somos todos negros
“Todos os cidadãos, de agora em diante, serão conhecidos pela denominação genérica de negros”.
Artigo 14, Constituição Haitiana de 1805.
Em meio aos festejos previstos para o Bicentenário das revoluções de independência americanas de 1810, é significativa a omissão da revolução haitiana de 1804, a primeira, a mais radical e mais inesperada de todas elas. Nela foram os ex-escravos de origem africana – isto é, a classe dominada por excelência, e não as novas elites “burguesas” de composição européia branca – que tomaram o poder para fundar uma república chamada, com razão, negra. Negra e ao mesmo tempo com nome indígena, já que Hayti é o velho nome taíno da ilha. Haiti, até então chamado Saint Domingue, era de longe a colônia francesa mais rica do Caribe. Uma sociedade agrária e escravagista produtora de açúcar e café, com meio milhão de escravos, que proporcionava mais da terça parte das riquezas francesas vindas das colônias. A Constituição do Haiti foi promulgada a partir dos esboços redigidos em 1801 pelo liberto Toussaint Louverture, morto nas prisões napoleônicas, quem havia encabeçado a revolta antiescravista desde 1791. Diferentemente do que acontecerá com outras independências americanas, há neste silenciado caso, que custou 200.000 vidas, uma radical descontinuidade (jurídica, sem dúvida, mas também e sobre tudo, étnico-cultural) com relação à situação colonial. O ideal de igualdade da Revolução Francesa é levado mais além dela mesma, que terminou pretendendo impedir a abolição da escravidão no Haiti. Os escravos haitianos compreenderam logo que na noção de “universalidade”, proclamada pelos Direitos Universais do Homem e do Cidadão, não cabia sua “particularidade”. A radicalização filosófica inédita da generalização arbitrária “agora somos todos negros”, incluindo explicitamente as mulheres brancas, os polacos e os alemães (sic), deixa claro que para os revolucionários haitianos negro é uma denominação política e não biológica, que destrói a falácia racista e aspira a um novo universal a partir da generalização do particular (mais) excluído.
(baseado no texto de Eduardo Grüner, “A partir de hoje somos todos negros”, inédito, 2009.)
Convocamos a retomar a palavra de ordem haitiana e instalá-la nas ruas e nos debates públicos, não apenas para chamar atenção sobre a história silenciada desta revolução negra de 1804 frente às homenagens do Bicentenário criollo, senão também pela carga de ruptura que ainda porta intacta a idéia de que todos e todas podemos nos definir como negros, em meio à crescente intolerância em que vivemos. Cartazes, auto-adesivos, panfletos, grafite, advertências em publicações e qualquer outro meio podem levar a estender essa campanha anônima e coletiva por toda América Latina e o resto do mundo.