, lavei o carro. Horas antes, na espera, sentei-me tranquilamente a beber um café, a saborear a rara solidão e a cultura dos cafés marroquina, na esquina oposta àquela onde agora aquele tresloucado me diz que já morreu e já nada importa. Conduz como um louco, os olhos esbugalhados, e adivinho-lhe uma frequência recorrente aos paraísos artificiais. Para ele, agora, os minutos somados à vida no mundo terreno é tudo cadeau.
Andámos às voltas à procura de quadros sem alma, se assim lhes posso chamar. Reproduções de clichés orientalistas, produzidas em quantidade, num Marrocos onde a arabização foi bem sucedida e já são poucos os que falam francês. Paisagens do deserto, camelos sob o pano de fundo do pôr do sol, por entre as dunas. Os olhos perscrutantes de uma mulher enturbanada (não disse enburqanada!) a lembrar Sherezade. Face à insistência cedo em escolher o menos incomodativo dos clichés, a Sherezade. Quero lá saber, não tenho propriamente dinheiro para a arte que aprecio a sério!
Demorámos a encontrar o canto do mercado onde os vendedores de arte e artesanato se juntam. Depois de muito ziguezaguear, livremente, percebo finalmente porque chamam a este mercado marché Sénégal. Numa clareira dentro daquela floresta, uma fila de duas ou três dezenas de mulheres senegalesas prestam-se a dar conta da toilette das suas clientes. Ao ar livre trançam cabelos e extensões, arranjam perucas, põem unhas, maquilham africanas e marroquinas. Nas ruelas que ali desembocam um sem número de outra lojas de senegaleses a vender todo o tipo de produtos.
Falam-me em árabe. Dizem que pareço um marroquino. E mesmo quando explico que não falo a língua ninguém fica muito convencido. Talvez pensem que estou a usar um disfarce qualquer, a querer parecer algo que não sou. Todos queremos parecer alguma coisa, n’est-ce pas!? em viagem ainda mais. Eu esforço-me por não ser um mero turista. Será que é por isto que ninguém me chateia neste país?
Acabamos por sair do souk sem encontrar os vendedores de arte, para umas ruas interiores diferentes do resto da cidade, onde percebo que se trata da antiga Medina, zona destruída pelo “nosso” terramoto de 1755 e reconstruída logo depois. Com os seus prédios baixos, contrasta com a Casablanca das grandes avenidas e prédios imponentes. As ruas labirínticas inspiram a familiaridade agradável dos bairros populares. Seguindo os cursos mais naturais afastamo-nos do mercado e do objetivo. As ruas desembocam de forma orgânica no porto, mas não sem antes se tornarem enviesadas como no delta de um rio, baralhando o sentido de direção a quem não conhece o lugar. Somos levados para bem longe do que imaginávamos. Vejo o porto, mas não no enquadramento que queria. Decidimos então apanhar um táxi que nos leve ao sítio certo, que era afinal apenas mais ao lado da entrada principal.
É à saída deste espaço, na volta a casa, que damos de cara com Ahmad. Camisa colorida aberta em cima de uma camisola de cavas branca, ar de janado. Rondpoint Boulevard Tantan! Allez. Em Casablanca, os taxistas podem ou não aceitar fazer certo percurso. Não se demoram na decisão, se não lhes dá jeito fazem um sinal com a mão tipo já foste! e simplesmente vão-se embora. Ninguém leva a mal, ao que parece, é só irritante. Ahmad acede ao percurso e diz-nos que nos encaminha porque eu sou beau. Rio. Rimo-nos todos. Deve ser uma piada. Discursa sem parar mesmo depois de lhe dizer que não falo árabe. Está, ou é, completamente acelerado, hiperativo. Manda-se para cima dos outros carros. Pára a fingir que vai levar alguém que estica a mão só para, assim que a pessoa começa a falar, arrancar e desmanchar-se a rir, como quem goza com a subversão consciente dos códigos sociais. É um verdadeiro buffon. Canta com alma. Eu dou trela e pergunto se é cantor. Mostra-me o Instagram e os vídeos dele a cantar. Faz coro com o vídeo e deixa de olhar para a estrada. Logo de seguida distrai-se com a estrada e grita aos outros condutores, mas ri-se, é uma paródia!? A Ragas só ri dando ainda mais motivação a Ahmad para continuar a sua performance. Fingimos não prestar atenção à condução perigosa pontuada de buzinadelas para que abram alas. Ele volta a dizer que sou beau, eu digo Monsieur, Madame, apontando para Ragas, antes que pense que há algo para engatar. E ele quer lá saber do que digo … no túnel cola-se ao carro da frente, a menos de um palmo de distância e continua em piloto automático. Ri. Apita. Ri mais alto quando os outros carros, pressionados, saem do caminho. Quem pára Ahmad? Em Casa não se usam cintos de segurança nos petit-taxi.
Quando saímos dos túneis perto da mesquita Hassan II e cortamos para dentro da cidade ele diz. Moi, mort, 10 jours, overdose! Maintenant tout est cadeau. Será que se justifica pela sua extravagância? Já morri! repete. É, portanto, um fantasma que nos conduz. Entre gestos enfáticos e excitação chegamos perto da Boulevard Tantan, não sem antes assistirmos a mais uma cena. De repente, Ahmad atravessa o carro na faixa contrária e corta o caminho a um outro carro. Abre a porta e sai logo a barafustar. Ainda estou aturdido com toda a energia deste homem e não percebo logo a razão daquele espetáculo. Ahmad de dedo em riste, na cara do outro homem, mais alto do que ele mas assustado, faz sinal para um terceiro homem, cambaleante. Bêbado, drogado, com problemas mentais!? Antes de Ahmad aparecer, o homem do carro gritava com o outro descompondo-o. Ahmad foi pô-lo no seu lugar. Como um barril de pólvora lançou-se já de rastilho aceso. Não fosse o outro encolher-se e deixar o vagabundo em paz, Ahmad talvez lhe saltasse em cima. Tira algum dinheiro do bolso e estende-o ao homem agredido. Volta para o carro e para os espectadores atónitos com lágrimas nos olhos e muito nervoso. Enraivecido pelo tratamento dado pelo homem do carro ao outro, vulnerável, perguntava como era possível tratar assim um louco!? Talvez se sinta na pele daquele homem, perto de onde a vida se inclina para a morte.
Arranca, perde-se no caminho, chora enervado enquanto tenta explicar que o outro não podia tratar assim uma pessoa. Tudo on the edge. Quem pára Ahmad? Quem sabe, o espelho de si próprio.