Queer Focus: África
Começou a 20 e vai até 27 de Setembro na Cinemateca Portuguesa e no Cinema S. Jorge e ZDB, em Lisboa: o Queer Focus: África. No extenso processo de globalização, parece chegado o tempo de África. Assim se vem repetindo nos meios de comunicação globais, como nos fóruns económicos, políticos e académicos. Entre as múltiplas transformações que ocorrem nesse processo, vamos fixar-nos no campo das sexualidades, particularmente das relações entre pessoas do mesmo sexo. Este tema ocupará a programação do AFRICA.CONT do próximo ano, com abordagens vindas de perspectivas diferentes: das ciências sociais e humanas, da literatura, das artes visuais, do teatro.
Antecipando esse ciclo, alojamo-nos confortavelmente na edição de 2014 do Festival Queer Lisboa, a 18ª, ocupando o habitual Queer Focus deste ano com cinema africano. E o cinema é um excelente ponto de partida; porque nos permite uma entrada africana mais directa na discussão, contrabalançando a presença ainda hoje dominante de vozes não-africanas na investigação destas formas não hétero-normativas de sexualidade; porque nos permite aceder a formas de vida, de resistência, de afirmação na vida quotidiana, invisíveis e inaudíveis nos discursos institucionais dos estados e das igrejas, nos debates do espaço público, bem como na maioria dos discursos académicos, e das abordagens técnicas que proliferam desde a epidemia da sida.
Não ignorando as armadilhas da taxonomia sexual ocidental, que certamente serão discutidas no próximo ano, utiliza-se aqui a palavra homossexualidade para abranger toda a variedade de comportamentos sexuais com pessoas do mesmo sexo, presentes em África, como em todos os continentes e culturas. Não no sentido que tem habitualmente para nós desde que foi inventada na segunda metade do século XIX – referindo-se especificamente ao comportamento sexual entre homens ou entre mulheres, que são identificadas por outros e se identificam assim elas próprias, de acordo com o sexo das suas parceiras; mas antes no seu sentido etimológico de sexualidade dentro do mesmo (homo) sexo. E vale a pena recordar que, por exemplo nos nossos países do sul da Europa há mulheres e homens que têm relações sexuais dentro do seu sexo, sem que se identifiquem a si próprios como homossexuais…
Entre os muitos mitos que os europeus criaram sobre África, um dos mais antigos e mais persistentes é o de que a homossexualidade está ausente, ou é episódica, nas sociedades africanas. Em 1781, numa obra que inaugura a sexualização dos africanos (História do Declínio e Queda do Império Romano), Edward Gibbon escreveu: “ Acredito, e espero, que os negros nas suas próprias terras estão isentos desta pestilência moral.” Um excecionalismo da sexualidade africana, face à “sodomia” com que os cruzados medievais caracterizavam os muçulmanos e de que as inquisições ibéricas acusavam os marranos ou cristãos-novos; mas também das práticas “pagãs” semelhantes que se considerou identificarem os novos mundos encontrados a partir do século XVI – as Índias Ocidentais e a virilidade das suas mulheres por contraste com a masculinidade reduzida dos homens; como nas Índias Orientais,
no Extremo Oriente, e mais tarde, nos povos do Pacífico. Na frente interna, na Europa, “pecado abominável” ou “nefando” primeiro, “crime”, “doença fisiológica” ou “desordem psicológica”, algumas das designações sucessivamente utilizadas, indicam que os comportamentos homossexuais foram sempre vistos como o “outro” que permite definir o “nós”, europeus, brancos, homens, heterossexuais. Já era assim com Heródoto no século V ac, ao distinguir os Helénicos dos Bárbaros que supostamente se entregavam a práticas sodomitas.
Nas últimas duas ou três décadas já bastantes estudos têm vindo a pôr em causa essa excecionalidade africana e a refutar o argumento da não-africanidade do sexo homo-sexual, introduzido pelos árabes primeiro, pelos colonizadores depois, mas sempre não-africano. E na vida social surge efectivamente uma identificação política da homossexualidade, com os seus agentes a fazerem da sua orientação sexual uma questão política de direitos de cidadania e direitos humanos. O que é também acompanhado de uma criminalização crescente dessas sexualidades em muitos países do continente africano.
É esta complexidade actual que esperamos que os filmes que são apresentados nos dêem a ver e a ouvir, dos quais pode ainda assistir, entre outros, a estes:
Consulte o programa completo aqui.
Mercedes; Yousry Nasrallah (EGY, FRA, 1993, 108’), Fic.
[24 Set, 19h30 / 25 Set, 19h00] Cinemateca Portuguesa
Priest; Ntare Mwine (UGA, 2013, 7’), Fic.
[22 Set, 15h30] Cinemateca Portuguesa
Call Me Kuchu; Malika Zouhali-Worrall, Katherine Fairfax Wright (USA, UGA, 2012, 87’), Doc.
[22 Set, 15h30] Cinemateca Portuguesa
Dakan; Mohamed Camara (GIN, FRA, 1997, 87’), Fic.
[24 Set, 19h00] Cinemateca Portuguesa
Tall as The Baobab Tree; Jeremy Teicher (SEN, USA, 2012, 82’), Fic.
[25 Set, 22h00] Cinemateca Portuguesa
Aya de Yopougon; Marguerite Abouet, Clément Oubrerie (FRA, 2013, 84’), Anim.
[27 Set, 15h30] Cinemateca Portuguesa