O dia em que a multidão foi maior do que o Cairo
Paulo Moura, Cairo
Venceram. Era impossível, mas venceram. A praça Tahrir estava cheia quando rebentou a notícia, sob a forma de gritos - “Alah U Akbar!” E todos souberam o que era. Não pela frase, mas pelo modo arrebatado, incandescente, como foi gritada. “Alah U Akbar!”, e as multidões que ainda faziam fila nos checkpoints junto aos tanques lançam-se a correr loucas sobre a praça. Ao princípio parece uma guerra, um novo ataque dos provocadores, uma carga da polícia ou do exército, mas é apenas alegria. Violenta como tiros de canhões.
“Egipto livre! Egipto livre!”, gritam grupos que correm em comboios rumo ao coração de Tahrir. “O povo venceu”, gritam outros. “Nós somos o povo do Egipto”. E tambores explodem em ritmos desenfreados, música, foguetes, o ulular das mulheres árabes. Há sorrisos em todos os rostos. Sorrisos estranhos, que parecem brotar de uma nascente lídima e cristalina da consciência humana.
“Estou aqui de alma e sangue”, diz Zeinob, 26 anos, médica. “Estou aqui pela dignidade do meu país. Com orgulho nele. Orgulho que o mundo nos esteja a ver neste momento. Pensavam que os povos árabes eram desorganizados, incultos e violentos? Pois o que me dizem agora?”
Zeinab sabe que se seguem tempos difíceis, mas tem confiança absoluta no futuro. “Recuperámos a nossa dignidade. Depois do que aconteceu nesta praça, nunca mais ninguém nos poderá humilhar”.
“Bem vindo ao século XXI”
Mahmoud Halaby, 46 anos, publicitário, acrescenta: “Somos um povo pacífico. Aguentámos este ditador durante 30 anos: querem melhor prova?” E Khaled Kassam, 23 anos, médico, diz: “Os governantes que vierem a seguir sabem que terão de tratar este povo de forma diferente. Vamos observar a transição passo a passo. Se as coisas não evoluírem na direcção certa, faremos ouvir a nossa voz. Egipto, bem-vindo ao século XXI”. Mahmoud acredita que os militares vão cumprir a promessa de transformar o regime. “Com Mubarak no poder não seria possível, mas agora sim. O regime é como uma serpente. Se lhe cortarmos a cabeça, não pode sobreviver”.
Tahrir nunca teve tanta gente. Chegam cada vez mais, aos milhares. Já não cabem, apertam-se, misturam-se, unem-se num organismo desmesurado e vivo, a revolver-se de júbilo, como uma crisálida em plena transformação. A multidão é maior do que a praça, do que a cidade. Maior e mais poderosa do que se julgava.
“É uma surpresa. Para mim é uma surpresa. Nunca pensei, nunca sonhei que vencêssemos”, diz Ahmed Shamack, 21 anos, estudante de engenharia. “Acho que nunca ninguém acreditou verdadeiramente. Sabíamos que tinha de acontecer, mas não o imaginávamos. Por isso agora é tão maravilhoso”.
Farah Faouni, uma rapariga de 23 anos e olhar negro e intenso como o de uma sacerdotisa de Ísis aproxima-se para dizer, lentamente: “Sinto o doce aroma da liberdade”. E depois acrescenta: “Vamos avançar. Vamos construir neste lugar um país democrático e livre. Ninguém nos poder impedir. Este é o nosso tempo.”
Um velho de barbas e longa túnica chora ruidosamente, de braços no ar. Mulheres sozinhas, perdidas na multidão, têm os olhos cheios de lágrimas. Há rostos tisnados, rugosos, sujos, chorando e rindo ao mesmo tempo. Alguns procuram desesperadamente um jornalista para lhe contar a sua vida. Como se o pudessem fazer pela primeira vez, em liberdade. Só agora se permitindo olhar para si próprios e ver-se na sua miséria e grandeza. Chorar é o primeiro apanágio da liberdade. O primeiro direito. “Eu não tenho trabalho. Não tenho segurança social, não tenho seguro, não tenho uma casa decente, não tenho assistência médica para a minha família, diz Sherif Assan, 41 anos, rodeado dos seus quatro filhos, Radua, Mohamed, Zwad e Tamema. Esta tem dois anos e está às cavalitas dele. Os outros, de 3, 4 e 6 anos, estão à volta da mãe, que tem o rosto coberto pelo hijab negro. “Não temos nada. A minha família merece mais do que isto”.
continuar a ler no Público